A CAPITAL FEDERAL
[Illustration: Coelho Netto]
/*
Coelho Netto
A CAPITAL FEDERAL
(Impressões de um Sertanejo)
4.ª EDIÇÃO
[Illustration]
PORTO
Livraria Chardron, de Lélo & Irmão,
editores--Rua das Carmelitas, 144
1915
*/
DO MESMO AUCTOR
/*
Esphynge, 1 vol. 6$0
Sertão, 1 vol. $60
Agua de Juventa, 1 vol. $70
A bico de penna, 1 vol. $70
Romanceiro, 1 vol. $50
Jardim das Oliveiras, 1 vol. $50
Fabulario, 1 vol. $50
Miragem, romance, 1 vol. $60
Theatro, vol. 1.º, 1 vol. $80
Theatro, vol. 2.º $40
Quebranto (Theatro), vol. 4.º $50
Theatro, vol. 5.º no prélo
Apologos, 1 vol. $50
Mysterio do Natal, 1 vol. $50
Inverno em flor $70
O Morto, 1 vol. $60
Banzo, 1 vol. $50
A Conquista $70
Rei Negro $80
A Tormenta no prélo
*/
No prélo, a seguir em novas edições:
/*
O Rei Phantasma 1 vol.
O Paraiso 1 vol.
O Turbilhão 1 vol.
*/
/#
A propriedade litteraria e artistica está garantida em todos os
paizes que adheriram á convenção de Berne--(Em Portugal,
pela lei de 18 de março de 1911. No Brasil pela
lei n.º 2.577 de 17 de Janeiro de 1912.)
#/
Ao Revm. padre Ambrosio Coriolano d’Annunciação
Louzada, vigario em Tamanduá, como humilde
testemunho de gratidão, pelos severos conselhos
com que fortaleceu o meu espirito e pelos
cascudos com que me abriu a cabeça para que
nella entrassem as regras de concordancia e os
versos de Virgilio, offereço este livro.
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Tamanduá, em Minas--Janeiro, 93.
*/
/*
Meu tio,
*/
Ha neste livro paginas que vos pertencem,
porque eu nunca as teria escripto se a minha
Bôa Sorte me não tivesse guiado para o retiro
de ascetismo voluptuoso onde viveis, em beato
socego, praticando a moral divina de Epicuro e
cuidando flores; outras ha, e profusas, derivadas
da sabedoria fecunda do dr. Gomes, de quem
guardo saudades e conceitos; outras, finalmente,
que seriam dedicadas á Jesuina se o escrupulo
não existisse na moral privada.
Offereço, porém, as minhas primeiras letras
ao padre Coriolano, porque, sem elle, meu tio
amado, eu seria ainda hoje tão bronco como o
Venancio Dias, do rancho de Santa Engracia, ou
como o José Taborda, da cordoaria.
Outros livros virão, nitidos e pensados; e,
dentre elles, escolherei o mais digno dos vossos
merecimentos.
Não alastro as paginas com dedicatorias: a
meu pai, á minha mãi, nos meus parentes e amigos,
vivos e finados, para que se não diga de
mim o que por aqui se propalou a respeito do
Brites, que encheu quatorze folhas da sua these
sobre o «cryptococus xantogenico», com offerecimentos,
envois e uma reclame a certa modista
da rua d’Ajuda.
Outros livros virão, meu tio amado.
/*
Affectuoso,
Anselmo.
*/
I
Para estar de acôrdo com o horario
dos trens deviamos chegar ás
oito horas e alguns minutos á estação,
e estou certo de que assim teria
acontecido se não fosse o folgado e paciente
atrazo de duas horas e meia, que tivemos
de aturar dentro dos compridos wagons
de primeira classe, nada inferiores
ao carcere duro.
Desde as quatro da manhan, quando
deixei o tecto paterno, sahindo para a
nevoa dos campos frios, até áquella hora,
andava meu pobre corpo aos solavancos,
primeiro no dorso nédio da ruana, mais
tarde nos bancos do expresso, tendo por
fronteiros dois homens terriveis, de idéas
contrarias--um rotundo, conservador e
catholico, saudoso do monarcha, bramando
contra a indifferença do povo, que deixara
partir para o exilio o velho soberano,
sem um protesto, sem um tiro ao menos;
o outro, de pêra, esgalgado e nervoso, livre
pensador, formidavel em theorias republicanas,
contando que, nos muros da
sua casa, na Januaria, havia despojos de
escaramuças contra sebastianistas: chuços,
arcabuzes, facas, fazendo panoplias e
cercaduras em volta dos retratos dos martyres
mineiros: e discorria sobre as revoluções,
reclamando um baptismo de sangue,
como o de 89, em França, sem o que
a republica nunca chegaria á consolidação
perfeita.
O conservador pacato, abrandando o
diapasão, atacava o procedimento dos revolucionarios
de Novembro, que haviam
banido os altares, rechassando os santos--a
Virgem, a consoladora, a misericordiosissima
Conceição, Mãi de Deus e Amparo
dos Afflictos. Podiam ter feito tudo,
mas deixassem a crença de cada um.
--A crença é a republica. A Conceição
é a Patria. Qual Deus! Qual Igreja,
meu caro... o tempo dessas coisas passou.
Havendo Constituição e Justiça, para que
diabo queremos nós santos? Deixemo-nos
de sentimentalismos piégas!
Veiu á questão o militarismo. O conservador
impugnava a farda, queria o civil.
O esgalgado investiu.
--Mas onde encontral-o? Mostre-me
um homem capaz de tomar a responsabilidade
do governo... Mostre-me, entre os
casacas, um cidadão á altura de exercer
esse cargo. E, escancarando os braços, escancellando
a boca, os olhos esbogalhados:
Não ha! Vamos muito bem assim, não
acha o senhor? Era commigo. Encolhi os
hombros para fugir á discussão. Elle tomou
de uma botelha e offereceu.
O conservador, com um gesto nobre,
rejeitou; eu rejeitei; e uma mocinha triste,
que vinha derreada, a olhar melancolicamente
a paisagem, como se por ali lhe
ficassem pedaços do coração, teve um sorriso
adoravel, rejeitando, por sua vez.
Seus olhos castanhos, entre grandes cilios,
alumiaram-me, e travámos palestra, em
tom subtil e discreto, vindo eu a saber,
pelo cicio dos seus labios, que era professora
em Sabará, na fazenda de um tal
Souza Gordo. E disse-me a sua patria--a
Italia, e o seu nome, já celebre no idyllio--Graziella.
E eu, a ouvir-lhe as suaves
palavras, via as arvores passarem vertiginosamente,
como se os campos e os
montes assustados fugissem diante do
comboio rapido. Emquanto andámos, não
lhe percebi um movimento, um olhar que
não fossem do mais candido recato. Lia--um
livrinho minusculo, capa de percaline
roxa e letras de ouro. Em Juiz de
Fóra, offerecendo-lhe uma corbelha de figos,
aproveitei a sua distracção para surprender
o nome do poeta favorito--Leopardi.
Era pessimista com tão angelico
sorriso! Amargo seculo em que as deusas
trazem philtros no bolso e seguem a seita
sombria dos desesperados. Era, de certo,
a idéa da morte que lhe punha nos serenos
olhos tanta melancolia. Na Barra,
porém, tive uma surpresa--voltando ao
wagon, encontrei-a sem luvas, o véusinho
levantado, trincando, com voracidade,
uma côxa de frango. Corou ao ver-me,
mas a fome venceu-a; e, até Mendes, fartou-se
regaladamente, escorropichando,
por uma calha de papel, a farofia de manteiga
e ovo.
Trevas de tunneis, verduras de campos,
rampas, viaductos, desfiladeiros, tudo
vencemos em corrida vertiginosa, aos trancos,
ás vezes beirando abysmos, ou rolando
sobre pontilhões, por cima d’aguas
encachoeiradas. Passavamos pelas estações
num ápice; mal se podiam ver as luzes
dos lampiões e os vultos na platafórma.
Quando, atravéz da tela lucida dum
aguaceiro copioso, avistámos os primeiros
fogos da cidade, bonds, carros, todos se
puzeram de pé, arranjando malas, espanando
chapéus. O esgalgado respirou, safando
o guarda-pó. O conservador dormia
beatamente e foi preciso que o sacudissem
para que despertasse.
--Chegámos, senhor barão.
Empoados, como nos tempos galantes
dos Luizes, puzemos pé na platafórma da
estação, claramente alumiada pelas grandes
lampadas foscas que dão ao sitio uma
luz de luar, pallida e triste. Dizem que os
cães que ali vão errar, á noite, estacam,
levantam o focinho e uivam lamentosamente.
Pierrot seria capaz de enganar-se
se não tivesse, como eu, prevenido o espirito
com uma leitura sobre a cidade e as
suas maravilhas. Entretanto, deixando o
meu wagon, assoalhado de cascas de frutas
e de queijo, copiosamente cuspinhado,
uma variedade infinita de pontas de cigarros,
algumas estripadas pelos pés barbaros
e entorpecidos dos viajantes que sapateavam,
despindo o guarda-pó, senti deslumbramento
tal, que tive de fechar os
olhos. Se eu sahia de uma sombra propicia
e somnolenta para esse plenilunio de
Jabloskoff! Quando abri os olhos, assombrado,
estava entre homens de blusa parda
e boné branco, marcados no peito com
algarismos negros, que me empolgavam,
que me berravam numeros e nomes, procurando
arrebatar-me das mãos a bengala
e a maleta. Tive um assomo de energia
e repelli com um murro um «12» que se
aferrara a mim, teimosamente, propondo-se.
O repellão e o socco valeram-me algumas
palavras más, que resolvi deixar sem
resposta para tranquillidade de todos. Os
homens abalaram em tumulto, correram
a outro ponto. Quando vi perdidas na
multidão as blusas pardas, resfolguei e, corajosamente,
deitei a caminho, á luz lactescente
das lampadas, bem melhores do
que as da minha villa, pobre terra de barbaros,
alumiada ainda pelas estrellas de
Deus e pelas candeias de colza que a intendencia
manda pendurar em postes,
para que as estradas tranquillas não fiquem
de todo abandonadas á treva, propicia
aos duendes e aos ladrões de gallinhas.
Quasi á porta alguem, debruçando-se
amorosamente sobre o meu hombro, segredou-me
palavras doces, mas tão intimas,
tão leves, que me passaram, ficando-me
apenas, no lobulo da orelha, o calor acariciante
do sopro que as trouxera. O que
pensei em um segundo!... Quantos sonhos
idyllicos passaram pelo meu espirito!...
Que vasta e interessante aventura imaginou
minh’alma nesse tempo rapido!... «a
mocinha de Italia a dar-me o seu endereço,
ou outra linda mulher...» Mas uma
idéa feriu-me violentamente--o conto do
vigario. Levei a mão ao relogio e voltei-me
rapidamente. Era um latagão de barba
ruiva e oculos: tinha a cabeça núa, uma
grande fronte tostada, com um calombo
ao meio, purpureo e estriado. Curvou-se
com a cartola nos joelhos, um sorriso affavel
no grande rosto picado de bexigas, e
balbuciou, com enternecimento, como se
effectivamente dissesse coisas ternas:
--Quer o patrão um carro fechado?
Tive impetos de o repellir, mas lembrei-me
de que, para chegar ao meu destino,
era mais prudente confiar-me ás bestas
de um cocheiro do que á providencia
do acaso em horas tão adiantadas.
E, aqui na intimidade inviolavel deste
canhenho, confesso que admirei o homem
vigilante que sahira ao meu encontro com
tanta affabilidade, offerecendo-se para
conduzir-me á casa. Calculei que toda a
gente devia estar enfronhada no morno
leito, gozando a delicia incomparavel do
somno, nessa noite fresca e de chuva.
Além, nesse eremiterio onde repousa o
meu umbigo, ás dez horas, a não ser em
casa de Marianno Gomes, onde se cartêa
impudentemente o lansquenet, com pequenos
intervallos de maledicencia e gole,
toda a povoação, beatamente ceiada e rezada,
dorme. De longe em longe, uma luzinha
treme, traçando no pó soalheiro dos
caminhos uma risca luminosa--é algum
jogador, que se recolhe despojado e tropego,
ou o sanctissimo padre Coriolano, que
anda a correr o aprisco, a ver se alguma
ovelha bale, roída pelo arrependimento do
peccado, que é uma chaga terrivel que a
gente cura com as drogas da philosophia
ou com a boa e sadia camponia, que, mais
do que os santos, sabe levar os seus eleitos
ao Paraiso, por um caminho bem differente
desse que a igreja conspicua e
austera manda que se trilhe--ninguem
mais.
Ás dez horas o somno parece cahir do
céu sobre todas as cabeças justas.
E não é só o homem que dorme no leito
antigo, largo e raso, de columnas torcidas,
com flores e folhagens classicas, forrado
d’alvos lençóes, que trescalam como moutas
de hervas de cheiro ou na palha secca
e crepitante, entre os milhos, com o cão
aos pés e os grillos cantando perto; é o
gado forte e é a ovelha mansa, é a ave
meiga, é a mesma arvore, é a mesma agua,
é a mesma estrella, é o mesmo luar porque,
se a agua murmura e se as folhas
sussurram, bem se póde dizer que são vozes
do sonho das coisas. Velam apenas o
caboré piando no tronco secco ou cruzando
os ermos e as feras bravas que descem
para velar, ou a farandulagem que assalta
gallinheiros ou outros sitios de maior
recato e perigo.
Imaginem o meu espanto, a minha surpresa
quando o cocheiro, fazendo uma
zumbaia e rastejando um gesto para que
eu passasse, deixou-me ver uma fila de
carros molhados, reluzentes, e, em todas
as boléas, sob guardas-chuva lustrosos,
braços que acenavam para mim, num delirio,
e gente, gente a valer, como eu jámais
vira na villa onde passei o grosso da
minha vida, nem mesmo nos dias de feira.
Imaginem o pasmo que me tomou!
Deixei-me levar pelo cocheiro, que correu
a abrir a portinhola, vindo buscar-me
debaixo do seu guarda-chuva, amplo como
uma tenda. Quando afundei nas almofadas
atirando ao homem o numero da casa
de meu tio, na praia do Russell, sahiu-me
dos labios tremulos esta exclamação profana,
mas que exprime admiravel e eloquentemente
o assombro dos meus olhos,
diante de tanto guarda-chuva, de tanta
luz, sem falar no rumor que me ensurdecia:
--Com seiscentos diabos! isto é que é
terra! E com força puxei a portinhola. O
ruivo cacarejou ás bestas e rodámos.
No toldo a chuva torrencial rufava.
II
A casa de Serapião Ribas, meu tio,
melancolica e discreta, sem vizinhos
lateraes, porque a isola um
florido jardim de rosas e, em frente, o
mar espumeja rolando e chofrando por
entre pedras negras, é um confortavel
chalet suisso, de boa construcção--pedra
e cal, com lambrequins e agulhas, pintado
de verde. Penetra-se esse retiro, socegado
e pudico, seguindo as sinuosidades de um
caminho de saibro, onde os passos crepitam,
por entre o perfume sensual das roseiras,
que fazem ao meio um bosque ameno
em torno de uma casinhola rustica, feita
de troncos entrelaçados, com um tecto afunilado,
de colmo, onde meu tio, á tarde, bebe
o seu aperitivo, lendo os jornaes, com as
pernas esticadas sobre o banco de pedra.
Dá accesso á varanda uma pequena escada
de marmore--tres degráus, polidos
e claros como pedras de um movel fino,
porque a gente, antes de pisal-os, raspa
as solas dos sapatos na lamina de um apparelho,
que arranca tudo quanto se levar
collado á palma do calçado. Além disso
estira-se em cima, no limiar, um capacho
de coco, cerdoso e duro, para completar o
asseio. Raspado e brunido, o hospede
atravessa os umbraes da sala nobre onde
os passos afôfam-se sobre um tapete amplo,
ainda carregado de lans e de pelles
de feras que, d’olho acceso e guela escancarada,
esparrimam-se ao peso dos moveis
em inercia voluptuosa.
O interior, obscuro e abafado, cheira a
verniz e a fardos novos. Entretanto o
asseio accusa-se immediatamente pela disposição
e pelo luzimento das molduras
dos quadros, porque a mobilia, que deve
ser faustosa, está fresca e claramente vestida
de housses brancas. Despido só um
tamborete de setim azul, com um bordado
de ouro, representando um corvo marinho,
pensativo, num pé só, com um peixe
no bico.
Enriquecido de um dia para outro em
transacções felizes, meu tio que, em moço,
curtiu a mais faminta miseria, regala-se
gozando pacatamente as delicias da fortuna.
Aferrolhou mil e tantos contos em
apolices, comprou varios predios, e, estirado
agora, resfolga na sua voltaire ampla,
esperando, com um sorriso, o amanhan
e o depois, sem a dura preoccupação
do fim do mez e do caderno das compras.
Tem o pão e o tecto garantido podendo,
de vez em quando, extraviar-se por um
extraordinario de bombance, sem risco
para os dias da sua velhice amparada e
serena.
É solteiro, não porque deteste o casamento--aconselha-o
a toda a gente como
um meio honesto e digno de aperfeiçoar
a especie e consolar o espirito. É solteiro
porque, no seu entender, no «seu modo de
ver» o casamento é uma loteria, e, infeliz
como sempre foi nos kiosques, receia que
a sorte o persiga até junto do pretor e do
sacerdote. Vive com dois criados de serviço,
mais um cozinheiro.
Recebeu-me na sua grande sala de jantar
de carvalho, forrada de encerado inglez--um
lugar de gosto pelos ornatos
dos moveis carregados de corymbos e de
cachos de frutas, entalhados nos espaldares
das cadeiras, nos florões do enorme
guarda-prata, dos bofétes e dos trinchadores
de marmore escuro. Pratos raros
pelas paredes, naturezas mortas, iguarias
a oleo e faianças de Delft e de Caldas--lagostas,
uma enfiada de perdizes, uma
penca de frutas, e, venerando e respeitavel,
entre o luzir da louça, um relogio escuro,
monotono, moroso que, de vez em
vez, range e profundamente bate uma pancada
soturna.
Serapião, meu tio, nessa noite da minha
inesperada apparição, vestia um radiante
robe de chambre de seda. A calva,
nua e polida, resplandecia ao fulgor do
gaz. Tinha diante do papo guloso um copo
cheio de morangos e um calice de Madeira
secco.
Ao ver-me, com a mala e o guarda-pó,
parado no solar da sala, recuou a cadeira
e, com as bochechas tremulas, como um
bolo de creme, roxo de vinho e de gozo,
avançou para receber-me nos braços protectores,
com tal effusão, que desfez todo
o meu vexame, pondo-me logo á vontade
junto a um peito largo e generoso solidamente
reconstituido pelos debentures.
Houve uma corrente de phrases sympathicas.
Por fim, arrastando-me para a
mesa, carregada de porcellanas e soante
de crystaes, que echoavam ao minimo balanço
do soalho, disse: que não contava
commigo; e estranhou que eu não lhe houvesse
telegraphado da Barra ou de Belém,
para que elle mandasse á estação,
receber-me, o seu landau. Dei um salto
por dentro. Pois o tio Serapião... tinha
um landau!
Diante de mim, um rigido criado collocou
vagarosamente uma garrafa de cognac
e um calice. Bebi.
O tio arregalava os olhos immensos;
de vez em quando chupava o labio inferior,
soprava espalmando as mãos ambas
na alva toalha da mesa. Os crystaes tremiam.
E eu falava da roça, da viagem,
dos companheiros, da paisagem accidentada
de serra abaixo.
O mesmo criado que me servira o cognac
trouxe uma chavena de café, que o
tio tremulamente recebeu. O servidor prudente
aparou com a salva, por baixo do
queixo triplice do meu obeso parente, as
gottas que escorriam. Sorvido o ultimo
gole, meu tio roncou de fartura e escorregou
na cadeira, para baixo da mesa,
deixando apenas, para contemplação dos
meus olhos, o seu busto de Vitellio, apopletico
e gordo.
Tentou dizer algumas palavras, mas os
seus labios purpureos tremiam, deixando
apenas fugir um sopro flebil. Cravei os
olhos nelle, quiz sacudil-o, a pouco e pouco,
porém, o sopro foi crescendo e já
era um rosnar--a boca descerrou-se,
a cabeça enorme tombou para o peito
e um ronco sonoro, que encheu toda
a sala, apaziguou o meu espirito. Não
era a apoplexia fulminante, não, não
era... Meu tio dormia o somno cibarico.
O criado do cognac, com um guardanapo
ao hombro, andando na ponta dos
pés, veiu annunciar-me em segredo que o
banho estava prompto. Procurei a mala:
havia desapparecido. Quiz interrogar,
mas já o homem, arrepanhando um reposteiro,
mostrava-me um corredor claramente
alumiado, de paredes luzidas, pintadas
a oleo, com medalhões representando
idyllios.
--Por aqui, senhor.
Baixei a cabeça, e, voltando-me para
falar ao criado, notei que todo luxo da
sala de jantar desapparecera sob uma
treva brusca, onde apenas restavam dois
pingos de luz, e vi um vulto que se esgueirava
como uma visão. O criado soprou-me:
--É ao fundo, senhor.
Agradeci com um gesto, para evitar o
rumor das palavras.
Da sala escura vinha, num diapasão
formidavel, o ronco do meu generoso tio
que o vinho adormecera.
III
Oh meu tio!
Esta exclamação quasi infantil
escapou-me dos labios quando
penetrei o santuario da limpeza. Que
asseio e que fausto! As thermas da cidade
por excellencia deviam resplandecer
assim.
Quem te dera, Lucano, um tanque
como este para nelle abrires as veias!
Quem te dera, altivo poeta, um interior
assim, de tanta claridade e tão sonora
acustica, para reboar com os versos da
Pharsalia com que recebeste a Morte!
Infelizmente a Arte não alcançara o requinte
que hoje possue. Á vista do tanque
de meu tio--onde podia nadar, folgada
e livremente, uma familia de nereidas,
se ainda as houvesse--que figura faria
a banheira do teu suicidio, ó victima
da tyrannia, ó voluptuoso e languido patricio...!
A sala vasta é toda de mosaico miudo,
talhado em triangulos brancos e vermelhos;
o tanque, de bordas altas, tem tres
metros de comprido e dois de largo, e a
gente afunda em um metro e 25 d’agua.
O chuveiro é uma grande cupola de zinco,
pintada de branco, com duas correntes de
metal que imitam prata. A agua jorra
copiosamente das guelas de dois leões de
nickel--uma entorna agua fria, outra vomita
agua a ferver. As paredes, forradas
de marmore italiano, completamente
núas. A um canto, um cabide de bronze
para as toalhas felpudas e o jupon, e, em
frente, numa prateleira, tambem de marmore,
negro e fosco, a bateria d’oleos e
de perfumes; os sabonetes, as esponjas,
escovas e essencias tonicas para hygiene
da pelle e lavagem das gorduras do couro
cabelludo. Ao centro um espelho de nitido
crystal, alto e grosso, onde se pode
admirar a nudez das fórmas.
Para um canto, recatado por um biombo
japonez, uma especie de ádyto, com
um divan de couro, repousando em um
encerado onde a gente estira longamente
os membros emquanto os leões inundam o
tanque. Para aquecer ha uma mesinha
com um serviço de crystal: whisky, cognac,
old-brandy e curaçáu. Um mono de
bronze carregando ás costas um cesto atochado
de charutos e brochuras de um frescor
irritante (a mais pudica que meus
olhos viram abria com uma esplendida
mulher núa, de costas para quem olhava,
os braços roliços passados por cima da
cabeça farta e negra de cabellos) na capa
um distico: Le nu au salon.
Ao fundo, num retiro velado por um
panno de linho escuro, que corria num
varão de ferro, uma caixa envernizada.
Abri e pasmei silenciosamente--era tambem
um objecto indispensavel ao asseio.
Ao lado, numa caixa menor, um maço de
papeis finos. Aclarava esse interior de
gozo um lustre de seis globos côr de rosa.
Feita a visita fechei-me por dentro e,
ouvindo o rumor d’agua que cahia, levantando
um vapor fino como o orvalho, fui
despindo a fatiota, lenta e preguiçosamente,
ante-gozando a delicia da immersão
tépida depois da fadiga de todo um
dia em wagon.
Safando a camisa lembrei-me do ribeiro
poetico da minha villa onde todos
nós da familia, do mais velho ao mais novo,
um depois do outro, por decencia, vamos,
todas as manhans, limpar o corpo e
endurecer os musculos sob a folhagem viçosa
dos cajueiros em flôr.
Nú, como um grego do tempo juvenil
da graça olympica, mirei-me ao grande
espelho que, indecorosamente, me reflectiu
da cabeça aos pés--e achei-me perfeito
e forte e masculo, um modelo rijo
e gracioso de Marte desnudado, um inteiriço
e reforçado exemplar de homem, digno
herdeiro dos Ribas. Sorri com vaidade
para o crystal que começava a empanar-se
com o vapor das fauces do leão
fervente.
A sala estava como uma estufa--era
um banho russo. Corri a refugiar-me
atráz do biombo e estirei-me no divan
fresco e macio servindo-me, em um calice,
da garrafa vermelha que trazia, pendente
do gargalo, uma chapa denunciando:
cognac. Bebi e regalei-me esticando
as pernas núas no couro frio.
De papo para o ar comecei a pensar
na delicia da vida e achei mesquinha a
casa paterna, taciturna e calada, entre arvores
murmurantes, invadida pelas moscas
e pelos gafanhotos, com os corredores
sombrios, atravancados de sellins, ás vezes
visitada pelos bacorinhos que vêm familiarmente
grunhir em baixo da mesa
de jantar, catando os restos do almoço.
Pareceu-me triste e acanhada a existencia
que eu levara nesse valle melancolico
sem agitação e sem conforto, ignorante de
tudo, longe de imaginar que o mundo podia
proporcionar delicias de tal ordem--delicias
como aquella sala de jantar, delicias
como aquelle banheiro, onde meu
tio tonificava as suas banhas e onde eu
ia, emfim, lavar-me para entrar limpo e
lepido na vida nova, buliciosa e surprehendente,
que eu sentia rumorejar ao longe,
nessa grande cidade atravessada, amollecida
e somnolentamente, nas almofadas
fôfas do carro do ruivo. Ia emfim ver o
mundo.
Aquelle banheiro que ali estava era a
pia onde o mais novo, o mais esperançoso
rebento dos Ribas ia, contricto e nú, receber
o baptismo da civilisação, deixando
nagua morna a poeira dos caminhos e a
barbarie da sua alma ignorante e insaciada.
Confesso que tive inveja da sorte de
meu tio e lastimei profundamente os meus
que lá haviam ficado chocando pintos e
debulhando o grão. Que vale uma ninhada
diante de uma mesa como esta que
meus olhos contemplam, carregada de
crystaes rutilantes? Que valem as colheitas
comparadas ao gozo de um mergulho
nesta piscina de marmore que me espera?
Decididamente a grande sciencia do viver
não consiste em saber accumular fortuna,
mas em saber dissipal-a. O ideal do homem
moderno é o filho prodigo. Estou
certo de que a moral não condemna Harpagon
senão porque o miseravel não tinha
noção da sciencia elegante e fina de
dissipar.
Para que ser rico sem um banheiro
assim?...
Serapião, meu prospero tio, ronca, deslisa
para baixo da mesa farta do teu salão
de abundancia, porque estás dando ao
mundo, e especialmente ao teu sobrinho e
herdeiro, uma lição de savoir vivre!
Enchi de novo o calice e bebi, mas engolindo
o sorvo, percebi que me enganara
na garrafa: não era a vermelha, eu havia
tomado a azul: old-brandy.
Desde, porém, que havia quatro, porque
insistir na vermelha? O acaso dirigira
o meu braço e o acaso algumas vezes
opéra sabiamente e governa como uma
bussola. Repentinamente lembrei-me do
banho e não foi sem pena que deixei a
minha posição em decubito, a mais propria
do homem, segundo ouvi dizer a um sybarita
das minhas relações campestres.
Puz-me de pé e, estirando os braços,
todo retorcido como o Laocoonte, afastei-me
do ádyto das libações. Na sala era tão
espesso o vapor, que meus olhos nada distinguiram
a principio--movia-me, como
um deus, dentro de nuvens tenues. Por
fim, sentindo nos pés uma humidade tépida,
notei que a agua transbordava alagando
o mosaico do santuario. Desci precipitadamente
as alças fechando as copiosas
guelas leoninas, mergulhei o braço, puxei
pela corrente do escoadouro e a agua,
que me escaldara, começou a baixar silenciosamente
até que ficou em nivel para
que eu pudesse molhar-me todo regaladamente,
mergulhando e nadando. A fauce
fria jorrou ainda alguns litros para
abrandar a temperatura e o nevoeiro diluiu-se.
Apanhei sobre o marmore negro
um sabonete de Corydalis, uma grande esponja
macia e saltei no tanque. A agua
abriu-se para receber-me e fechou-se ficando
apenas a flux a minha cabeça, fluctuando
como uma boia.
Que delicia! Como senti, nesse momento
suave da minha vida, não possuir
os dotes de Simão Carreira, que tudo canta,
que tudo rima: os olhos castanhos da
Bemvinda e os repolhos planturosos da
horta do Segurado. Elle, de certo, em meu
lugar, acharia uma estrophe sonorosa e
nova para louvar e divinisar a agua benigna
desse tanque; elle, o sempre inspirado,
saberia pagar com um punhado de
heroicos a lixivia e o conforto.
Eu, porém, sem estro, incapaz da mais
insignificante imagem poetica, limitei-me
a esfregar a cabeça, não para acordar a
inspiração adormecida, mas simplesmente
para tirar a poeira... e mergulhei. Quando
vim á tona trepei á borda do tanque
e, á falta de quem me esfregasse, resolvi
fazer eu mesmo a operação e vesti-me todo
de espuma. Tive impetos extravagantes
de correr ao espelho para admirar-me sob
esse aspecto mousseux, mas recuei porque,
Ribas anadyomay, comprehendi que não
me seria facil abrir os olhos--a espuma
escorria em floccos pelo meu rosto.
Atirei-me, de novo, ao banheiro e refocilei
voluptuosamente. A temperatura
baixara sensivelmente quando sahi gottejante
para o pequeno estrado. Enfiei o jupon,
calcei as chinelas de feltro e arrastei-me
até junto da mesinha, onde experimentei
a garrafa verde--whisky. Ia
deitar-me quando bateram á porta. Acudi
com pressa lembrando-me de meu tio
que ficara na imminencia de uma apoplexia.
Indaguei, e uma voz disse-me de
fóra--que a ceia estava servida, ajuntando:
--Aqui tem vosmecê o robe de chambre
para sahir.
Abri devagarinho a porta e estiquei o
braço, que derreou ao peso da investidura
com que eu me devia apresentar á mesa.
Era uma especie de cabaia de seda, debruada
a cairel de prata, com bordados
extravagantes e alamares; mangas immensas
e uma gola almofadada, com forro de
setim côr de perola. Admirei-a e com ella
recolhi-me ao biombo para vestir os primeiros
linhos indispensaveis e calçar os
sapatos.
Sobre a camisa e as ceroulas abotoei a
cabaia que, sentindo a falta das protuberancias
do meu tio, cahiu em dobras molles
ao longo do meu corpo, menos fornido
e mais baixo. Por compostura apertei a
cinta com o cordão de seda. Dividi o cabello,
alisei os bigodes e, derramando na
palma da mão algumas gottas de Cherry
Blossom, plantei-me diante do espelho, revendo-me
sob esse trajo que me dava a
figura classica de um veneziano, como os
que eu vira em gravuras, dentre os quaes
me ficara eterno na memoria o typo veneravel
de Brabantio, pai da incomparavel
e abnegada Desdemona, tão cruelmente
immolada pelo mouro negro.
Cheiroso e fresco sahi para o corredor,
onde me esperava o criado. Seguimos.
A sala de jantar estava de novo illuminada...
mas sem meu tio. Recolhera-se
de certo. Sentei-me só e em silencio.
Havia no ar um cheiro apetitoso de
frituras e de flôres. Dos pratos cobertos
sahia um fumego tenue rescendendo a temperos.
Toda a porcelana florejada tinha
o monogramma do proprietario--S. R.
em ouro fosco.
O criado serviu-me a sôpa e verteu em
um calice de crystal verde um vinho claro,
que bebi com avidez antes da primeira colherada;
e comecei a jantar desordenadamente,
servindo-me de um lombo, com petits-pois,
no momento justo em que o criado
me apresentava um badejete, que repudiei
com desprezo.
Mas o meu ataque mais sério foi á garrafeira.
Não sei dar a razão desse delirio bacchico,
tão singular, tão novo em meus habitos
de sobriedade. Os vinhos attrahiam-me.
Depois de uma aza de frango, que
apenas trinquei, fui sedentamente ao
Bourgogne e enxuguei dois copos. Mas
quando appareceu o Champagne, uma
meia garrafa deitada sobre crystaes de
neve em uma geladeira de prata, tive impetos
de fazer ali assim, para o criado impassivel,
um improviso sobre esse precioso
vinho, que é a alma do festim, o remate
requintado do gozo, o companheiro do
amor. Vinho alambreado que parece cantar
nas taças um dithyrambo de ouro, vinho
impaciente que ferve e espuma, vinho
que tem as coleras do oceano--ambrosia
da nova éra, vinho vivo e intelligente, vinho
que tem alma... e que eu jámais provara.
Bebi sofrego.
Subitamente notei que me sentara na
cadeira abbacial do meu tio. Estava explicada
a minha sêde insaciavel. Os moveis
adquirem os vicios de quem os possue.
Aquella cadeira estava inveterada.
Era repousado em seus braços que meu
tio dormia o seu primeiro somno digestivo.
E foi esse confortavel movel que fez
com que eu sómente readquirisse as minhas
faculdades de ser ás 10 horas da
manhan seguinte, quando me vieram trazer
ao quarto o café e os jornaes.
IV
Lembra-me ter visto em um livro
erudito este conceito:--«A embriaguez
é a poesia da vida digestiva»
e, se ainda me é fiel a memoria,
o sabio que assim se exprime é Letourneau.
Penso que tem razão o philosopho,
porque Simão Carreira, que cultiva, com
tanto esmero, a Arte divina de Apollo, não
despreza as garrafas e os seus melhores
heroicos, os versos intrepidos do seu poema
Os Pincaros da Mantiqueira foram
escriptos emquanto durou um quinto de
Cartaxo com que o brindou o padre Coriolano.
Eu, porém, de imaginação escassa
e tão perro para a cadencia, soffri profundamente
os effeitos da poesia estonteante,
que me poz no espirito uma nuvem
densa e na lingua uma saburra espessa.
Confesso que senti o pudor subir-me
ás faces quando dei com o ar sisudo e grave
do criado, que me apresentava cerimoniosamente
um taboleiro de xarão. Puxei
o lençol até o queixo e, de olhos baixos,
tomei a chicara e, a pequeninos goles, fui
chuchurreando até á ultima gotta. Por
fim, no intuito de quebrar aquella serenidade
fleugmatica do homem, aventurei
sorridente:
--Bem bom café! Decididamente não
ha bebida como esta.
Mas o bruto, impassivel e frio, recebendo
a chicara que eu lhe entregava, sempre
sisudo e grave como um preceptor,
perguntou seccamente se eu queria o banho
morno ou de chuva?
--De chuva, respondi humilhado e corrido.
Que vergonha tive! Parecia-me que
aquelle imperturbavel servidor viera ao
quarto apenas para exprobrar, com o seu
silencio inquebrantavel, o meu procedimento
da vespera. E tinha justas razões
esse criado, porque afinal... que indecencia
para um homem da minha casta, herdeiro
de uma tradição sem mancha, principalmente
de vinhos, porque na familia o unico
que bebe é meu tio, os mais, desde o
meu intemerato bisavô, implicado nas
conspirações patrioticas do Xavier, até
meu pai, nunca foram além do côco do
pote ou da calha da nascente. A adega
dos Ribas, inesgotavel e pura, foi sempre
a limpida fonte dos «Suspiros» numa
chanfradura de rocha, velada por um bosquesinho
de tayobas, fonte cujas aguas
historicas mataram, em tempos, a sêde do
grande Dirceu quando a paixão e a politica
o arrebatavam para os ermos. E ha
ainda hoje fanaticos do poeta que affirmam
distinguir no murmurio da agua o
nome suave de Marilia.
Cheio de vergonha saltei da cama, enfiei
a cabaia e, sem olhar para a alcova
faustosa, desci acompanhando o criado que
me deixou á porta do banheiro.
Lavado e vestido, apresentei-me na
sala de jantar, clara de sol e cheia de um
festivo canto de passarinhos. Accendi um
charuto e, de mãos enfiadas nos bolsos, comecei
a passear de um lado para outro,
assobiando uma aria rustica.
Ia admirar tranquillamente um quadro
de frutas, quando o criado veiu dizer-me,
muito teso, estendendo um gesto nobre
para o exterior:--que meu tio estava
á minha espera no jardim.
Respirei alliviado! Ia emfim fugir aos
olhos daquelle Argos da moralidade. Atirei
fóra o charuto e desci.
Meu tio, todo de branco, com um gorro
de seda á cabeça, agachado, examinava os
canteiros. Sentindo o rumor dos meus
passos no saibro, que scintillava ao sol,
voltou o rosto purpureo e nas suas bochechas
nedias perpassou um sorriso fugitivo.
Ergueu-se resfolgando, com as mãos
papudas cheias de terra, de sorte que não
me atrevi a beijal-as para não macular os
meus bigodes lustrosos e rescendentes.
--Meu tio passou bem a noite?
--Como um abbade. E tu?
--Maravilhosamente...
Elle mirou-me dos pés á cabeça e pareceu
satisfeito com o meu terno de brim
pardo, não desdenhando os sapatos amarellos,
que eu trouxera para «surrar em
casa», como dizia pittorescamente minha
santa mãi quando prégava sobre economia
domestica.
--Que tal o alojamento, Anselmo?
Gabei sem reservas a belleza e o conforto
do tecto hospitaleiro, creio até que
o teria comparado aos palacios maravilhosos
de Aladino e á soberba vivenda de
Sindbad se um homem, com dois enormes
regadores vermelhos, não viesse interromper
o nosso colloquio. Era o Jeronymo,
jardineiro. Parou um momento para dar
a meu tio a boa nova do desabrochamento
das camelias e, radiante, limpando com o
braço o suor da testa, disse que já havia
dois botões das rajadas. Meu tio felicitou-o
e, como o Jeronymo retomasse os
regadores, accrescentou--que as violetas
estavam encharcadas.
--Não ha duvida... não ha duvida,
senhor; ahi vem o sol, disse o homem.
Quem dirá que hontem choveu como choveu...?
A terra está secca e a planta carece
d’agua. Olhe, se eu fosse outro, deixava
as purpuras sem agua... mas vá Vossoria
ver... a terra está mirrada, parece
que a seccaram ao fogo. É verdade que
ali não chove por causa do telheiro.
--E de cravos, como vamos?
--Ainda não os ha, disse o Jeronymo,
consternado, e derreando-se ao peso dos
regadores, foi-se, bradando a um gato que
raspava a terra fofa de um taboleiro.
--Gostas de flores, Anselmo?
--Loucamente, meu tio.
E fomos caminhando para a casinhola
rustica. Sobre o colmo cantava uma cigarra.
--Bom tempo, presagiou meu tio.
Haviamos chegado ao retiro do aperitivo,
onde nos esperava o alcool matutino,
a gotta confortavel que aquecia o estomago
preparando-o para receber o almoço.
Meu tio subiu pesadamente a elevação que
dava accesso ao retiro, e achatou-se no
comprido banco de pedra, que imitava um
tronco d’arvore... e d’ahi, como Satan na
montanha mostrando a Jesus as riquezas
da terra, disse-me--que ali assim estavam
enterrados para mais de tresentos contos.
Eu sacudi a cabeça admirado e murmurei:
--Bem empregado dinheiro!
--Não bebes? Acenei--que bebia e
elle serviu-me. Virámos.
O vasto mar azul, em frente, resplandecia
ao sol. Velas de barcos fugiam, muito
brancas, afflorando a vaga que, ás vezes,
se desfazia numa fita de espuma que
vinha rolando, rolando e desmanchava-se.
Aves pairavam e, subitamente, como se
tivessem sido fulminadas, cahiam nagua
serena. O céu limpido, de uma côr fina e
translucida, estava radiosamente claro. A
aragem fresca vinha cheirando á salsugem
e balouçava as roseiras, perfumando-se
de um novo aroma de jardins, mais delicado
do que a maresia da costa. Dois
pequenotes nús, muito luzidios, iam garrulamente
rompendo o mar, atirando os
braços; subiam na vaga inchada e alterosa,
desciam no cavamento d’agua e riam
como dois jovens tritões que se andassem
adestrando no seio glauco do mar perfido.
E, mais longe, varios cavallos, quasi afundados
nagua, de cabeça alta e inquieta,
eram esfregados por moços que riam ás
gargalhadas; um mesmo, montado, como
um centauro aquatico, obrigava a alimaria
a fazer voltas, nadando, a lembrar o
hippocampo das antigas lendas. Ao fundo
o recorte accidentado e escuro das montanhas.
A cigarra, na grande luz tepida que
dourava o colmo da casinhola, entrou a
cantar e meu tio, encolhendo as pernas
e servindo novos cognacs, enternecido e
lyrico, disse poeticamente para attrahir a
minha attenção, toda entregue ao mar infinito:
--Ouve, Anselmo, a cigarra... está
chamando o sol. E eu, para dar mais força
ao lyrismo, ajuntei, voltando os olhos
para o alto:
--Sim, meu tio: é a cigarra que chama
a primavera.
Ali ficámos muito tempo, num farniente
aprazivel, beberricando, até que o criado
nos veiu annunciar o almoço. Descemos
lentamente. Eu vinha alquebrado de
preguiça e sem apetite, sedento. A agua
de um repuxo, que esguichava, iriada e
cantante, excitou ainda mais a sêde do
meu estomago abrasado. Parei um momento
para admirar a elegancia de um
cysne que circulava com garbo, abrindo,
de vez em quando, ao borrifo fresco, as
grandes azas alvadias, iguaes ás que, outr’ora,
Jupiter lascivamente tomou, em
uma das suas metamorphoses, para cingir
o corpo esplendido de Leda. Atravéz da
agua limpida viam-se as palmouras rosadas
remando com lentidão.
Meu tio, que havia chegado á varanda,
chamou-me. Não quiz partir sem acariciar
a ave airosa e adiantei-me estendendo
a mão para amaciar-lhe o pescoço formoso;
o cysne, porém, selvagem e arisco, entrou
a espadanar com as azas e, escancarando
o bico, a grasnar, poz-se em attitude
ostensiva, atirando-me bicadas. Deixei-o.
Vendo-me partir veiu precipitadamente
até a borda da bacia e, a grasnar,
parecia desafiar-me. Longe, no fundo
do jardim, levantou-se um alarido terrivel.
--São os gansos! disse-me o tio Serapião...
e deixando a balaustrada da varanda:
--Anda dahi que o almoço esfria.
A sala rescendia. A mesa pantagruelica,
alva, nitida e farta encantou-me pela
profusão de flores em jarrões, por entre
os finissimos copos de mussellina, espalhadas
pela toalha e de um aroma tão intenso
que mal deixava sentir o cheiro dos
acepipes. Sentei-me á direita do meu tio
e começamos por um prato que me pareceu
feito de ouro liquido. O criado que
m’o serviu nomeou baixinho:--Mayonnaise.
Fartei-me.
Meu tio, com a boca cheia, olhou-me de
certo modo e percebi que o seu olhar de
epicurista, humedecido e languido, queria
dizer alguma coisa; fitei-o até que engolisse
o bolo que rolava na sua boca de gastronomo,
inchando-lhe as bochechas:
--Um petisco, hein, Anselmo? e passou
o guardanapo pelos beiços reluzentes.
Eu, sem dizer palavra, arregalei os olhos,
sacudi a cabeça e enchi de novo a boca.
Quando bebi o vinho, que rutilava num
calice diante de mim, pronunciei-me francamente:
--Com effeito, meu tio... é um prato!
e elle, attrahindo uma lata de sardinhas,
tambem arregalando os olhos, concordou:
É um prato! A um gesto seu o criado içou
os transparentes; o sol inundou a sala de
uma grande claridade--crystaes e faianças
scintillaram. Os canarios, deslumbrados,
entraram a voar tontos, agarrando-se
ás grades das gaiolas, mas a pouco e pouco,
habituando-se, voltaram á tranquillidade
e foi bastante que um cantasse para
que o chilreio irrompesse estridulo. Pedi
agua e o criado, inclinando-se, indagou
baixinho se eu preferia Vichy ou Apollinaris.
--Do pote, tornei ao solicito.
--Experimenta Apollinaris. Apollinaris
com um pouco de Bordéus, aconselhou
meu tio e, voltando-se para o criado, com
o garfo erguido e cheio de sardinhas:
Abre Apollinaris...
Resignei-me. Momentos depois um estampido
atroou e logo um jorro fervido
inundou meu copo.
--Bebe! Bebe emquanto está quente.
Levei o copo á boca e bebi... mas com que
ancias...! Um effluvio de thermas subia-me
ao nariz. Subitamente acudi com um
guardanapo á boca, mas não tão rapido
que pudesse evitar um escandalo.
--Perdão, meu tio! murmurei corado.
--Não sou inglez. Eu cá não faço cerimonias.
Havias de engulil-o? disse a
rir.
As carnes não me tentaram, mas fui
forçado a mastigar uma febra de roast-beef
e uma fatia de presunto. O tio devorava
tranquillamente, sem levantar os
olhos do prato.
Ao fim do almoço, saciado d’agua, afastei-me
para a varanda. Fazia calor--as
folhas murchavam á luz caustica e ouvia-se
a voz fina do Jeronymo, que cantava
aparando a grama.
Debruçado para o jardim, olhando vagamente,
numa abstracção de todo o
meu ser, comecei a sentir-me invadido
por uma tristeza que me cahia nalma,
suave e melancolica como um crepusculo.
Uma sombra interior velava a radiosa
alegria do meu espirito e sem causa visivel,
porque diante de mim havia a vívida
e resplandecente claridade do sol, o immaculado
azul e todo o verdor viçoso dos arbustos
que as borboletas corriam, sentia
como a aproximação de uma tormenta, as
primeiras ancias da lagrima.
Indecifravel phenomeno o da visão da
ausencia!...
Um véu espesso passou-me pelos olhos.
Tudo que a minha vista alcançava desappareceu
num momento e vi, como em scenario,
num longinquo horizonte nebuloso,
aereo, a paisagem silenciosa da minha
terra, no valle fresco e verde, no fundo
do qual escorre, quasi sem bulha, o corrego
das Almas, que vai de sitio em sitio,
abeberando as hortas e os rebanhos, sempre
manso e sempre claro, que não o toldam
senão as flores dos espinheiros que
o margeiam, e essas, pobresinhas! com
um leve fremito d’agua, desfazem-se, desapparecem
e passam quasi invisiveis como
um pollen subtil.
E a minha casa, além! bem visivel,
branca no verdejante pomar, e gente na
eira e gente pelos caminhos, os meus com
as suas feições tão nitidas, tão perfeitamente
accentuadas, que eu os fui reconhecendo
a um e um, como se os visse, não
atravéz da miragem meiga de minh’alma,
mas na verdade fiel da vida que além vivem.
Repentinamente a visão diluiu-se.
Alguem chamava-me baixinho--voltei-me.
Era o criado:
--O senhor seu tio pergunta se não
quer ir á cidade?
--Dize-lhe que vou... e, dissimulando,
passei rapidamente o lenço pelos olhos.
V
Quando desci, aprumado e airoso
no meu terno de cheviot claro,
meu tio roncava na casinhota do
jardim, com a cabeça descahida sobre o
recosto do banco, o papo em evidencia,
todo molhado de suor e rubro, a boca aberta,
os braços pendentes num abandono
flaccido. A cartola repousava sobre a mesa
e o precioso unicornio, encastoado de ouro,
jazia aos seus pés como um cajado
vulgar.
A impaciencia e a temperatura da
hora tepida, macia e somnolenta haviam,
por assim dizer, narcotisado o pobre homem.
Da janella do meu quarto para onde,
de instante a instante, elle levantava
os olhos anciosos, eu o via caminhar ao
sol, com enormes bocejos, riscando a areia
com a ponta da bengala. Subiu e desceu
lentamente as áleas do jardim, por fim
perdeu-se e só o vi depois nessa posição
pacata, refestelado, a dormir á sésta como
as roseiras dormiam no silencio canicular
desse meio-dia abrasado, murchas, enlanguecidas,
emquanto a terra incançavel infundia-lhes
a seiva vivificante para que,
mais tarde, ao frescor vesperal do crepusculo,
os botões despertassem e distendessem
as petalas, abrindo-se.
Á porta estacionava uma victoria. O
alto cavallo, negro e luzidio, escarvava fogosamente,
picado pelo sol. Meu tio grugrulejou
como se sorvesse uma golfada
quente e esfregou os olhos.
--Boa sésta, meu tio. Elle ergueu-se
molle, com os braços abertos em cruz, o
ventre empinado e falou espremendo-se:
--Boa estafa é que foi. Que diabo
estiveste fazendo até agora? Sacou o relogio
e mostrou-me: Uma hora da tarde.
--Um trabalho para descobrir a roupa,
meu tio. Arranjaram-me de tal modo
a mala que, para encontrar um par de
meias, tive de despejal-a.
Meu tio mirou-me detidamente e, com
satisfação e vaidade, li no seu olhar--que
me achara digno. Tomou a cartola e eu
apanhei o unicornio para poupar-lhe o sacrificio
de abaixar-se.
--Está quente! disse limpando a
fronte.
--Um dia de fogo, mas lindo!
--Lindissimo! Deu um puxão ás calças
olhando o céu.
--Vamos, Anselmo.
Durante o caminho parou diante de todos
os canteiros examinando carinhosamente
as flores, decepando galhos seccos,
com uma solicitude bondosa. O criado correra
a abrir o portão. Sahimos.
Ah!
As interjeições são pequeninas syntheses.
Como em um atomo o olho do sabio
descobre todo um mundo de complexidades,
nas interjeições o arguto espirito de
um grammatico descobriria todo um romance,
se quizesse, e facilmente o reconstituiria.
As grandes emoções manifestam-se
pelo laconismo monosyllabico dos oh! e
dos ah! Concisas, como são, dizem mais
do que os periodos e supprem, com vantagem,
o complicado artificio de que lançam
mão os escriptores, artificio que nem
sempre é bastante para exprimir o que
sentem e raras vezes auxilia a externar o
que pensam. Ah! e Oh! hiatos insignificantes,
mas analysai-os, profundos mestres.
Diante de um quadro de Rubens--ah!
e nada mais, alguns manifestam deste
modo o seu pasmo; diante de uma mulher
formosa oh!--oh! soturno e commovido,
que o agudo só tem applicação nos momentos
de terror. A tragedia do panico
tem a sua clave: uh! Othello: oh! Macbeth:
uh! Ophelia... ah! suspiroso; os Sete Infantes:
ôooh! Mesmo no amor encontrareis
um ah! tremulo e doce. O suspiro é
um ah! isolado e, como dizem os pessimistas
que o riso é ainda uma fórma da tristeza,
a gargalhada é um rosario de suspiros.
Ah! e nada mais foi o que me fugiu
da garganta quando me sentei nas almofadas
de damasco côr de vinho da victoria
de meu tio. Que regalo! E, em verdade,
que podia eu dizer que désse exactamente
a impressão de aconchego que senti quando
me aprofundei mollemente no macio
assento? Que podia eu dizer que traduzisse
o gozo, quasi sensual, que experimentei
senão o que veiu espontaneamente
aos meus labios: ah! um doce e demorado
ah! que me ficou muito tempo a brincar
na boca e que eu acompanhei com uma
mimica fantastica--olhos arregalados,
braços abertos como se me balouçasse em
ondas... Ah!
E meu tio comprehendeu porque voltou-se
immediatamente dizendo:
--Molas excellentes, hein?
--Excellentes, concordei hilariante e
baboso; excellentes, meu tio, e, sem que
elle percebesse, levantei-me um poucochinho
e deixei-me cahir para ter o gosto de
afundar como afundei.
O cocheiro, um inglez, magro, raspado,
retezou-se na boléa tenteando as redeas
para soffrear o cavallo negro que pinoteava.
--S. Francisco, disse seccamente meu
tio e logo rodámos.
Estiquei as pernas mergulhando os pés
no pellego felpudo.
--Não fumas, Anselmo? E as mãos
papudas offereciam-me charutos. Esgazeado
e hirto de espanto entalei-me no
fundo do carro. Pois meu tio... a offerecer-me
charutos...! É uma cilada, disse
commigo. Meu pai, com a sua moral primitiva,
entende que fumar é um vicio
execrando para os moços, principalmente
em presença dos mais velhos. Em casa,
quando me tenta o desejo de tragar uma
fumaça, corro ao meu quarto e fecho-me
ou desço ao pomar para não ir de encontro
ao preceito paterno, que é uma herança
dos maiores. Educado em principios
de tanta austeridade, agradeci os charutos.
Meu tio, porém, insistiu:
--Fuma, homem; já não és criança,
disse num tom cheio de sinceridade que
varreu do meu espirito o resto de escrupulos.
Fuma--e entregou-me um charuto.
Ainda assim, senti certo vexame, elle,
porém, insistiu novamente, animando-me.
--Não tens phosphoros?
--Sim, meu tio; tenho aqui. Accendi
o charuto e baforei para o mar a primeira
fumaça dando as primicias do meu havana
ao respeito, como os antigos pastores
offereciam a Deus as primicias dos
seus rebanhos, depois recostei-me, fumando
ante as barbas grisalhas do irmão de
meu pai.
O Rio começava a apparecer-me. A
victoria corria cruzando-se com outros
carros elegantes, onde iam senhoras faustosamente
vestidas. Dos bonds espiavam-nos
com interesse curioso. Eu encolhia-me
para que me não vissem, ia ali assim
como um deus num nicho, apenas visivel
para os que, como eu, passavam luxuosamente
em carruagens e que nos procuravam
reconhecer. Meu tio, habituado ao
luxo, ia indifferente, todo preoccupado
com o seu charuto; eu não, mostrava-me,
queria que as mulheres olhassem para o
meu rosto rosado e fresco, para os meus
olhos femininos, para os meus labios purpureos
e carnudos, para os meus bigodes
sedosos, para o meu largo peito forte, e
que reconhecessem em mim um modelo de
homem, um remanescente da idade morta,
quando a força era divinisada e o musculo
merecia poemas; um solido e masculo
exemplar de sertanejo capaz de
amal-as com mais ardencia e com mais
impetuosidade do que esses rapazes pallidos,
de olhos tristes, que passavam acabrunhados
e exhaustos, sem viço, sem enthusiasmo,
frouxos e melancolicos, sugados
pelo vampiro da anemia, derreados
pelas vigilias devassas.
A victoria parou. Saltámos e eu, curioso
de vêr e de admirar maravilhas,
olhei em volta. Era uma grande praça
quadrada e clara, murada pelos edificios
que reverberavam á luz radiante do sol.
Ao meio, sobre um pedestal negro, a estatua
tosca de um homem, numa attitude
cheia de solemnidade, a mão estendida
num gesto classico de tribuna, como a allegoria
iconica do meeting que é, em nossos
dias cultos e morigerados, o escoadouro
da inoffensiva indignação das massas.
Meu tio, indicando-me a effigie escura,
disse:
--José Bonifacio, o patriarcha da
nossa independencia e da tribuna dos comicios.
Admirei reverente o patriarcha, rijo,
inflexivel, immovel no seu molde perpetuo
de bronze, como a imagem do patriotismo
isolada na vasta ágora, para exemplo
das gerações. Meu tio, descrevendo
com o seu unicornio um hemicyclo no ar,
falou para despertar o meu civismo:
--Olha, Anselmo, de um lado a religião,
Deus e o mysterio. É a ala santa
do perimetro do nosso patriota--e levantou
a bengala. Meus olhos seguiram a sua
indicação e viram no alto da torre um
gallo rutilante. Tive impetos de pedir a
significação da emblematica... Seria, por
acaso, a figuração do bicho que cantou tres
vezes despertando a consciencia de Pedro
na grande noite triste de Gethsemani?
Mas meu tio já havia baixado a bengala.
--Aquillo que ali vês ao fundo, Anselmo,
é a sciencia.
Um casarão alvadio com um terraço á
frente. Mal tive tempo de admirar porque
a voz grave do cicerone já pronunciava:
--Á esquerda, o commercio, a industria,
o movimento... Com effeito a vida
parecia decorrer do ponto indicado--bonds
chegavam despejando gente, partiam
cheios; carros cruzavam-se: era um
vozear confuso, indistincto--pregões,
appellos, silvos, tilintar de campainhas,
brados. Olhei atordoado. Meu tio voltara-se
para a estatua e contemplava-a extatico.
--Grande homem! disse eu.
--Grande patriota! accrescentou meu
tio e voltou-se com a bengala em riste,
risonho, mostrando-me uma rua em frente:
--Conheces?
--Não, meu tio, mas noto que está
cheia de gente--parece que vem por ahi
abaixo um oceano popular para revindictas.
--É sempre assim, disse e, com lentidão,
abriu a sobrecasaca e tirou do bolso
profundo um maço de papeis. O sol abrasava
pondo-me pruritos na carne e meu
tio, calmo e tranquillamente, suando e resfolgando,
consultava os papeis. Por fim
atafulhou com o maço no bolso e, vagarosamente,
desdobrou diante de meus olhos
uma folha de papel azul e, indicando-me
uma phrase com o dedo grosso, sorriu mirando-me.
Era uma carta minha e o que
ali estava debaixo do pesado e humido indicador,
era apenas isto--«ver a rua do
Ouvidor». Sem ler mais, estremecendo,
cravei os olhos na rua... e, sem uma palavra,
mudo, abatido, como se me tivessem
dado uma noticia de morte, suspirei.
--Uma surpresa, hein?
--Uma desillusão, meu tio, disse eu,
murcho. Mas o sol ardia. Quasi torrados
fomos caminhando para a desillusão, porque
ali, ao menos, havia sombra e fresco.
Eu ia consternado.
--Mas então... que te parece?
--A mim?
--Sim...?!
--Ah! meu tio... Póde ser que esta
rua seja uma maravilha, mas infelizmente,
antes de vel-a, antes de pisal-a, eu a
sonhara... e o sonho, que é uma visão do
mysterio, vai sempre além da realidade.
--Então... que esperavas tu?
--Eu? uma avenida como as que tenho
admirado em gravuras, como as que
tenho visto descriptas: com grandes casas
apalaçadas, ruas cuidadosamente calçadas
de marmore... architectura e gosto,
arte e elegancia, e largueza sobretudo, meu
tio; largueza, muita largueza... Um velhinho
magro, esgrouviado, com um amplo
casaco côr de castanha, surrado, tomou
a frente a meu tio estendendo-lhe
ambas as mãos, pallidas como as de um
cadaver. Encostaram-se a uma vitrina. O
velho sacou do bolso uma enorme carteira
e foi desdobrando papeis, cochichando,
com risinhos. Meu tio approvava com ar
digno, coçando o papo. Parado em meio
da rua, olhando, eu sentia cahirem dentro
em mim, um a um, todos os meus sonhos
ingenuos de roceiro. A multidão cruzava-se
num formigamento activo; grupos
chocavam-se. Havia constantemente um
chapinhar de solas, fru-fru de sedas e, de
longe, como um hausto perenne e sofrego,
vinha um aáah surdo... De vez em vez
parecia-me ouvir o rumor cadenciado e
longinquo do desfilar de um exercito.
Sentia-me attrahido pelo luxo dos mostradores.
Meus olhos esmerilhavam, rebuscavam,
examinando as casas, da soleira
á cimalha, penetrando-as, varejando-as indiscretamente
com uma ganancia de imprevistos,
com uma avidez de novidades...
mas desciam desenganados porque a rua
que eu antevira, a rua que eu sonhara...
Ó divinos jardins suspensos! ó avenidas
de loureiros e de anemonas! como estais
longe da esplendida passagem que meus
olhos viam em arroubos, quando me punha
a pensar nesta viagem ao Rio e realizava,
embevecido, de olhos fechados, deitado
na relva, tamborinando no ventre, o
meu passeio elegante pela calçada de marmore
branco, refrescada, duas vezes ao
dia, com esguichos d’agua de rosas. Não,
decididamente eu não tinha razão--o que
eu estranhava não era a rua do Ouvidor...
todo esse pungitivo sentimento que me
opprimia vinha da morte de uma illusão.
Para os que não viram, para os que não
sonharam coisa melhor, a rua é admiravel;
mas para os que podem estabelecer
confrontos, perdoa-me, arteria da civilisação
patricia, perdoa-me, avenida da elegancia
e do espirito fluminense, não passas
de uma viela atarracada e sordida. O
velhinho inclinou-se de novo com as mãos
estendidas e meu tio voltou a occupar
junto a mim o seu posto de elucidario.
--Então, Anselmo?
--Estou procurando o encanto, meu
tio.
--Descança, descança, disse tomando-me
o braço, elle é que ha de procurar-te.
E estacando mostrou-me a rua com o mesmo
gesto com que, em casa, do alto da casinhola,
me havia mostrado o seu jardim:
Então isto não te impressiona?
--Não, meu tio... e digo com sentimento.
--Esperavas alguma coisa como o boulevard
des Italiens, como a calle Florida?
acudiu Serapião, versado em guias.
--Coisa melhor! muito melhor!
O elucidario lançou-me um olhar carregado
de pasmo.
--Contaram-me tantas maravilhas desta
rua que não é muito que eu me confesse
desilludido, porque o sentimento que,
em verdade, subjugo é de indignação, a
mais justa indignação contra todos quantos
me atordoaram o espirito com exageradas
fantasias e soberbas descripções de
um fastigio incomparavel. Em casa de
Marianno Gomes, o Dr. Gusmão, promotor,
que parava, de vez em quando, alguns
nickeis, no seu feminino palpite--a sota,
durante uma longa noite de azar e de chuva,
encurralando-me no vão de uma janella,
falou-me, com a sua eloquencia de
jury, longamente, calorosamente, ácerca
da rua do Ouvidor, contando-me aventuras
que havia gozado em companhia de
um desembargador, homem culto e de gosto.
Foi quem mais alarmou o meu espirito
ingenuo, foi esse orgão da justiça publica
o mais perverso e cruel dos mystificadores.
O padre Coriolano que, de longe
em longe, vem gozar no Rio um mez de
inverno, disse-me, uma vez, em casa da
Maria Balbina, que isto era como a Suburra
de que fala Horacio: um lugar de
vicios. Marianno Gomes, mais franco, explicou-me
numa phrase sobria e devassa:
«Que para a pandega não havia igual...!»
Mentiram todos: a lei, a religião e a
batota. Isto é uma miseria! Nem aventuras,
nem Suburra, nem pandega!
--Espera, attende, acalma a furia, Anselmo.
Se ainda não a conheces! disse
meu tio com um sorriso malicioso. A rua
do Ouvidor tem o seu segredo de attracção
e de enlevo como certas mulheres que,
apezar de feias e avelhantadas, vivem
perseguidas pelos adoradores. Has de concordar:
ha mulheres taes; a razão? o motivo?
dize... Dei de hombros e meu tio
explicou com arreganho--um encanto
particular, Anselmo, coisas... Depois, recompondo-se,
voltou a falar com gravidade,
fitando a rua: Não é bella, concordo.
Vê-se que não foi traçada por um Haussmann,
mas lá encantos isso tem ella... É
preciso viver, conhecel-a, penetrar-lhe o
segredo. Não estou longe de pensar comtigo.
Isto é um becco.
--Um becco! corroborei com desprezo.
--Mas queres saber a razão principal
da sua nomeada? inclinou-se olhando-me
vesgo. É que ella é o centro da vida nacional.
Descolámo-nos para respirar, elle,
porém, puxou-me de novo: Todos os grandes
factos da nossa politica e da nossa litteratura
derivam da rua do Ouvidor--ella
é o estuario que recebe todas as correntes,
o centro para onde convergem todas
as forças activas da nação e donde se
escoa a seiva intellectual...
--A seiva intellectual!... exclamei recuando,
e meu tio, impassivel, acastellado
na sua convicção, repetiu abanando com
a cabeça:
--Pois não... pois não, seiva intellectual.
E continuou: Tens ali a imprensa,
e levantou a bengala para uma sacada
onde havia uma comprida taboleta negra
com grandes letras brancas--e, passeiando
a bengala como um ponteiro, proseguiu:
o commercio, a industria. Firmou-se passando
o lenço pela fronte gottejante: O
cambio, as leis, tudo quanto orienta e desorienta
o Brasil sahe daqui...
--É o laboratorio, commentei com ironia,
e meu tio aceitou:
--O laboratorio, pois não. Mais ainda,
vou mais longe. A meu ver a nossa
fórma de governo é a rua do Ouvidor, a
nossa religião é a rua do Ouvidor--as
constituições, os figurinos e os actos de fé
sahem deste becco. Isto é a pia lustral
que consagra os factos e os homens. Esta
rua echôa todos os successos do mundo
como na vida physiologica o cerebro, por
um phenomeno de repercussão nervosa,
reflecte todas as sensações do corpo. Meu
tio, cançado do rasgo scientifico, aspirou
largamente e tossiu, mas a facundia voltou:
As mulheres, para imporem a sua
formosura, descem e sobem a rua varias
vezes. Ha um talento prodigioso por ahi
além... quem o conhece? Ninguem! Quantos
poetas vivem ignorados por esses recantos,
sem jámais alcançarem a gloria da
publicidade?
--O Simão Carreira...
--Sim, o Simão... Ha por acaso alguem
que conheça o Simão?
--Eu, meu tio. Conheço-o e admiro a
sua inspiração, sempre nova e fertil.
--Mas... tu és uma parcella insignificante.
Para immortalisar um homem só
o suffragio collectivo, e a urna aqui está.
Tenho certeza de que o Simão, com um
dia de rua do Ouvidor, faria mais pela
gloria do seu estro do que tem feito com
28 annos de trabalho modesto no canto
obscuro de Tamanduá, entre os milhos.
Bastava que recitasse dois ou tres sonetos.
E meu tio alongou o braço: O caminho
da gloria é este, Anselmo.
--Não é feito de rosas, meu tio.
Davam tres horas e o calor escaldava.
Meu tio propoz um grog gelado, no Paschoal.
Iamos caminhando lentamente
quando dei com os olhos em uma esplendida
mulher loura, alva e rosada, de preto.
Nos cabellos dourados uma especie de diadema
régio, com duas cristas de pennas
vermelhas, como no gorro do Mephistopheles,
que eu vira, em tempos, numa illustração
de Natal.
--Linda mulher, meu tio!
--Divina! concordou elle estacando
para admirar. A loura aproximava-se coleando
por entre a multidão, attrahindo
os olhos lubricos, altiva, indifferente, com
um andar soberbo de rainha, o collo farto
escondido por um grande leque de plumas
escuras, que ella agitava com languidez,
como uma grande aza. Passou por nós e
tive apenas o tempo de vêr a côr innocente
e doce das suas pupillas azues, mais
claras do que a celagem da altura e ainda
mais suaves, a boca, pequenina e vermelha,
uma curva sanguinea e humida. E o
aroma que ficou á sua passagem, que delicioso!...
Linda mulher! tornei voltando-me
para admirar o airoso passo cheio de
magestade e graça.
--É uma esculptura...
--Uma esculptura, meu tio. E, trincando
o beiço, nervoso, tornei á phrase:
Linda mulher! com effeito... Mas meu
tio, que adiantara alguns passos, vendo-me
parado a olhar, absorvido no vulto que
desapparecia, chamou-me:
--Vem dahi. Vamos ao grog, que está
quente a valer.
VI
Fomos descendo com vagar por entre
a turba, ora collando-nos ás
paredes, ora desviando-nos para
o meio da rua para dar passagem ao feminino.
Meu tio, apezar da sua corpulencia
anafada, esgueirava-se sorrateiro e
agil, sem perder a linha correcta que lhe
dava o ar distincto de um diplomata em
férias. Eu, porém, atordoado e zonzo, parava
de instante a instante, evitando os
esbarros e as collisões.
Uma rotunda senhora, de roxo, o rosto
placido e sumarento, côr de goiaba madura,
olhos fundos, de um brilho fulvo e
máu, estacou diante de mim, ameaçadora
e terrivel, inchando as bochechas molles,
suffocada de ira. Precipitei-me para lhe
dar caminho, mas com tal desazo, que nos
encontrámos, frente a frente, numa umbigada
tremenda. Foi horrivel! O vexame
tirou-me de todo a calma. Dei um salto
para a esquerda e encontrei a senhora,
fugi para a direita, e ella... Assim estivemos
um bom par de segundos num balancé
ridiculo, até que fui repellido para
o meio da rua, exhausto e com o chapéu
na mão. E a senhora passou como uma
avalanche, resmungando coisas atrozes
contra mim. Ó divino De Maistre, queria
que visses esse exemplar nedio e colerico
do teu «bello animal», queria que o tivesses
um minuto diante dos olhos para que
me dissesses depois em que casta dos belluinos
o classificarias.
Livre, respirei um momento, enxugando
o suor que rolava copiosamente pelo
meu rosto e, ancioso, perdido, alonguei os
olhos procurando meu tio.
A multidão... a multidão... a promiscuidade
terrivel... todas as variadas escamas
desse camaleão--o povo (como
disse uma vez em discurso o verboso promotor
Gusmão, referindo-se ás mutabilidades
da opinião popular, á versatibilidade
da alma collectiva)... tonteava-me e
meu tio, a preciosa escama celibataria e
farta, sumida, longe da minha vista...
Dei alguns passos attonito, desvairado,
julgando-me perdido no oceano tumultuoso
da populaça que me aturdia: os homens,
com os seus cotovellos, as mulheres,
com os seus olhos, com os seus cabellos,
com o aroma que deixavam ficar no ambiente,
como um pollen invisivel para fecundar
o amor. Por fim, reconheci a voz
de meu tio:
--Ó Anselmo!
Voltei-me ancioso e descobri-o á porta
de uma casa, acenando-me.
Corri pressuroso e, mal nos encontrámos,
desabafei: Que rua, meu tio! Que
garganta! Que inferno!
Elle sorriu, sacudindo com um piparote
alguma coisa que trouxera da multidão
na golla do casaco, e, naturalmente,
puxando-me pelo braço, collocou-me junto
de umas caixas de biscoutos, ao lado
de prateleiras carregadas de puddings e
de frascos bojudos de geléas inglezas.
--Vamos ficar por aqui. Não ha mesa
por emquanto. Lancei um olhar de exame
á casa. Era uma sala vasta, dividida ao
meio por uma linha resplandecente de columnas,
de quatro faces, forradas de espelhos.
O fundo era um grande espelho
corrido do solo á linha branca do estuque,
reflectindo, aprofundando o interior, rumoroso
e cheio. As paredes, de alto a baixo,
carregadas de garrafas; por dentro de
um balcão de marmore e nickel, dois homens,
em mangas de camisa, sacolejavam
cocktails; ao centro, uma comprida mesa
de serviço. A outra parte da sala era reservada
á pastelaria e aos confeitos. Pelas
vitrinas, frascos de compotas, latas de
conservas; sobre o balcão pratos de fios
d’ovos, bolos, tortas; nos mostradores semi-abertos
alfenins e doces miudos, loiros:
de creme; escuros: de chocolate, polvilhados
de amendoas; pastilhas em bocaes
enormes.
As portas estavam entulhadas de queijos,
de salames e de linguiças e nos armarios
de exposição os finos bombons em
caixas artisticas, ornadas de chromos e polichinellos
empanturrados de amendoas,
sacolas e outras coisas de formas extravagantes--tartarugas,
caixas de phosphoros
e um Bismarck pançudo com o nome
Boissier no retrospectivo lugar das palmadas
na infancia, dos pontapés na virilidade.
Um grande aquecedor de empadas, rodeado
de homens que mastigavam gulosamente.
Do tecto, presas por fios negros,
pendiam lampadas electricas.
Não havia uma mesa--todas cheias.
Grupos de rapazes, os cotovellos fincados
no marmore negro, gesticulando, falando
alto, riam espremendo siphons. Senhoras
cerimoniosas, com o véu levemente arregaçado,
chuchurreavam sorvetes. Em uma
mesa um rapaz loiro, imberbe, inclinado
para o companheiro, pallido, de pince-nez,
lia baixinho umas tiras de papel, levantando
o braço direito em gestos supremos,
todo arregaçado--o companheiro tinha
os olhos perdidos no fundo do copo. Caixeiros
azafamados passavam com bandejas
carregadas, abriam garrafas, serviam
pratos. Havia um rumor confuso e, de
quando em quando, um berro: cognac! um
nome: Barroso! e estouros de garrafas
desarrolhadas, estrepito de louça, tinir de
talheres...
Meu tio, que se voltara, disse-me confidencialmente:
--Tens aqui o Paschoal!
--É soberbo...!
--É chic.
De repente abandonou-me e foi-se precipitadamente,
de esguelha.
--Com licença! Com licença! para a
direita, para esquerda, porque era preciso
incommodar os que faziam pacatamente
a sua hora de lunch ou de vermouth, para
dar passagem ao seu prodigioso ventre;
e foi seguindo até o fundo da casa, junto
ao grande espelho.
--Temos aqui uma! Temos aqui uma!
disse, chamando-me. Já havia tomado
duas cadeiras quando um sujeito magro,
de cavaignac, avançou com um petiz ao
collo, babujado de creme. Falou com a
boca cheia: «Se lhe podia ceder uma cadeira?»
Mas meu tio, com um sorriso,
voltou-se, designando-me ao do cavaignac,
como se lhe quizesse significar: «Bem vê
que não é possivel, tenho aqui meu sobrinho.»
O homem agradeceu e foi-se com o petiz
que chalrava, pedindo coisas, com os
braços estendidos. Sentámo-nos. Uf!
--Uma estafa, hein, Anselmo?
--Uma estafa, meu tio!
--É sempre assim. E a um caixeiro
que passava com uma bandeja de sorvetes:
--Ó Barros...
--Volto já, senhor commendador. Volto
já. Foi-se, equilibrando os copos e meu
tio, descançando o chapéu numa vara de
metal que corria ao longo do espelho, bufou
esbaforido:
--Está quente!...
--Um forno!
--Amigo commendador, disseram, e
eu, pelo espelho, avistei um rapagão de
fartos bigodes loiros, pince-nez, sobrecasaca
e calça clara, que arriava a cartola
cumprimentando meu tio. Falava a umas
senhoras dando palmadinhas de carinho
nas bochechas de um pimpolho, que amuava
ao collo de uma negra retinta, com uma
touca de seda, donde pendiam até os pés
duas largas fitas cinzentas. Meu tio correspondeu
com affabilidade offerecendo-lhe
a mesa, onde, até então, sómente havia
as nossas bengalas cruzadas. Elle espalmou
a mão--que esperasse.
--Quem é, meu tio?
--O Dr. Gomes de Almeida, advogado.
Moço de talento e rico.
--Bello rapaz.
--Boa prosa. Has de ouvil-o. Voltei-me,
porque meu tio afastara a cadeira e
já estava de pé. O Dr. Gomes, radiante
e de braços abertos, apertou-o com intimidade.
--Meu sobrinho Anselmo... O Dr.
Gomes de Almeida, meu amigo, apresentou
meu tio. Trocamos um aperto de mão
e sentámo-nos. O caixeiro, que voltava,
inclinou-se passando pelo marmore uma
toalha felpuda:
--Que ha de ser, Sr. commendador?
--Tres grogs.
--Não, não, acudiu o doutor--para
mim, um cocktail. É a minha hora e em
questão de habitos não transijo.
--Dois grogs e um cocktail, repetiu o
caixeiro, deixando sobre a mesa um cartão
minusculo. Meu tio, dirigindo-se ao
doutor, disse indicando-me:
--É a primeira vez que vem ao Rio.
--A primeira vez! exclamou elle, cravando
em mim os olhos claros.
--Estive aqui em janeiro de 72, cinco
dias apenas, em um hotel. Grassava a
febre amarella e meu pai, que viera para
matricular-me em um collegio, ao fim de
tres dias, resolveu abalar, aterrado, preferindo
conservar-me ignorante, mas vivo,
a seu lado, para governo das suas terras.
Fugimos, e justamente no dia da
nossa partida, no quarto proximo ao que
habitaramos, faleceu um jovem americano
electricista, que viera ao Rio por conta de
um syndicato, tratar de uma empreza de
campainhas. O correspondente, que nos
escreveu, felicitando-nos pela retirada
prudente, falou do pobre forasteiro dizendo
que na agonia entrara a declamar
em inglez umas coisas gementes, que mais
tarde soube, pelo Dr. Azambuja, serem
versos de Longfellow. Esse americano
agonisando solitario entre os tabiques de
um quarto de hotel, revendo na agonia as
paisagens da Evangelina, nostalgico na
suprema angustia, nunca mais me deixou
o espirito. Apezar de o ter visto apenas
uma vez, á mesa, não esqueci os traços femininos
do seu rosto, de uma tez dourada
e rosea, macia e branca como a de uma
mulher. E tomei em tal horror o Rio que,
apezar das reiteradas instancias de meu
tio, fui-me deixando ficar entre as minhas
arvores, onde não chega a peste.
--E ainda receia? inquiriu o doutor,
sorrindo.
--Não tanto, mas na multidão parece-me
ver passar, de vez em vez, o americano
pallido, desvairado e hirto. Para mim
essa visão de allucinado é como um presagio
de peste e, sempre que me falam de
alguma victima do terrivel mal, vejo immediatamente
levantar-se diante dos meus
olhos o desgraçado moço recitando:
/*
In the Acadian land...
*/
--É extravagante, disse o doutor. É
um bello caso de impressionabilidade.
O caixeiro fez deslisar pela mesa uma
bandeja carregada de copos.
--Dois grogs e um cocktail...
O doutor sorveu um trago e, depois de
chupar os bigodes, perguntou com interesse:
--E como tem achado a cidade?
--Pouco tenho visto: cheguei hontem...
Mas meu tio interrompeu com uma
expressão concludente:
--Não gosta. Sonhara coisa melhor.
--É geralmente o que succede. Deu-se
commigo o mesmo facto, disse o doutor.
E voltando-se para mim: Imaginava
o Rio uma cidade artistica, monumental
e nobre, com abundancia de marmores,
avenidas, longos passeios abrigados sob
toldos, palacios de estylo e o fausto classico.
A cruzarem-se pelas ruas carros, cavalleiros;
o luxo incomparavel do sonho,
a sumptuosidade da fantasia, o espirito,
a elegancia, a belleza, e encontrou uma cidade
vulgar, sem nada absolutamente do
que lhe emprestara a sua imaginação, não
é exacto? Sorri, mexendo lentamente o
meu grog.
--Commigo succedeu exactamente a
mesma coisa. Quando daqui parti, em 80,
para ter o prazer de pisar o solo trilhado
pela humanidade nas suas marchas atravéz
do tempo, desde a éra aryana até o
periodo em que se moveram da terra de
França, para as campanhas ambiciosas,
as legiões que seguiam a aguia altiva de
Napoleão, fui perdendo illusões a pouco e
pouco. Era já com tristeza que descia a
escada do navio quando chegavamos a algum
porto, porque levava de antemão a
intima certeza de que ia ver aluir-se um
dos meus sonhos--e era fatal.
Paris, por exemplo--é um assombro,
incontestavelmente... um assombro! Infelizmente,
porém, o Paris que eu imaginara
era o antigo, que eu vira descripto
nos primeiros romances que me entretiveram
as horas de mocidade--Paris dos
duellos, Paris dos lansquenets, Paris das
tascas romanticas, Paris das vielas escusas,
onde, á noite, á luz fumarenta das lanternas,
tiniam as finas e flexiveis espadas
dos pagens rebatendo a rapière dos burguezes,
Paris de Ponson, Paris de Dumas...
É ridiculo, não é? mas infelizmente
é um facto geral.
Essas impressões das primeiras leituras
que nos ensinaram a devaneiar, que
nos tomaram pela mão para nos mostrar
a estrada azul da fantasia, não esmorecem
facilmente. É debalde que procuramos
suffocar esse residuo de infancia ou de
imbecilidade que fica em nossa alma, lendo
solidas e doutas philosophias, espanando
os preconceitos com o vasculho da critica
e da analyse, destruindo, com as verdades
da historia, as fabulas que adquirimos
na novella e no conto. Esse sedimento
subsiste como germen abafado de onde,
longe em longe, espontaneo e violento,
rebenta um broto de sentimentalismo.
A verdade é que nós temos duas divisões--a
do mundo real e a do mundo
imaginario, e esta é a primeira que buscamos.
É atravéz della que a Poesia entrevê
o céu, ella é que torna o mundo
possivel, variando constantemente a sua
face. Porque é que os astros são eternamente
bellos? É porque nós os olhamos
com um pouco de imaginação. O Oriente,
por exemplo... que decepção, meu amigo!
Quando desembarquei em Beyrouth, que
é, por assim dizer, a porta da Syria, senti
tal aperto d’alma que a minha vontade
foi voltar para a cabine, a bordo do paquete,
que ainda se balouçava no porto.
Tudo quanto eu julgara encontrar nessa
terra ancestral estava entulhado pela civilisação,
aluido pelo progresso: A industria
fincara os obeliscos das chaminés, que
fumegavam como em Londres, como em
Bruxellas, como em Amsterdão, a patria
da genebra e dos organistas. O beduino,
em vez de traçar, como nos tempos historicos,
o albornoz listrado, encolhia-se sentado
a um canto, fumando um cachimbo
Cambier, raspando com as unhas as pernas
magras, vestido com um paletó côr de
cinza, de golla de velludo. O degenerado
que me deu cêrco pedindo solicitamente o
guarda-sol e o binoculo vinha assim vestido.
É verdade que encontrei um filho do
deserto, authentico, mas apezar do seu
trajo pittoresco de scheik, apezar do yatagan
e do cinto vermelho, ruminava um
francez duro, offerecendo umas pedrinhas
claras de uma fonte milagrosa citada pelo
Propheta.
A Palestina... uma miseria! Mas o que
jámais esquecerei é o que lhe vou dizer
seccamente, em quatro palavras. Quer saber
o que encontrei no alto do Calvario,
justamente no sitio santo em que foi crucificado
o Christo? Inclinou-se todo para
mim olhando-me, fixando-me como se quizesse
magnetisar-me, por fim disse com
um gesto, sacudindo o punho e deixando
cahir palavra por palavra com força e furia:--um
grande mastro com um cartaz
annunciando um leilão de jumentos... Um
leilão de jumentos, é exacto! E virou de
um trago o cocktail.
Que quer? os homens entendem que podem
encerrar todas as tradições das raças
nas vitrinas dos museus, já dispensam os
sitios santos da religião, porque a Luz é
a sciencia. Deus começa a ser analysado
como o bacillo-virgula.
Meu tio, que se sentia ferido nos seus
melindres religiosos, inquiriu com uma
ponta de incredulidade:
--Mas, doutor, era mesmo um leilão
de jumentos? Talvez fossem reliquias...
--De jumentos, vi-os eu no Calvario.
Jumentos! E arreganhando os dedos:
Quatro patas, commendador. Quatro patas
e orelhas! affirmou.
--Cães! rusgou meu tio mostrando o
copo ao caixeiro para que lhe servisse outro
grog.
--Não se incommode, commendador,
não se incommode, acudiu tranquillamente
o doutor apaziguando a furia de zelo do
meu beato parente. A religião ha de vencer,
apezar de todas as guerras que contra
ella movem obstinadamente os pseudo-reformadores.
Isso, longe de destruir
a crença, augmenta-lhe o prestigio. Que
era a cruz antes do martyrio do Homem?
um vilissimo instrumento de supplicio e é
hoje um symbolo de misericordia, é a ancora
com que nos prendemos á Esperança.
O azorrague, a corôa de espinhos, o sceptro
de canna, a tunica de byssus, tudo
quanto foi para Jesus opprobrio, é hoje
objecto de respeito e de veneração. Esse
mesmo poste, alçado como um ludibrio, no
santissimo lugar, acabou commovendo-me
e não dobrei os joelhos devotamente, creia
o senhor, não ajoelhei, repito, de vergonha,
porque andavam por ali umas mulheres
que não tiravam os olhos de
mim.
--Ajoelhar-se diante do poste dos jumentos,
doutor!
--Pois não, commendador, diante do
poste porque elle estava fincado no Calvario,
que é a montanha por excellencia,
santificada pelas gottas do sangue do Cordeiro.
O que eu ali via não era um poste
de annuncio, era um mastro espetado no
lugar em que estivera a cruz. Ali devia
tremular a bandeira branca da Paz Universal.
Tinha um annuncio, isso, porém,
não era bastante para desmerecer o sitio
aos olhos de um verdadeiro crente. O maldito
reclamo, inventado pela ambição
yankee, é que tem polluido os legados preciosos
dos seculos.
Em Epheso, por exemplo, nas soberbas
ruinas do templo de Diana onde, á noite,
ao luar triste, a gente julga ouvir os latidos
da matilha feroz e os gritos das nymphas
perseguindo o misero e formoso Endymião,
num fuste de esplendido marmore,
entre folhas de acantho, avistei uma
inscripção em letras negras--corri a decifrar
e era um annuncio de capsulas de
sandalo.
O commercio affixa em toda parte, escolhendo,
de preferencia, os lugares celebres...
O Passado vai desapparecendo sob
cartazes de côres. Não ha mais antiguidades,
não ha mais tradições, o que hoje ha
é uma avidez sordida de dinheiro.
É preciso andar para conhecer-se o caracter
do homem. Vende-se tudo nos mercados
do mundo: innocencias impuberes e
aguas mysteriosas que fazem voltar a mocidade,
consciencias e homens. Em caminho
encontrei de tudo, comprei de tudo
para humilhar o semelhante. Em uma aldeia
de Constantinopla, perto de um cemiterio
todo em flor, ajustei, por uma bagatela,
uma formosa rapariga que me
agradeceu, cantando uma ballada turca,
emquanto eu contava as moedas; em
Smyrna abalou com um caixeiro que negociava
em pannos, deixando-me, como
lembrança, uma lata de contas e uma rosa
de Jerichó! Tenho em casa, no meu gabinete
de trabalho, reliquias preciosas
compradas por ahi além, desde o monte
Athos, onde subi para avistar o celebre
convento d’Aghios-Dionysios, até Paris: o
dedo com que S. Thomé tocou a ferida
aberta no peito de Jesus pela lança de
Longuinhos, um pouco da palha mastigada
pelo burrico que carregou a Virgem
para o Egypto, uma madeixa de João Baptista,
o ciborio de cophen com que polia
as unhas Maria de Magdala, um prego
da cruz, uma prova da legenda que foi
pregada no tope do aviltante madeiro e
um dos suspiros do Bom Ladrão; e reliquias
profanas--a clava com que Atila
aterrou o Occidente, o tinteiro onde Carlos
Magno molhava a penna para escrever
os Capitulares, os oculos de Milton e
os famosos sapatos com que o Alighieri
andou pelas calçadas do inferno. Guardo
tudo como recordação dos lugares que visitei
para provar a vileza da alma do homem
venal e torpe.
--Outro cocktail, doutor, offereceu
meu tio.
--Não, obrigado, commendador; basta.
E voltou-se de novo para mim offerecendo-me
cigarros turcos:
Depois que vi o mundo estou convencido
de que o Rio de Janeiro é uma
bella cidade. E o meu amigo, dentro em
pouco, ha de concordar commigo. Não é
tão máu como parece. Demais, para um
moço como o senhor, intelligente e forte,
ha sempre uma aventura á espreita. Descahiu
um pouco para o meu lado e disse-me,
em tom mysterioso, apinhando os dedos
nos labios para colher um beijo: O
Rio tem mulheres esplendidas! e atirou o
beijo com um estalinho. Ainda não as viu,
garanto...?
--Pois não. Passou por nós uma loura
lindissima!
--Uma...! Mas o Rio tem milhares,
meu amigo. É preciso vel-as, conviver
com ellas no meio em que vivem. Não é
na rua do Ouvidor, creia: é nos salões, nos
boudoirs... nos boudoirs...! Ah! as mulheres,
as mulheres...! foram a minha perdição
em viagem. Antes de ver os edificios,
as bellezas naturaes e artisticas de um
paiz, tratava de ver as mulheres e estou
convencido de que é a mais bella coisa da
Creação.
--Primeiro as hespanholas! aventurou
meu tio com os olhos brilhantes de volupia,
recostando-se no varão de metal que
corria ao longo do espelho.
--Não sei, commendador, não sei. Olhe
que as inglezas são lindissimas...!
Meu tio fez um momo.
--Espere, commendador, eu tambem
pensava assim; mas em Londres convenci-me
do contrario. Lembro-me sempre
de uma noite em que se cantou o Ruy-Blas,
no Covent-Garden... Commendador,
não se descreve, creia, não se descreve.
Imagine o senhor uma assembléa
de estatuas, qual mais formosa, alvas de
fascinarem, immoveis, numa attitude hieratica,
com grandes aureolas feitas dos
proprios cabellos louros. E os olhos azues,
commendador, os olhos azues das miss!
quem os cantará como elles merecem! A
impressão que tive em presença dessas
donzellas da antiga nobreza foi a que teria
um pobre civilisado de hoje vendo subitamente
abrir-se o céu pagão e apparecerem
todas as deusas, todas as graças num zodiaco
como aquelle hemicyclo de camarotes
do theatro inglez. Que sei eu, commendador...
Não havia uma mulher feia!
Nem uma!
E espetou o dedo com convicção.
--Mas não têm vida, tornou meu tio,
cruzando as pernas. São umas estatuas,
como disse o doutor... E depois--que
andar!
--Engana-se ainda, commendador. Decididamente
o senhor precisa sahir do Rio.
Londres é a patria das mulheres, convença-se,
commendador. Não ha louras como
em Londres.
--Não gosto de louras.
--Ah! então italianas: as morenas de
olhos abrasados. Ha bellissimas mulheres
em Roma, em Florença, em Veneza... A
Zanelli... Meu tio piscou um olho discretamente;
eu, porém, surpreendi-lhe a mimica
no espelho fronteiro. O doutor calou-se
um momento e logo continuou: Em
Roma...
--Cá para mim não ha como a hespanhola.
É a mulher que me agrada. Quem
é que traz com mais graça a mantilha do
que uma andaluza? Quem agita com mais
arte um leque? E depois... é outra coisa!
Cá para mim não ha como a hespanhola,
insistiu.
--Quer saber onde encontrei bellissimos
typos femininos? Na Russia. É exacto,
lindas mulheres.
--E as turcas, doutor?
Fez um momo e balançou a cabeça negativamente:
--Não gosto...
Um caixeiro aproximou-se e disse-lhe
alguma coisa em segredo. Voltou-se de
golpe e, apanhando a bengala: Com licença:
vou ali á porta ouvir um amigo. Volto
já.
--Pois não, doutor.
Levantou-se e partiu com os dedos na
aba da cartola, a sorrir.
--Que tal, Anselmo?
--Intelligente. Lembra-me o padre
Coriolano que, por haver decorado o livro
de Ruth, repete, sem omissão de uma virgula,
todos os periodos do idyllio. O doutor,
falando, não deixa no espirito a impressão
de uma palestra, mas de uma leitura:
tem paginas magnificas. Mas, francamente,
parece-me exagerado.
--Mentiroso, mentiroso é que é... E
carrancudo: Ha lá quem acredite na tal
historia dos jumentos? Leilão de jumentos
no Calvario... Ora bolas! Mas recahindo
em tom brando e resignado: Dahi,
quem sabe! do modo por que vão as coisas
tudo é possivel. E com ar triste e tedio:
Que miseria! Até a religião! e engoliu
um sorvo.
Pelo espelho eu seguia todos os movimentos
do doutor, que falava a um rapazola
pallido, de olhos miudos talhados á
chineza, bigode fino, uma singular physionomia
de mascara de seda com uns toques
de imbecilidade. O assumpto devia
ser grave porque, de vez em vez, a fronte
do doutor franzia-se e a sua cabeça douta
pendia para o peito, scismadora e apprehensiva.
O rapazola, com gestinhos femininos,
enfeixando os dedos, fazendo beiços,
dedilhando no ar, pronunciava baixinho,
precipitadamente, puxando, de vez
em quando, o doutor para soprar-lhe um
segredo ou recuando de braços cruzados,
a cabeça á banda, mudo e fito.
Por fim o doutor irrompeu com uma
bolachinha entre os dedos, exaltado, frenetico,
agitando o braço com violencia e
furia; os labios tremiam-lhe, os olhos chispavam
e o seu bigode fulvo estava arrepiado
de colera.
Encolheu-se e, de improviso, atirando
a bolachinha á rua, impoz gravemente a
mão direita sobre o hombro do interlocutor
e, meneando com a cabeça, disse alguma
coisa de responsabilidade porque o
outro tomou uma attitude cheia de mysterio
para ouvir, mas subitamente, descahindo,
prorompeu em rinchavelhada estridente
sacudindo-se.
O doutor recuou um passo sorrindo e
cofiando o bigode que amaciara. Como o
pallido estendesse a mão, o doutor disse-lhe
alguma coisa em tom intimo, elle esticou-se
um pouco e espiou-nos com ar curioso,
mas fez uma careta de desgosto calcando
o ventre, alongando o beiço. O doutor
sacudiu-lhe a mão num shakehand,
disse-lhe uma phrase que elle acolheu com
outra rinchavelhada e partiu. O doutor
voltou immediatamente com um resto de
sorriso e, sentando-se, disse para meu tio,
em confidencia:
--Revolução em Matto-Grosso, commendador.
--Como! Ainda? exclamou meu tio
saltando.
--É exacto, disse-me agora o Lyrio.
--Aquelle rapaz?...
--Sim, trabalha num jornal, é o debulhador
dos crimes. Viu um telegramma.
--Isto é o diabo! exclamou meu tio espalmando
as mãos nas coxas e derreando
o busto.
--Qual, commendador: revoluções
inoffensivas. Nós somos um povo bem
fadado... todas as nossas revoluções são
incruentas. Somos sufficientemente anemicos
e é talvez por isso que nos vamos
arranjando a secco. O sangue só escorre
no noticiario, a carnificina só existe na
local. Temos dado ao mundo o exemplo
mais perfeito da harmonia dos poderes--as
nossas lutas intestinas são uma blague
de bom humor para alimento do artigo
de fundo. Toda a nossa evolução social
tem sido feita, não á custa de sangue, mas
á custa de foguetes. Para dar-se ganho
de causa a uma ideia basta collocal-a sob
a protecção de uma banda de musica. Só
ha dois factores de revolução no Brasil--a
chirinola e o foguete de lagrimas. A semente
da arvore genealogica da brava
gente, commendador, é D. Quixote... A
sciencia ha de confirmar mais tarde o que
lhe digo hoje em palestra: nós descendemos
em linha directa do heróe manchego.
Até na mania das concessões temos o traço
indelevel da alma do cavalleiro errante
que promettia a Barataria quando Sancho,
desalentado e moído, pedia para voltar
á sua tranquilla aldeia. Não creia em
revoluções, commendador, são moinhos de
vento... moinhos de vento e nada mais.
--Creio bem, creio bem, mas não é
pela revolução de Matto-Grosso. Que tenho
eu com Matto-Grosso, não me dirá?
--Nada.
--Nada, certamente, não tenho nada;
o que me preoccupa é outra coisa. Não
imagina como essas historias fazem mal
á praça. Basta o telegramma de uma aldeia
qualquer, historia de um caudilho
que se poz á frente de um lote de homens,
para que o commercio soffra. E escancarando
os braços: Senhor, correu um dia
destes que iam depôr a intendencia de Maxambomba,
pois não lhe digo nada: os titulos
cahiram. Eu sei bem que o sangue
de Abel, de que falam os jornalistas, é uma
figura de rhetorica.
--Simples figura de rhetorica e já estafada
e innocua, accrescentou o doutor.
--Mas os papeis soffrem, soffre o
commercio, soffre o povo. E indignado,
fechando o punho: Que diabo, dêem cabo
de tudo, rebentem, estourem, mas não
compromettam o credito do paiz! Isto é
que é patriotismo. Agora estar a gente
todo o dia a ouvir: revolução aqui, e cahiu
para a direita; revolução ali, e cahiu para
a esquerda; governador deposto, e apontou
o tecto, revolta nos quarteis, fez um
gyro-gyro com ambas as mãos fechadas.
É horroroso... é uma vergonha!
Uma voz estrugiu em plena sala stentorosa
e indignada.
«Vá ao Paiz... Vá ao Paiz, lá está o
boletim...» Era um homemzarrão barbado,
intonsamente barbado, uma cara terrivel
de propheta, embrulhado numa sobrecasaca
enorme, rapada e lustrosa, com
um grande chapéu molle no alto da cabeça
calva, côr de marfim antigo.
O doutor encolheu-se e murmurou:
--Fujamos, commendador, antes que o
Braz nos venha falar da podridão moral.
Baixámos a cabeça e meu tio fez um aceno
ao caixeiro que nos servira e fomos
sahindo sorrateiramente para que não nos
visse o homem. Já haviamos chegado á
porta, quando elle berrou indignado, caminhando
para a mesa que deixáramos:
--Menino, dá cá um cognac!
Á porta, em um grupo, um rapaz moreno,
de pince-nez, discutia assomado, aos
pinchos para a direita e para a esquerda,
avançando e encolhendo os braços num recúo
athletico, a cabeça enterrada nos hombros
ou espichado nas pontas dos pés,
olhando por cima das lentes, com rugidos
surdos. Segurando a bengala pelo meio
sacudiu-a e, num salto de acrobata, rugiu
numa voz espremida, descrevendo rapidamente
um circulo no soalho:
--É o zodiaco do amor, é a escala chromatica
do affecto, mas não se aproximem!
ululou, encolhido, com os olhos chammejantes,--não
se aproximem, porque a
pomba, muitas vezes, fere como as aguias
bravas. E calmo, calcando sobre a mola
do pince-nez: É um mulherão!
VII
Não sei ao certo quanto tempo nos
demorámos abancados junto do
grande espelho, ao fundo do Paschoal,
bebendo grogs e ouvindo a palavra
pittoresca do Dr. Gomes, mas quando sahimos,
a rua tinha outro aspecto--via-se-lhe
toda a sordidez do lagedo e, quasi
deserta, sem a densa multidão que a cobria
quando a deixámos, mostrava-se impudicamente
a meus olhos esboroada e
suja.
Eram outros os grupos que subiam--homens
em mangas de camisa, tisnados,
arrastando, com estardalhaço, solidos tamancos;
alguns traziam, além da marmita
de lata, pequenos feixes de lenha miúda.
Poucas senhoras e, correndo de um para
outro lado sobraçando maços de jornaes,
meninos que apregoavam a revolução em
Matto Grosso e um assassinato barbaro.
Em uma esquina era tal a profusão de
flores que o ar rescendia. Meu tio escolheu
tres ramilhetes de violetas e offereceu-nos.
O doutor immediatamente cravou
a unha na botoeira da sobrecasaca florindo-se
e eu, emquanto arranjava a malva
sobre a lapella, communiquei-lhe a minha
impressão:
--Parece-me outra a rua do Ouvidor...
--Exactamente, fez elle; é que ella
tem varios aspectos--este é um delles, o
mais interessante, talvez. Caminhámos e
o doutor, para falar com mais intimidade,
tomou-me o braço. É a hora dos operarios.
As modificações desta rua accusam-se
pelos seus typos; são elles, por assim
dizer, que lhe formam a physionomia e, o
que é mais notavel--a cada um dos aspectos
corresponde um cheiro especial.
Olhei-o... e elle affirmou: Sim, meu amigo,
um cheiro. Talvez não tenha observado
que todos os homens, como todas as coisas,
têm o seu aroma caracteristico... Pode-se
perfeitamente distinguir as raças
pelo cheiro, como um conhecedor distingue
facilmente, apenas pelo olfacto, um
genuino Xerez de uma falsificação. Chego
a levar a minha mania a ponto de emprestar
aroma ás coisas abstractas--á
côr, ao som, ao sentimento. O branco é
inodoro como a camelia; o vermelho cheira
a cravo, o azul é o heliotropo. Ha trechos
na Aida de uma tal intensidade suggestiva
que, ouvindo-os, não só nos remontamos
á vida sensual do Egypto pharaonico,
como sentimos (note que me refiro aos
temperamentos puros, faço excepção do
imbecil, que não tem o olfacto esthetico)
sentimos um fugitivo aroma de chrysanthemas.
Não conheço a chrysanthema,
mas o que senti, uma vez, ouvindo a Borghi
cantar O fresche valli... devia ser forçosamente
o aroma da flor do Oriente. A
saudade tem o aroma da violeta, que tanto
dura. A innocencia trescala a bogari, que
é o lirio do monte, o crime tresanda á mandragora,
que amedronta, atordôa e mata.
Mas o povo, insisto, tem o seu cheiro especial--odor
populi--e a rua do Ouvidor
varia de aspecto e de aroma conforme a hora,
conforme a gente. Ás quatro da manhan,
com as ultimas estrellas, descem por este
esophago, que vai dar ao estomago do Rio,
que é a Praia do Peixe, grandes carroças
atulhadas de verduras e de frutas, a lenha,
os ovos, o pão e, algumas vezes, não
raras, rebanhos. Uma manhan tive de refugiar-me
em um vão de porta para evitar
a furia de um garrote que tresmalhara.
Passam carrocinhas levando pilhas de
jornaes--é o pão da curiosidade que se
vai espalhar pelo interior socegado levando
á simpleza e á ingenuidade das cidades
pacatas a bilis dos articulistas salvadores
da Patria. Cheira a curraes e a hortas, a
pão quente e a artigos de fundo.
Ás seis começa a vida do mercado--bandos
de cozinheiros passam chalrando,
com samburás empanturrados; cestos carregados
de viveres, carros de mão cheios
de legumes--tudo quanto sacía a fome
fluminense, desde o ramo tenro de salsa
até o quarto de vacca sangrento, que vai
bambo, flaccido e gottejante, á cabeça dos
carregadores. Cheira acremente a matadouro
e a salsugem.
Mais tarde fede a lixo quando os
grandes carroções da limpeza começam a
asseiar as casas e a sujar as ruas. Ás seis
e meia atrôam os pregões dos jornaes e
apparecem as primeiras caras femininas--menagères
economicas que vêm ao mercado,
costureiras a caminho das officinas
e as desgrenhadas e pallidas anemicas
que vêm das aguas do mar exhaustas
da caminhada, queixando-se das ondas
que lhes maceraram o corpo delicado;
passam tristes, somnolentas e molles, com
uma cestinha, os cabellos soltos espalhados
por cima de uma toalha, que trazem
forrando as costas para resguardal-as da
friagem perfida d’agua salgada. Ha um
cheiro estranho de maresia, de sabonete
Windsor e de bocejos.
Começa a descer o commercio: caixeiros
apressados, em grupos, commentando
as bambochatas da vespera, com grandes
ares. O primitivo cheiro vai desapparecendo
e espalha-se um apetitoso aroma de
acepipes, um almiscar suave de molhos.
Ás dez os patrões, pesados do almoço,
arrotando, empanzinados e fartos, descem;
em seguida os capitalistas e as dyspepsias
melancolicas. Vem subindo o cheiro
caracteristico, o cheiro «meridies»,
como já alguem lhe chamou--mixto de
fumo, de essencias e de guarda-roupa: sedas
novas e camphora.
Ao meio-dia a primeira vaga polychromica,
desde a elegante impaciente, que
vem estrear um chapéu, até o mendigo que
surge lentamente, com um realejo ao peito,
gemendo palavras de piedade por elle
e pelos filhos, em nome do Senhor. Começa
o rumor e o cheiro mixto vai subindo.
As portas ficam entulhadas, vão-se
formando grupos e o commentario principia
até gerar o primeiro boato que corre
rapido augmentando sempre, de porta em
porta, de circulo em circulo, como outr’ora
passavam, nos campos gaulezes, as
noticias de guerra, de trigal em trigal, de
leira em leira.
Das tres ás cinco é a desfilada--a elegancia,
o espirito, o trabalho, o vicio, a
miseria: o Rio manda a sua embaixada
diurna que passa numa promiscuidade
fantastica de roda concentrica de lanterna
magica baralhando-se, confundindo-se.
É nessa onda que passa lento e cabisbaixo,
admirando a lealdade dos sapatos,
que vão resistindo á marcha sem destino,
o bohemio dessa familia eterna de Gringoire,
com a alma cheia de sonhos, os labios
borbulhantes de rimas, relembrando
enternecidamente uns olhos azues que o
fitaram na vespera, casta e santamente,
mas estacando subito para reflectir na miseravel
condição da materia que não vive,
como o espirito, da contemplação do ideal,
mas sordidamente, gulosamente do bife.
Ás cinco essa onda vai desapparecendo.
--E o cheiro caracteristico, doutor?
interrompi curioso.
--O cheiro?... sim--alguma coisa que
se pode imaginar entre estes dois pólos:
Guerlain e a Sapucaia. Só ás cinco, dizia
eu, essa onda vai desapparecendo para
dar passagem ao operario que vem dos
arsenaes e das fabricas: tresanda a suor e
a resina.
--A resina... porque?
--Francamente, não sei. E começou a
farejar. Experimente, ha ainda um cheiro
leve. Não sente? Não quiz entristecel-o,
disse que sentia.
Elle, então, continuando: Demais, a
hora é das flores. Ao crepusculo a rua do
Ouvidor perfuma-se: toda a gente cheira
bem. Á noite é insipida: cheira á comida
como uma casa de pasto. Á meia-noite
cheira á poeira e ás cinco recomeça.
--Hesiodo não subiu tanto no seu livro
ambrosiaco, disse eu, lisonjeando-o e
mostrando que tambem possuia os meus
conhecimentos e elle sorriu vaidoso, encolhendo
os hombros.
Chegaramos ao fim da rua. Escurecia.
O céu, de um doce azul fino e nitido como
o das porcelanas, tinha algumas estrellas;
rodavam carros e um pelotão de soldados
marchava pesadamente ao toque de uma
corneta fanha. Voltámo-nos; no outro extremo
da rua, apparecia uma nesga de céu
abrasado como em chammas--uma boca
de forja.
--Lindo crepusculo! E ficamos um
momento contemplando. De repente o
doutor sacudiu-me:
--E o commendador?...
--É verdade! meu tio...
Rindo ambos e de braço, como antigos
camaradas, subimos a rua a grandes passos.
Uma harpa gemia ao fundo de um
café sombrio.
--O café e a musica, as duas forças
vitaes deste paiz, disse o doutor com ironia.
E curvámo-nos para marchar á cata
de meu tio. Em menos de cinco minutos
de marcha esbaforida chegámos ao Largo.
A estatua do patriota, á luz mortiça do
crepusculo, resplandecia com uns tons vivos
de ouro polido. Havia um ajuntamento
em volta de uma bandeirola vermelha;
aproximámo-nos. Um homem barbado, de
blusa, com uma casquete de lontra, apregoava
panacéas exaltando as excellencias
de um sabonete maravilhoso contra nodoas
e tomando em dois dedos um pacotinho
berrava: que até as manchas da reputação
desappareciam com algumas fricções do
invento mais notavel do seculo.
Grave e religiosamente soou na alta
torre o primeiro dobre vesperal da Ave
Maria. Algumas cabeças descobriram-se
e o homem abaixou a voz. Houve um doce
silencio mystico, rapido como um voto
d’alma em desespero e casto como uma
oração. Pequenos, de mãos ás costas, pernas
abertas, levantavam os olhos para a
torre onde o grande sino emborcava lentamente,
de espaço a espaço, soturno. De
longe, na aragem da tarde, vinham toques
militares, finos, estridentes, com uma vaga
saudade, fazendo pensar em acampamentos
guerreiros, á hora santa do baixar
da noite, congregando para a reza todos
os regimentos exhaustos das batalhas.
O doutor, que sahira do grupo limpando
o rosto, falou-me:
--Não sei se deva attribuir ao meu
temperamento ou se a um resto de crença
que guardo na alma, esse estranho sentimento
de religião que em mim despertam
os sinos. Não ouço sem commoção o toque
da tarde: Parece-me sempre que é uma
voz antiga que vem do fim dos seculos atravéz
dos espaços evangelisar na terra. A
igreja quiz conservar o diapasão da palavra
tremenda dos prophetas e creou o sino,
que é, ao mesmo tempo, meigo e terrivel,
consolador e implacavel. Agora, por
exemplo, nesta meiga tranquillidade, este
sino a soar não é bem uma oração do templo
pela humanidade, em doces threnos
sonoros que vão ondulando, ondulando, de
lar em lar, de nuvem em nuvem a todas
as almas e a Deus...? Não é uma doce
elegia sobre a morte da luz? A mim, e
desconto todo o meu romantismo, parece
sempre que as estrellas esperam a voz da
atalaia santa para sahir. Ha muezzin em
minarete que valha um sino em campanario?
Deixe lá falar, a nossa religião é divinamente
poetica, divinamente humana,
porque é a que mais se dirige ao coração.
O Dies irae... ah! O Dies irae... o dobre a
finados... o tocsin de alvoroto, o rebate em
tempo de calamidade... É divino sinceramente,
é divino!... Para as bocas de pedra
das cathedraes só mesmo essas poderosas
linguas de bronze.
Outro dobre cahiu e o echo foi rolando
demoradamente.
--Conhece o La bàs de Huysmans?
--Não, doutor.
--Deve ler. É um livro interessantissimo.
Livro de nevrotico, obra de enfermo,
mas de excellente factura, arte magnifica.
Ha lá umas doutrinas admiraveis sobre
o sino, pregadas em um cubiculo, no
alto da torre de Saint-Sulpice, pelo sineiro
Carhaix, um catholico intelligente, profundamente
versado em doutrinario antigo,
de uma erudição de velharias que pasma.
Esse homem obscuro reserva em um
canto da sua lura volumes preciosos sobre
a arte difficilima de tanger os sinos:
«De Tintinabulis» «Essai sur le symbolisme
de la cloche» e prova irrefutavelmente
que é necessario, não sómente um perfeito
conhecimento da arte, como muita alma
para que se consiga tirar do metal sons
symbolicos, se assim ouso exprimir-me:--para
as cerimonias gloriosas do rito, para
as duas horas extremas da luz, para o gloria
meridiano, para os que nascem, para
os que morrem, porque, infelizmente, o
sentimento artistico vai desapparecendo--a
democracia reduziu tudo a comesinho,
a vulgar. Não ha muito, ouvimos no
fundo de um café uma triste harpa gemendo
sambas. Creia que me faz pena, são
como pedaços de puro classicismo espesinhados
pela multidão ignara. A harpa que
David tangia! a harpa que foi o kinnor
levitico; a harpa que vem embalando por
essas idades remotas os sentimentos e as
paixões, desde a ira de Saul até ás tristezas
de Ossian, é isto hoje: um chamariz
de bodega, que os dedos grossos de um maltrapilho
ferem, não docemente, não enamoradamente,
com os olhos no céu como
Wolfram, mas abjecta e indignamente
com um pires ao lado, pensando na colheita
e indifferente á corda que estala, ao compasso
que se precipita!
Dá-se o mesmo com os sinos. Não ha
mais sineiros... isso foi para o tempo das
cathedraes, quando o Dies irae era cantado
por populações de crentes. Isso foi para
o tempo em que se ia á Roma pedir misericordia
cantando por todo o caminho louvores
ao Deus Vivo, acordando aldeias ao
som dos gloriosos choraes santissimos.
Isso foi para o tempo em que se acreditava
em Deus; hoje não... não ha mais
nada--a civilisação vai estabelecendo mecanismo
para tudo e a philosophia abafa
com uma analyse o que era mysterio, pondo
um principio onde havia um dogma,
pondo a razão a patrulhar o sentimento
para que não aconteça perder-se de novo
a humanidade em extases.
Para que sineiros, se temos o carrilhão,
que é o piano das torres? Hoje os poucos
sineiros que restam são bimbalhadores,
moleques apanhados no meio da rua e içados
ao campanario por cinco tostões para
soar a aria pastoral de reunir ovelhas.
Ahi tem o amigo o que nos resta. Eu ainda
hei de ver o orgão em saráus, e é justo,
porque as bandas militares já invadiram
os córos ecclesiasticos. Não temos mais
nada, mais nada. A civilisação vai extinguindo
tudo. Espero ler ainda nos jornaes
que um sujeito qualquer pediu privilegio
para illuminar as igrejas a luz electrica
ou para fazer santos mecanicos: um Christo
que diga do alto da cruz, deixando pender
a cabeça meiga: Consummatum est!
e em verdade estará tudo consummado.
Estacou e olhando em frente disse sorrindo:
--Olhe, ahi vem o commendador.
Era meu tio, com effeito, que vinha
dando com os braços e a sacudir a cabeça.
--Onde se metteram vocês?
--Na rua do Ouvidor, commendador,
á sua procura.
--Á minha procura!... É boa!
--Á sua procura, meu tio, affirmei.
--Então foi de tanto procurar que não
nos achámos. E, sem mais dizer, foi impellindo
o doutor para a victoria:
--Vamos, vamos...
--Mas, commendador...
--Perdão... Hoje temos que conversar.
Entrámos. Sentei-me num banquinho
baixo em frente aos dois. Edgar fez estalar
o chicote e partimos.
Começavam a acender os lampiões das
ruas.
VIII
O mundo é dos epicuristas, disse
o doutor, ao fim do jantar,
trincando uma amendoa para
melhor saborear o kirsch. A vida psychologica
tem a sua preoccupação: o ideal; a
vida physiologica tem a sua avidez: a fome.
O ideal é a ancia pelo absoluto--fome
insaciavel, por isso os gastronomos
são mais felizes do que os poetas.
Meu tio, affectando conhecimentos, deu
com a cabeça meio toldada, em signal de
affirmação.
--Eu comprehendo a sumptuosa antiguidade
com os seus banquetes colossaes
em que eram servidas rezes inteiras e
grandes javalis com os colmilhos vinham
ornar o centro da mesa illuminada a candelabros
de ouro. Esses homens que nós
outros, em assomos pueris de vaidade, chamamos
barbaros, conheciam e praticavam
com mais requinte a sciencia delicada do
gozo fino. Nós hoje comemos para manter
em equilibrio as funcções da vida, raramente
sentimos prazer, tratamos de encher
o vacuo materialmente, azafamadamente.
As nossas refeições não têm solemnidade,
não têm apparato, são feitas,
como todos os outros actos da vida material,
com tédio, com tristeza, funebremente.
Ah! os antepassados magnificos!...
Para elles a mesa era um altar onde se
celebrava, com dignidade e volupia, o rito
do estomago. Comprehendo o orgulho de
Lucullo e as extravagancias excentricas
de Apicius mandando apparelhar um navio
para buscar ostras nas costas africanas.
O triclinio era o aediculo do supremo
gosto, o ádito do regalo. A civilisação
rudimentar desses tempos era dictada pela
esthetica. A propria politica, sempre avessa
aos retoques esmerilhados da Arte, tinha
a sua feição sympathica, tinha o seu
cerimonial, exigindo para a primeira ala
de representação a velhice sensorial e
grave dos senadores, tão augustos na magestade
impassivel da ancianidade, tão veneraveis
na hieratica e silenciosa attitude
de pais da patria que os barbaros da Gallia
recuaram atemorisados, vendo-os immoveis
e alvadios, sentados nas curúes do
Capitolio. A cozinha tinha a sua esthetica
especial. O cozinheiro romano era um artista.
Para merecer os applausos de um
patricio não era bastante saber temperar
o môlho ou córar o peixe, era necessario
conhecer o segredo de manter, para que
não se evolasse, o perfume da vianda ou
do pescado e mais ainda, commendador,
era indispensavel saber vestir os pratos.
Todas as peças tinham a sua toilette caracteristica,
variando de tempos a tempos,
conforme os caprichos da moda ou a imaginação
do chefe das cozinhas. Uma ave
exotica trazida, entre os despojos de uma
conquista, de remotas paragens da Asia,
era servida com a propria plumagem para
que, antes da satisfação do paladar, a vista
se regalasse; um cabrito montez vinha
do forno entre folhagens frescas e verdoengas;
havia pratos perfumados, outros
que primavam pelo luxo maravilhoso e
vario da verdura ornamental. Entre nós
esse luxo, conservado por alguns retrogrados,
não vai além das espetadas de rosas
e de limões no costado dos bacoros de forno,
as azeitonas que vão morar nas orbitas
vasias e o classico ovo cozido cravado
na dentuça. É verdade que os francezes
pretendem resuscitar esse fausto elegante,
mas como, commendador? montando
gateaux de gelatina diaphana, refolhando
massas, facetando tortas de foie gras...
Mas isso é infimo. Sabe, meu amigo, tenho
uma nostalgia estranha--a nostalgia
do passado. Quanto eu daria para ser
commensal de um chefe barbaro, mesmo
um bruto, como o huno que andou a murchar
a herva dos campos com as patas do
seu cavallo da steppe...! Quanto eu daria
para estar no acampamento, depois da batalha,
á hora do rancho, para ver cahirem
ao peso das clavas, ainda molhadas
de sangue inimigo, as rezes pacientes que
vinham acompanhando o exercito; e com
que delirio eu cercaria as fogueiras colossaes
em que ellas fossem lançadas!
Quanto eu daria, commendador! Trinchar
um boi! Cravar-lhe no ventre uma
faca, grande como uma espada de guerra
e comer no concavo de um escudo! Estou
enfarado da mesquinharia subtil do vol-au-vent.
Um bom pedaço de carne sangrenta
a rechinar na ponta de uma lança,
hein, commendador?
--Não temos estomago para taes coisas,
doutor.
--Isto sei eu. A humanidade vai degenerando
miseravelmente. Não é sómente
á mesa que ella confessa o seu abastardamento--é
em tudo. Veja a Arte de
hoje... Quem ha por ahi que ouse tentar
um poema epico? Ninguem! A poesia
moderna é effeminada e languida--vai
pelas minuciosidades porque lhe falta a
suprema força victoriosa dos antigos vates
que punham num canto de epopéa
exercitos de homens e legiões de deuses,
todo o furor ardido das pelejas e toda a
sensualidade: os troantes armistrondos
das catapultas e as doces palavras meigas
dos namorados.
Vêde na Iliada os contrastes--Achilles
e Agamenão invectivando-se, Diomedes
rompendo as hostes troyanas com a sua
lança formidavel, Thersyto giboso, a injuriar
e a rir como uma satyra errante;
Ulysses, a enredar traças, os deuses esvoaçando,
uns pelos gregos, outros pelos
priamides e, mais que tudo, esse episodio
de um tão original e inaudito sensualismo:
Paris salvo da lança aguda e bruta de Meneláu
por Aphrodite que o retira do campo
de duello, levando-o aconchegado ao seio
ardente para dar-lhe repouso nos braços
claros de Helena. Isto sim! isto é poesia!
Hoje a preoccupação do poeta é o rhythmo,
a sonoridade. São os discipulos de
Apelles, commendador, são os discipulos
de Apelles: fazem-na rica por absoluta
impossibilidade de a fazerem bella. Os
grandes deslocaram a montanha e a geração
de hoje, anemica e enfezada, anda a
respigar destroços para brunir bibelots
que, ao mais leve contacto, quebram-se e
desapparecem. Commendador, nós, os contemporaneos,
polidos por dezenove seculos
de civilisação, não valemos os errantes
que sahiram dos valles acceitosos da India
cantando, ao sol, pelas margens das
aguas claras, os doces versos mysticos dos
aryas. Virou o resto do licor que havia
no calice e continuou no silencio attencioso:
--Á nossa litteratura falta o caracter
de originalidade. Não é propriamente
uma litteratura nacional porque, por infelicidade,
ninguem se preoccupa com a
terra. Os olhos dos nossos poetas vêem as
constellações de outros céus, as aguas de
outros rios, a verdura de outras selvas.
Quando trazem para o descante uma mulher,
de preferencia rustica, porque a Poesia,
por um resto de bucolismo, só comprehende
o amor fiel na deveza campestre,
vestem-a á moda da aldeia européa, como
uma pastora de Alsacia, como uma montezina
dos Alpes, porque a Musa indigena
não se atreve a apresentar na estrophe a
sertaneja patricia, mais linda do que a
Amaryllida das eglogas de Virgilio, mais
casta, se é possível, do que Miranda ou do
que Agnés. Se é um homem, desce das
montanhas frias da Suissa tocando a ranz
das vaccas dos companheiros de Winkelried.
A paizagem é inverosimil, as aves
que nella desferem são todas exoticas e
muitas vezes até encontram-se no fundo
de um parque, á luz da lua de maio, o
rouxinol que canta e o cormoran que sonha.
O cormoran... ora, francamente! A
causa de tal aberração não é a ausencia
do ideal plastico, porque ahi temos a natureza
sempre nova e cheia de imprevistos;
não é tambem a ausencia do ideal poetico
porque, a meu ver, não ha paizagem
mais suggestiva do que a nossa, cheia
ainda do rumor da vida priméva, selvas,
valles e montes, onde a lenda põe um mysterio
em cada talisca, uma yara em cada
regato, uma balada em todas as corollas,
uma pastoral em todos os valles, um idyllio
de amor em toda gruta, ardencia nos
corações e inspiração nas almas. A causa
é outra--é a difficuldade, porque é incomparavelmente
mais difficil descrever a
verdade do que colorir fantasias e sobretudo
porque o nosso genio artistico é um
producto immigrante: trabalha em nosso
espirito como um colono labora nos campos
e podemos dizer que as messes do sólo
e da intelligencia nesta terra pauperrima
são devidas ao elemento adventicio. Basta
uma simples analyse da vida litteraria.
Veja o commendador--somos ainda
um povo em formação, começamos a encarar
a vida e, na idade em que a Grecia
foi lyrica, na idade juvenil em que todos
os homens trataram de compôr poemas de
religião e de esperança para abrigo da alma,
nós desesperamos, somos pessimistas...
Por convicção? por soffrimento?
absolutamente não, por imitação apenas.
Praguejamos no berço e pedimos a morte,
o Nirvana. Começamos a ler pelo poema
de Job. Mostre-me o periodo romantico,
que é, por assim dizer, a adolescencia da
Arte, na sua segunda phase, depois do renascimento?
não tivemos. Saltámos para
o naturalismo, que é a analyse, a rabugice
caduca da litteratura e já vamos caminhando
para a cachexia do decadismo,
arrastados, inconscientemente, pelo habito
inveterado da irresponsabilidade. Vamos
no tropel dos allucinados escabujar na
charogne, profanar tumulos para evocar
procissões macabras, depravando o coração,
depravando a benção. Peladan institue
o erotismo, os eroticos emergem. Huysmans
entra pela Idade-Média folheando
as chronicas poentes dos archivos, apparecem
aqui os satanicos; o mahatma apregôa
as excellencias do budhismo, toda
gente é budhista, como foi hypnotista na
phase mais irritante das experiencias de
Charcot, como foi cumberlandista quando
aqui esteve Pedro Vals.
Somos um povo incaracteristico; defeito
de origem--não tivemos lutas, não
conseguimos formar um periodo historico,
habituámo-nos a receber o que nos davam,
dahi a passividade desidiosa do nosso temperamento.
Nossa alma varia de instante
a instante, é por isso que somos tão faceis
de adaptação. Forçaram o nosso altar,
deixaram-nos sem crença e sem Deus, aluiram
todo o passado meigo das tradições
christans, que foram o conforto dos nossos
pais e o incentivo que nos trouxe pelo
caminho da Moral, abateram a cruz e mostraram
á Virgem a Via Dolorosa para
que ella partisse, e que fizemos nós, os
christãos? assistimos impassiveis á hegira,
vimos sahir dos altares os santos venerados
pelas nossas mãis e sorrimos. Chamam
a isso evolução... é possivel--eu
chamo-lhe indifferença. E é assim em
tudo. Em politica dizem que fazemos revoluções
sem sangue. Ora, commendador...
francamente, chega a ser ridiculo!
--Mas é a verdade, doutor.
--Uma triste verdade. Para mim a
politica do brasileiro não vai além da urna.
Dêem-lhe todas as fórmas de governo
com a urna e elle estará contente. E essa
dedicação ao vaso do suffragio, só comparavel
á dos hebreus pela arca, não significa
a confiança que o povo deposita no
voto, porque toda a gente sabe que o voto,
entre nós, é uma palavra. Mas a eleição
é uma tradição de motim, por isso é que
ella perdura; tanto é verdade que tenho
certeza de que o Brasil politico cessará de
existir no dia em que morrer o ultimo cabalista.
Outro facto ainda, que attesta
eloquentemente a nossa tendencia imitativa--é
a mania que temos da applicação
de meios administrativos, economicos e
ainda politicos usados em casos normaes
em outros paizes de condições bem differentes
das nossas, de systema de organisação
diverso, á anomalia da situação que
atravessamos. É querer curar uma febre
eruptiva com um sedativo que fez cessar
a cephaléa do vizinho. Ridiculo, commendador,
ridiculo e triste. E vertendo mais
algumas gottas de kirsch:
--Que me diz o senhor da moda? a
moda por exemplo, esse supplicio imposto
á mulher brasileira pela elegancia parisiense?
--Eu acho-a divina... Gosto immenso
da variedade, affirmou meu tio.
--Tambem eu. Mas refiro-me aos disparates
da mania vestiosa. Quando o inverno
inteiriça Paris, nós aqui, nesta fornalha
dos tropicos, desfazemo-nos em suor,
estalamos, e as nossas mulheres, que se
vestem pelos moldes da Saison e do Coquet,
embrulham-se em pelles, revestem-se
de arminhos, trazem pesadas cachemiras
e capas com que um groenlandez zombaria
do mais duro inverno, na sua toca
de neve. E nós outros apertamo-nos em
cheviots felpudos, torrados, suando, simplesmente
porque seria ridiculo para a senhora
apresentar-se na calçada da rua do
Ouvidor com uma toilette clara, de um
panno fresco e leve e um simples chapéu
de palha cercado de flores, e nós seriamos
corridos a apupo se ousassemos affrontar
o povo com um terno de linho e um chapéu
panamá. Ha de convir, commendador,
é ridiculo, é soberanamente ridiculo!
Gravemente, com a repercussão profunda
de um sino longinquo, o veneravel
relogio interrompeu a facundia do doutor
soando as dez horas.
--Dez horas! exclamou elle sacando
do bolso o seu chronometro. Perdôe-me,
commendador, mas não acredito nas palavras
da pendula domestica--e baixou os
olhos para consultar: É estranho! dois relogios
de accordo: dez horas justas! E,
pondo-se de pé, a passar as mãos pelas
pernas para alisar as calças: Vou deixal-os,
disse.
--Ainda é cedo, doutor. Vamos tomar
um punch de champagne.
--Oh! Acha então que tenho bebido
pouco? Mas meu tio já havia acenado ao
criado indicando um vaso bojudo, de crystal
ceruleo, a cratéra, como lhe chamara o
doutor, descobrindo-o entre os pesados
jarrões da China, carregados de rosas.
--Dê treguas ao theatro por uma noite,
doutor.
--Treguas! Mas eu não faço outra
coisa. Ha mais de quatro mezes que não
ponho os pés em theatro. Desde que d’aqui
partiu a companhia lyrica, a não ser um
ou outro concerto, uma ou outra soirée,
passo as noites a ler ou a jogar o pocker.
Oh! o theatro! exclamou com um risinho,
passeiando ao longo da sala.
--Não gosta? indaguei.
--Adoro! mas o theatro, meu amigo, o
theatro... não isto que por aqui ha com
esse nome. Porque, afinal, penso eu, Arte
não é a chufa banal que faz estourar a
braguilha, nem a nudez de maillots que
aguça o apetite erotico. O fim da Arte é
mais nobre do que o da chalaça. Não foi
com auxilio de rondós obscenos que Sophocles
foi coroado vinte e tantas vezes.
Shakespeare não teve necessidade de sumptuosas
scenographias para vencer em
Blackfriars--a lua era feita por um homem
que atravessava a scena com uma
lanterna. Molière não mantinha a seu serviço
córos femininos convenientemente cevados
para embasbacarem a volupia. Ah!
meu amigo, as mulheres que iam ouvir
Eschylo abortariam de novo visitando os
nossos theatros... mas abortariam de tanto
rir, as pobres mulheres, de tanto rir! E
sentando-se: Sinceramente, vale a pena
emparedar-se um homem entre dois desconhecidos
em uma platéa asphyxiante
para ouvir cantarolas e admirar meneios
sensuaes de alméas sarapintadas? Vale a
pena deixar-se o canto do gabinete e a
companhia de um bom livro para ir ouvir
as imprecações de um fidalgo furibundo,
que vem á scena, com uma grande capa,
alongando as pernas, evocar os manes dos
avós e reconhecer um filho? Em geral esse
homem, que durante cinco longos actos estropêa
inimigos, é de tão perverso instincto
que nem a syntaxe consegue, na maioria
das vezes, escapar á sua furia. Que é
que nos offerecem os theatros? o vaudeville
que nos vem trazer, desnaturado pela
traducção, o espirito de Paris e o dramalhão
pretencioso e bufo, onde ha invariavelmente
a luta das paixões--o filho reconhecido
ou... outro disparate qualquer.
De Arte nacional, que temos? absolutamente
nada.
--De quem a culpa? dos poetas, doutor,
dos poetas que não trabalham.
--Perdão; nem dos poetas nem dos
emprezarios, commendador--a culpa é da
Fatalidade, falo agora como Seneca, disse
a rir, a culpa é da Fatalidade. Nisard, se
bem me lembro, diz que Roma não teve
drama porque não teve povo, o verdadeiro
povo, porque o drama é a obra litteraria
mais indigena e mais original de um paiz--não
póde ser feita sem o concurso directo
da massa popular, porque é ella que
a consagra no theatro. E para que exista
o drama é necessario que existam factos,
que haja uma historia, subsidio que, infelizmente,
não possuimos. Demais, o
nosso povo, na sua collectiva densidade, é
uma massa heterogenea, na qual o elemento
adventicio faz desapparecer o elemento
autochtone, absorvendo-o como uma cellula
mais forte absorve a mais fraca. Somos
victimas de uma conquista organica--talvez
não me exprima bem, mas a phrase
parece-me exacta e perfeita. Os factores
que nos parecem revigorar debilitam-nos,
tirando-nos toda a autonomia e repulsando-nos
lentamente... Somos nós os estrangeiros
na patria. Essa massa forasteira
é que impõe o theatro, é que concorre
ás casas de espectaculo para rever os seus
costumes, para recordar trechos das suas
primitivas glorias.
Vêde os dramas--ou são portugueses,
para o elemento que é, por assim dizer,
a grande força activa do paiz, ou traduzidos
do francês e agradam pela universalidade
do assumpto, porque são as paixões
modernas que existem em toda a parte;
ou as operetas que são a nota viva e saltitante,
que acarretam a nudez, o saracoteio,
a bambochata e acendem a sensualidade...
do Brasil nada. As poucas tentativas
fallecem porque quem as podia levantar
esquece-as e a razão é simples,
commendador: é que nestes dramas não ha
um fundo que impressione a collectividade:
o povo, que é a patria na sua mais
completa manifestação. É que o drama
no Brasil não é fundado em uma these nacional,
em um caso historico desses que
exprimem uma gloria commum e que são
a recordação de um momento ou de um
facto. Não temos um heroe que encha com
o seu prestigio todo o corpo de uma tragedia.
E d’onde viemos nós? que epopéas
demarcam a nossa victoria inicial? que altares
relembram a religião primitiva? em
que meandro ficam os tumulos dos que lutaram
pela nossa liberdade e pela nossa
crença? ha algum campo semeado de ossos
do bravos que tivessem sahido em defesa
da patria? não ha nada... não conhecemos
a nossa origem, somos um povo do acaso
com tres periodos de servidão--a servidão
de colonia, a servidão do eito e a servidão
do espirito.
Só póde ter theatro um povo livre.
Como havemos de rir se somos por temperamento
tristes e melancolicos? E nem
chorar podemos. Os antigos choravam pelos
seus heroes, eram lagrimas que recordavam
glorias épicas, e nós havemos de
chorar! porque?... de que?... de vergonha?
mas para isso ainda é preciso que
appareça um audaz que escreva o drama
dos pusillanimes.
Não ha assumpto, commendador, não
póde haver poetas. Ha um povo promiscuo,
é para esse povo que os emprezarios
trabalham, porque o brasileiro, como
o romano da decadencia, contenta-se
com os ursos sabios e com os saltimbancos.
O criado, que chegava com a cratéra,
poz remate á imprecação patriotica, e meu
tio, servindo uma taça, passou-a delicadamente
ao doutor exclamando:
--Parece estar divino!
Tocámos as taças e sorvemos demoradamente
o punch que, em verdade, estava
delicioso, porque o criado, perito em segredos
de buvette, perfumara o champagne
com alguma coisa que rescendia como
a baunilha. Por fim, pousando a taça, interrompi
o silencio com uma objecção subtil,
não tanto para refutar os conselhos
do doutor, como principalmente para
arrancal-o á mudez em que se reservara,
bambaleando a perna, a tamborilar com os
dedos no bojo da cratéra.
--Doutor se, como affirma, a causa da
miseria litteraria em que jazemos vem da
ausencia absoluta de factos, da esterilidade
historica, somos um povo fadado ao
silencio e á immobilidade: nem Arte escripta,
nem Arte cinzelada. Jámais teremos
a consolação suprema de rasgar um
horizonte para que nelle possa refulgir um
vulto de marmore ou para que nelle fique,
eterna como a Odysséa, a constellação de
um poema patrio.
--É um engano. Isso que o meu amigo
préga é o desalento, doutrina do desespero,
propria das raças nullas. Somos um
povo que começa, não temos um só periodo,
um só estadio ainda, mas isso não quer
dizer que sejamos um povo morto. Ainda
não começámos a viver, esta é a verdade;
ainda não começámos a viver. Temos elementos
para vir a ser um povo artistico
como foram os gregos: o meio, o caracter,
o sentimento e até a providencia dos mares
que nos distanciam do resto do mundo,
isolando-nos no equador como para obrigar-nos
a agir exclusivamente por influxo
directo da zona que creia, ao mesmo tempo,
a temperatura physica e a temperatura
moral. O brasileiro não é um povo
rudimentar sob o ponto de vista psychologico,
não é. E, a proposito, permitta-me
que faça aqui, muito á puridade, a minha
profissão de fé. Tenho uma extravagante
doutrina sobre a psychologia, que, em verdade,
já me tem valido apupos. Retrahi-me
e hoje apenas deixo presentir alguma
coisa, assim em intimidade como estamos,
por que não quero que vejam mais em minhas
palavras pretenções a dogmas: são
ligeiras idéas que desapparecem com a palestra.
--Fale, doutor! Pedi com interesse.
--Ah! meu caro, sou um «solitario».
Vai achar ridiculas as minhas palavras...
Em todo caso...
Tomou uma attitude severa e falou.
--Creio profunda e convencidamente
nas phases de dynamisação psychica--a
alma é um fluido perenne e immortal, activo
e autonomo, que circula mysteriosamente
pousando de corpo em corpo, como
a abelha circula, pousando de flor em flor.
Como uma suga o mel das flores, a outra
absorve o mel da intelligencia, que é um
producto complexo de funcções do cerebro
isolado: a imaginação; cerebro-cardiacas:
o sentimento; do instincto: a avidez;
e da vontade: a ambição que é a tenacidade
do desejo. Essas funcções só se manifestam
na materia com o contacto da Alma,
como as forças magneticas apenas se
desenvolvem com a incidencia dos dois polos
extremos. De longe em longe, colhendo
em differentes vidas qualidades de um
e qualidades do outro, a Alma encerra-se
em um ser, immensamente farta, immensamente
cheia, produzindo os genios, que
são como grandes colmeias que reunem
toda a essencia de multiplas variedades,
todo o mel colhido atravéz de multiplas e
variadas metempsychoses. É uma doutrina
de louco, decididamente, e eu sou o primeiro
a convir nisso, mas actualmente todas
as doutrinas têm um fundo de insania,
não é muito que surja uma inteira e
completamente louca. Mas creia o amigo
que é só assim que consigo comprehender
e explicar o apparecimento dos homens cyclicos--Homero,
que é a synthese de todo
o drama épico desde o periodo pelasgico;
Hesiodo, que é o mytho, a theogonia; Eschylo
e Sophocles, que são a tragedia;
Dante, que é o astro neutro posto no céu
sombrio da Idade-Média, terrivel e tragico
como Saturno, alumiando entretanto a
manhan triumphal do renascimento; Shakespeare,
que é o ponto de encontro das
paixões humanas. Homens-collectivos que
apparecem em uma éra determinada quando
ha um espirito perfeito. Commendador,
o futuro não contará a idade do homem
pela data do seu nascimento, mas
pelo numero de éras que tiver atravessado
o espirito que o escolher e a lenda de Mathusalem
será ridicula, porque haverá homens
dez, vinte vezes millenares. Não é
hoje uma verdade scientifica o atavismo?
A humanidade é uma redundancia: evolução
é um synonimo de substituição--progresso
quer dizer: aperfeiçoamento. O
povo tem uma expressão que define admiravelmente
o principio cerebrino da minha
psychologia: «As crianças de hoje
nascem velhas.» É uma verdade: a vida
repete-se. Demais, sendo a Alma uma
essencia perfeita, virgem, original e fecunda
e sendo ella a força concurrente
para a vida do ser, era justo que nós outros
fossemos produzindo constantemente
idéas novas, novos principios, entretanto
ahi está, de longo tempo, o aphorismo do
Ecclesiaste como uma verdade: «Nil novum
sub sole.» Razão formidavel em favor
da minha escola exclusiva--não póde
produzir actos novos o que é de natureza
antiga: repete, varia ampliando ou aperfeiçoando.
Sendo uma a causa, os effeitos
serão invariavelmente os mesmos, mais
ou menos aperfeiçoados pela combinação
dualista: materia, espirito, impulso e meditação,
acção e reacção.
--O doutor é spirita? indagou meu tio
com um leve tremor na voz.
--Não, commendador... Spirita, eu!
Sorriu com desdem, tomou um charuto da
caixa, acendeu-o e continuou reclinado,
com as pernas estendidas:
--Mas, dizia eu, o brasileiro não é um
povo rudimentar. Sem recorrer ás idéas
expostas tenho uma observação que, posto
não seja muito original, presta-se magnificamente.
A nostalgia, que é o avesso da
esperança, é a saudade na sua expressão
mais nobre, porque é a saudade do absoluto,
quasi que posso dizer assim, saudade
da terra, do céu, dos rios, da selva, do homem,
do ar, do rumor, de tudo que se
amou, de tudo que se viu e sentiu além.
Ora, commendador, para que exista a nostalgia,
que é um effeito, é necessario que
tenha existido uma causa.
--Forçosamente, corroborou meu tio.
--E qual é ella? Entretanto o brasileiro
é nostalgico. Nostalgico de que? porque?
pergunto. Que vida no Aquem viveu
elle para que tenha saudade tão intensa?
que outros astros o alumiaram? que outras
selvas trilhou senão as do seu paiz?
Meu tio deu de hombros. E o doutor, num
impeto, pondo-se de pé como inspirado,
disse:
--Tenho, para mim, que Colombo conhecia
a America antes de a ter visto--conhecia-a
inconscientemente, porque nella
vivera a Alma que o animava. A fé que
elle tinha nos mares immensos era certeza,
e essa doce melancolia que o acabrunhava
quando avistava o oceano, póde ser
que fosse um resultado de desanimo, porque
era forçado a sopitar a sua paixão
aventureira, mas no fundo, penso eu, era
nostalgia da terra que era Ideal para a
sua imaginação, que era verdade para a
sua Alma.
Meu tio escutava boquiaberto, com ligeiros
fremitos, como se o doutor lhe estivesse
revelando coisas de um mysterio
absconso; arfava cançado, como se as
phrases, que jorravam copiosas num catadupejar
sonoro, dos labios facundos
desse erudito moço, não lhe dessem tempo
para respirar. A cabeça approvava machinalmente
e os olhos, que traduziam profundo
abalo de crenças e de convicções,
abriam-se, cerravam-se, parecendo, ás vezes,
querer saltar das orbitas onde rolavam
arregaladamente, desatinados e aturdidos.
--Realmente, doutor, disse cabeceando
com enthusiasmo, realmente... e tomou a
taça de punch engulindo gulosamente um
sorvo. A sua philosophia, deixe lá, tem
alguma coisa de verdade. Commigo tem-se
dado o facto que citou. Ha occasiões em
que parece que me recordo de uma outra
existencia.
--E ha de ter reconstituido pequenos
episodios, commendador.
--Pois não... Pois não...
--E os casos de sympathia e de antipathia?
bem querer a alguem que se vê pela
primeira vez, detestar uma creatura que
se encontra, ao acaso da travessia e que
nos vem receber affavel e meigamente,
toda bondade e blandicias? Que é isso senão
uma prova evidente e cabal de que
houve relações entre os espiritos encerrados
em nosso corpo e no corpo da pessoa
que se nos depara--relações de amor e
de amizade, de despeito ou de odio, no
impenetravel e nebuloso Aquem? Causas
estranhas, phenomenos do incognoscivel.
Luciano, o ironico, fartou-se de rir da
doutrina de Pythagoras, mas deixem lá...
deixem lá. Sacudiu um gesto como para
afugentar idéas e disse: Mas deixemos
divagações que não têm fundamento senão
em conjecturas. O Mysterio seduz,
mas o Mysterio é a Sphinge. Deixemos
o caminho de Thebas, deixemos o
enigma, vamos pelo terreno firme. E tocando-me
delicadamente no hombro: Voltemos
ao nosso thema. Dizia eu que possuimos
elementos para vir a ser um povo
artista como os gregos. É uma verdade,
posto que desmentida diariamente pela
improductividade e pela inercia esteril.
Porque? porque não temos educação de
ordem alguma. Physicamente, somos um
povo hybrido, sem raça discriminada, sem
antecedentes firmes; nascemos da amalgama,
somos os epigonos de Babel. Essa
miseria de origem reflecte-se no organismo.
Dizem que o brasileiro é preguiçoso,
languido e contemplativo. Ha quem lance
esses vicios congenitos á conta do clima,
é verdade, em parte, mas esquecem inteiramente
a etiologia--que é a origem.
O sangue que circula em nossas veias
é uma mistura heterogenea de globulos
que se destroem reciprocamente para que
um sobrepuje e vença: o globulo africano
dá-nos o banzo; o que herdámos dos navegadores
dá-nos a actividade, a tenacidade
arguta e trefega de investigação e o
egoismo, que é um euphemismo de avareza;
e, finalmente, o globulo virginal do
sangue indigena. Em uns vence a saudade--é
a vida do coração, são os sentimentaes;
em outros supera o germen europeu
e são os activos: homens de sciencia e de
commercio, bem raros, infelizmente; nos
ultimos, a força indigena prevalece e são
os bravos e os sonhadores. Ha, entretanto,
casos excepcionaes de fusão--a luta
constante dos tres globulos: são os desorientados,
homens indecisos, dubios, de
existencia incerta, de vontade vária, sem
idéa firme, sem iniciativa. Sobram-nos,
por desgraça, esses casos de excepção--a
maioria do nosso povo é constituida de
anomalias. Não nos nacionalisaremos emquanto
o tempo não fizer a differenciação
necessaria. Além disso o clima torrido
amollece, entibia, tornando o povo languido
e nostalgico. Ha, todavia, um meio de
combater essa teratologia organica--é a
educação. Educação physica, o sabio artificio
de que lança mão a Humanidade para
aperfeiçoar a obra natural, enrijando os
musculos, reforçando os ossos e concorrendo
para vitalisar a intelligencia, garantindo
a saude e o bom humor. Educação
moral, que é a confortavel armadura do
espirito que o premune e defende contra
as ciladas constantes da vida de sociedade,
porquanto fornece ao homem os conhecimentos
praticos do bem e do util, creia
o amor altruista estabelecendo a unidade
entre os seres--um por todos, todos por
um--formúla noções geraes sobre o destino
na vida, mostrando as relações que
devem existir entre os individuos e os fins
de todos para o bem da communidade; estabelece
as bases irreductiveis da familia
e da sociedade dando a mais o vasto appendice
da crença, que é a caixa de Pandora
de onde a sciencia póde arrancar todos
os dogmas, porque ha de sempre ficar no
fundo, immarcessivel e consoladora, a Esperança.
A educação moral, para mim, deve
comprehender a educação civica--o culto
dos maiores e o respeito pelos factos da
tradição que levam o homem ao absoluto
amor, o amor da Patria. Não temos. Nas
escolas desconhecem de todo essa hygiene
de espirito. Educação intellectual...
O nosso povo, na sua maioria, é ignorante.
Ha uma pequena parte de selecção
que lê, outra parte que ouve e outra
que não lê, nem ouve: o patricio, o
plebeu e o servus, eis as tres castas. A
primeira impõe, a segunda transmitte, a
terceira executa--d’ahi a inconsciencia
de todas as nossas manifestações collectivas.
O povo, propriamente dito, é uma
massa rude que serve de instrumento aos
privilegiados. Essa casta superior, que podia
impôr as letras e as Artes, é indifferente,
porque não se educa na patria, educa-se
no estrangeiro ou nas suas doutrinas,
é lida em livros de fóra, visita museus
na Europa, fala sobre exotismo e
sente e pensa atravéz do sentimento e do
pensamento dos seus educadores--são automatos
do Occidente; d’ahi a impossibilidade
de dilatação litteraria e artistica.
Se se cuidasse da educação da Patria
com elementos proprios, tratando-se de
formar espiritos nacionaes, genuinamente
nacionaes, dentro em breve teriamos Arte,
porque o povo, ligando-se á terra pelo espirito,
sentiria necessidade de conhecer-lhe
os segredos e viria disso, talvez, a noção
de patriotismo que ainda não existe
entre nós. Antes de fazer Arte tratemos
de fazer povo, eis o principio. Somos um
grande coração... já alguem disse. Oh! a
caridade proverbial do brasileiro, a sua
hospitalidade só comparavel á dos arabes...
Somos um grande coração, mas sem
systole: recebemos a vida no que nos transmittem,
mas não transmittimos absolutamente
nada. Somos um coração sem systole,
empanturrado de sangue como um
odre, mas na analyse de um coagulo das
nossas arterias um sabio paciente descobriria
atomos de todo o sangue universal.
Germens de todas as raças do mundo circulam
dentro em nós e é justamente por
isso que não somos nada, porque não temos
identidade. Só ha um meio de tirar
dessa miscellanea um povo--é educal-o,
mas educal-o na escola austera do amor
da Patria de modo que elle se converta a
nacional, vivendo para sua terra, que bem
merece que por ella vivam. Alma antiga
em corpo antigo, eis o brasileiro--um
povo macrobio no berço. Poz-se de pé
d’um impeto e voltou-se para o relogio:
--Como! onze horas! É estranho! Sacudiu-se
todo, deu um puxão á sobrecasaca
e, accendendo novo charuto: Até amanhan,
commendador...
--Já?! disse meu tio, com a voz cançada,
suffocando um bocejo.
--É muito tarde. E rindo: e o senhor
está a cahir de somno. Até amanhan! Até
amanhan! disse interrompendo meu tio,
que ia provar que não estava absolutamente
a cahir de somno.
O criado entregou-lhe a cartola e a bengala.
Levantámo-nos para acompanhal-o.
Á porta, despedindo-se, vedou-nos a passagem
para que não apanhassemos o sereno
da noite e, apertando-me valentemente
a mão:
--Perdoe-me e não guarde resentimentos
das minhas doutrinas--são inoffensivas.
Rimos ambos e quando elle partiu
ficámos a olhar e a vel-o seguir pelo jardim
calado, alvissimo do luar, girando a
bengala e cantarolando:
/*
La gondola nera fuggiva...
*/
De longe atirou-nos o ultimo adeus:
--Até amanhan...
--Boa noite, doutor! dissemos ambos.
E meu tio ajuntou atravéz de um bocejo
sonoro:
--Conversa bem, mas é meio doido...
é meio doido...
E, arrastando os passos, foi cahir mollemente
na cadeira abbacial das refeições
e do primeiro somno.
IX
O dia amanheceu baço e humido.
Chovera pela madrugada.
Meu tio, em candidos linhos,
estirado num pliant de lona, com um jornal
sobre os joelhos, olhava da varanda os
rosaes ainda gottejantes. Saudando-me,
interessou-se pela minha noite, indagando
se não me assustara com os tremendos trovões
da madrugada e, dizendo-lhe eu que
nem os ouvira, lançou-me os olhos, admirado
da valentia do meu somno de chumbo,
affirmando--que o céu viera abaixo
em raios e em agua. Sahimos ao jardim
para ver os descalabros da tempestade
nas roseiras e nas moutas de cravos
e compungimo-nos, mais de uma vez, diante
das esfolhadas de petalas ou á vista de
um canteiro que a torrente da chuva escavacára.
Mas já o jardineiro andava a
recompor, pondo esteios, fincando espeques,
ligando galhos, ajustando ramos, e
meu tio, como se visitasse uma enfermaria
de desastre, ia de arbusto em arbusto,
sempre com uma phrase terna e cheia de
condolencia, lastimando o botão que os
ventos haviam arrancado ou a begonia
pendida para a terra encharcada, quasi a
morrer dos embates fataes da noite tempestuosa.
Almoçámos tristemente--repasto funebre
de exequias, sem palestra, com poucos
vinhos. Os canarios, como se participassem
da agonia das rosas, estavam encolhidos
nos poleiros, mudos. Sahimos
logo depois do almoço, porque meu tio não
queria demorar-se mais a olhar a devastação
do seu jardim, mas como o Jeronymo
lhe promettesse «arranjar tudo», recompoz
a physionomia e, quando entrámos
para a victoria, já elle levava o rosto
transfigurado e dizia a rir «que as almondegas
estavam coriaceas», cravando nos
dentes um resto de palito.
Em caminho falámos do Dr. Gomes.
--A proposito, meu tio, de que vive
elle?
--Tem uns predios, ganhou alguma
coisa na praça á minha custa, accrescentou
com superioridade. Deve possuir uns
trezentos contos. Mas gasta muito, é um
dissipador: o dinheiro foge-lhe das mãos
como entrou.
--É solteiro?
--Solteiro. Vive com uma italiana
bailarina, uma Denzi, Emilia Denzi. Bella
mulher, boa voz, mas... E meu tio, num
gesto eloquente, derreando a cabeça, entornou
o polegar na guela e, com lastima,
os olhos em branco: É uma pena!
--E elle?
--Tem theorias. Diz que é nevrose,
que a culpa não é della, que aquillo é um
mal hereditario e dá-lhe coisas a cheirar,
e deita-a. É preciso vel-o. Já uma vez,
lá em casa, foi um trabalho para conter a
italiana. Entrou a beber e deu, a principio,
para cantar ao piano, elle acompanhava-a
tremulo, já desconfiado prevendo
o desfecho. Cantou a Traviata e uma barcarola;
mas, de repente, poz-se a achincalhar
a musica e, sem mais, apanhou as
saias e saltou para o meio da sala atirando
as pernas ao ar num can-can furioso.
Por fim tomou de uma peanha a mais linda
estatueta que eu possuia, partiu-a e
atirou-me os cacos á cara; elle, porém,
com um heroismo generoso, poz-se á minha
frente, recebendo no peito o que a
furia me arrojara. É um perigo! Um perigo,
mas mulher bella e de carnes.
Chegaramos ao largo, ao mesmo ponto
em que, na vespera, haviamos estacionado,
e meu tio impelliu-me para a rua, dizendo
ao imperturbavel Edgar: Ás cinco!
Iamos caminhando em direcção á rua
do Ouvidor quando meu tio, parando repentinamente,
perguntou-me:
--Ó Anselmo, dize-me cá: tens dinheiro?
Machinalmente levei a mão ao bolso,
mas recolhi o gesto a tempo, respondendo,
entre vexado e cubiçoso:
--Pouco, meu tio, creio que duzentos
ao todo... tenho ainda umas compras a
fazer: lan e talagarça para Marocas, uma
Senhora de Lourdes para a velha e as
obras do Casimiro para o Simão Carreira.
Sem dizer palavra, meu tio sacou do
bolso a enorme carteira empanturrada e
tirou um macinho nitido, de notas largas,
dobrou-o e deu-m’o sorrateiramente. Nem
me preoccupei com a carteira, foi mesmo
no bolso da calça que as guardei profundamente,
acariciando-as.
--Precisas conhecer o Rio... tens ahi
a chave de todos os mysterios. Acolhi com
respeito a peroração sentenciosa do meu
generoso parente, e do mais intimo de minha
alma elevou-se, como num suspiro
subtil e estremecido, toda a minha gratidão:
Obrigado, meu tio. Elle, porém, ou
porque não ouvisse, ou para affectar indifferença
á dadiva, estendeu-me a mão
liberal com estas palavras: Deixo-te aqui.
Tenho ás 3 horas assembléa geral da Companhia
Fomento Agricola. Não te vás
perder, vê lá! Anda como quizeres, mas
não saias da rua do Ouvidor e, ás cinco,
no Paschoal. Sabes onde é?
--Pois não; sei.
--Vê lá!
--Vá descançado: Ás cinco horas no
Paschoal.
Separámo-nos.
Fiquei algum tempo indeciso, sentindo-me
mal na liberdade, receioso, timido, sem
animo de atravessar sósinho a rua do Ouvidor.
Parecia-me que toda aquella gente,
que subia e descia, mirava-me achando-me
desageitado e ridiculo, o ar tolo, os modos
desalinhados. Meu terno tão perfeito, tres
vezes provado e retocado por mestre Thomé
Caminha, parecia-me largo e fofo, sem
gosto, fazendo dobras nas costas, curto de
mangas, curto de pernas, todo elle curto
e largo, sem geito. Sentia-me mal e estive
para correr ao alcance de meu tio, pedindo-lhe
que me levasse á assembléa do Fomento,
tal era o desanimo que de mim se
apoderava ao ter de atravessar, sem companheiro,
a rua que eu via diante dos
olhos, atulhada de gente, apezar da ameaça
sombria das nuvens que rolavam no
céu, turgidas e tumidas de aguaceiros.
Diante de uma vitrina lancei um rapido
olhar de analyse e achei-me escorreito e
liso, apenas o chapéu havia tombado para
a esquerda; puxei-o e, estacando, a enrolar
um cigarro, o olhar errante como se
procurasse alguem, deixei-me estar algum
tempo a invocar coragem para vencer a
cobardia do meu espirito acanhado. Por
fim atrevi os primeiros passos e fui caminhando
vagarosamente, cauteloso, para
não ir de encontro aos que vinham azafamados,
indifferentes, abrindo caminho á
força de hombros e cotovellos.
A minha idéa era o Paschoal. Ali, ao
menos, sentado a uma das mesas, ninguem
daria por mim e poderia ficar até ás cinco
á espera de meu tio, livre daquelles
olhos que me pareciam despir, livre daquelles
sorrisos que pareciam criticar os
meus gestos selvagens e o meu lento e medroso
caminhar de rustico. Mas, subitamente,
como se despertasse dentro em mim
uma nova energia, senti-me desembaraçado
e altivo. Parti, pisando forte, a olhar
d’alto a gente; mas ao cabo de alguns passos,
um grupo de senhoras garrulas colheu-me
num encontro amigo, no enleio
expansivo de uma intimidade affectuosa,
o fiquei collado á parede a ouvir beijos
chochos trocados com precipitação e risinhos,
emquanto um pequeno, vestido á maruja,
mettia-se pelas minhas pernas empurrado
pelas amistosas damas.
Atroz menino! atrozes senhoras! Uf!
Esbaforido e suado consegui desentalar-me
do aperto intimo, maldizendo as
minhas patricias que andam pelas ruas,
como as formigas pelos trilhos da roça,
esbarrando os labios em beijinhos. Afastei-me
da calçada para evitar nova collisão
e segui lançando os olhos adiante na
esperança de descobrir o doutor que, segundo
a affirmação peremptoria do meu
tio, devia andar pela rua do Ouvidor digerindo
o almoço e commentando os nossos
erros politicos e os ultimos livros de
França. Infelizmente, porém, cheguei ao
Paschoal sem ter sequer divisado a sua
sombra e conjecturei que se deixara ficar
em casa amarrotando as housses dos divans
em longos espreguiçamentos de tedio,
com os seus poetas, em solidão ou tendo
a seu lado a italiana, em toilette tenue
de cambraia e rendas, mexendo grogs de
cognacs, com um romance de Tosti nos
joelhos.
Um homem como o doutor não abandonaria
o lar num dia como esse de spleen
e de nevoa. Que viria fazer á rua senão
chapinhar na lama e ouvir as queixas indignadas
dos politicos, que presagiavam,
com grande cópia de argumentos, um futuro
tragico de assassinios e de roubos, de
violencias e crimes barbaros? Que viria
fazer á rua quando podia estar no tepido
aconchego do seu «home» arrulhando
nesse doce toscano, que foi o idioma
dos amores, no tempo em que a humanidade,
menos civilisada, amava? Não, meu
tio errara na sua affirmação: o doutor não
andava pela rua do Ouvidor, devia estar
nas Laranjeiras, a reler poemas para distrahir
a paixão bacchica da italiana iconoclasta,
ou a traduzir os sabios conselhos
de Martial sobre a felicidade, onde o poeta
escreveu este hemistichio sobrio que, de
per si, constitue um elemento de paz e de
ventura: nox non ebria... talvez nunca experimentado
pela bailarina.
Apezar de pensamentos taes, não me
abandonava a esperança de o ver surgir
de repente, muito correcto na sua toilette
justa, espalhando em sorrisos o seu bom
humor e a sua graça.
Da porta do Paschoal estive longo tempo
a contemplar o meio corpo de um homem
que ficara á esquina, parado. Via-lhe
apenas um lado: meia aba do frack,
uma perna, metade do chapéu. Tive impetos
de partir para reconhecel-o; mas,
evitando-me os passos em vão, o homem
voltou-se--era um sujeito moreno, abaçanado,
com grandes bochechas molles picadas
de bexigas--um bigodinho ralo descia-lhe
pelos cantos da boca em duas gotteiras.
Cançado, resolvi entrar. Havia
uma mesa junto á porta, encostada a uma
das columnas. Tomei-a.
Pouca gente. Rapazes, o ar entediado,
bebiam. O que eu vira no primeiro dia, lá
estava abancado a ler a mesma tira, creio,
a um pequenote de olhos espertos que bebia,
sedentamente, a grandes goles, uma
agua effervescente dando com a cabeça
loura em signal de approvação. O da tira
levantava gestos que deviam exprimir coisas
de subido alcance ou guindava, com
os dedos em feixe, tremulamente, numa
ascensão olympica, a imagem ou a estrophe,
e o outro, radiante, como um auditor
romano dos que ouviam Estacio, sorria,
acompanhando com um olhar ineffavel os
dedos, que já iam pelo ar subindo, subindo
sempre, á proporção que a voz se ia tornando
cava e profunda com um rumor
longinquo de trovões de estio.
Quando o caixeiro veiu ter commigo,
ouvi distinctamente o ultimo ronco e logo
em seguida a voz infantil e clara do auditorio.
--Bonito! Bonito! Delicioso, Mendes!
Delicioso! e docemente, numa lisonja amavel,
repetiu o verso final:
/*
Neste cymbio de prata...
*/
O resto do verso, que devia ser divino,
perdeu-se no estouro de uma nova garrafa
d’agua aberta para o pequeno enthusiastico
e sedento. O da tira dobrou-a
com indifferença e guardou-a no bolso interno
do casaco atirando para cima da
mesa uma nota.
Na mesa contigua uma virago de luto
mastigava gulosamente com um triturar
famelico de mandibulas, diante de um velhote
casmurro, que meditava levando, de
vez em vez, á boca, escondida por trás da
barba curta e amarellada, o copo de cerveja.
A mulher devorava atabalhoadamente
e elle, taciturno, parecia muito longe
d’ali, com os olhinhos fitos no vago,
em algum sonho de saudade, talvez na
imagem sempre viva de quem se fôra e
por quem elle trazia a cartola enrolada em
crepe e a mulher insaciavel o merinó de
luto. O caixeiro acudiu ao meu appello.
Encommendei um grog. E voltei o olhar
para os dois rapazes. O da tira tomara
uma attitude de abandono, as pernas
cruzadas, cahido sobre a bengala,
cujo castão perdia-se-lhe na axilla; o
pequeno accendera um cigarro e baforava,
farto.
Trouxeram-me o grog.
Um tlim-tlim ao lado attrahiu-me a
attenção. O caixeiro acudiu num salto. O
velhote, sempre triste, passou a mão por
sobre os destroços, responsabilisando-se
por tudo, e empinou-se para sacar o dinheiro
do bolso. A virago chupava os dentes
com estrepito endireitando a capota ao
espelho. Levantaram-se os dois. O velho
dava pelos hombros da mulher e, magrinho,
engelhadinho, fazia dó vel-o humilhado
pela abundancia daquella Eva formidavel,
de seios enormes, que o arrastava
soberanamente como a cauda do seu vestido
arrastava os palitos do chão. Fazia
dó ver aquelle homem diminuto e franzino
ao lado daquella fartura--e foram-se,
ella adiante chupando os dentes, elle
seguindo-a, com o guarda-chuva debaixo
do braço, contando as notas do troco.
Acompanhando com o olhar o pobre
velho, que desapparecia no rasto da poderosa
Cybele, passou-me pelo espirito
este pensamento estranho: Esse homem
apanha da mulher.
E ri, ri francamente, imaginando o
homunculo, em camisa de dormir, descalço,
a saltar, a correr perseguido pela mulher
possante que lhe atirava varadas ás
pernas seccas e guedelhudas.
Enfastiado de estar ali sósinho, resolvi
tomar rumo, e como o caixeiro passasse,
atirei-lhe dinheiro. Elle inclinou-se esfregando
a mesa com um guardanapo e indagou:
--Foi um grog?
--Sim, um grog, disse-lhe e, lembrando-me
de que era assiduo na casa, tive a
feliz inspiração de interrogal-o:
--Não esteve por aqui o Dr. Gomes de
Almeida?
--Sim, senhor; esteve aqui, mais um
outro, um de barbas louras, e puxou das
bochechas duas suissas imaginarias.
--Ha muito tempo?
--Ás onze e meia, mais ou menos.
Retirou-se depois de perguntar-me se
queria mais alguma coisa.
Levantei-me para sahir: não havia, porém,
chegado á porta quando alguem poz-se
a bradar:
--Ó senhor! Ó senhor! Voltei-me; era
o caixeiro que me perseguia sorridente e
apressado:
--Olhe ali em baixo o Sr. doutor Gomes...
--Onde? indaguei ancioso.
--Acolá, ao fundo.
Ainda não conseguira descobrir o paradeiro
do illustre moço e já a sua voz
clamava por mim de longe, festivamente:
--Bemvindo seja o meu amigo!
Avancei pressuroso e radiante, esgueirando-me
por entre as cadeiras para cahir
nos braços do meu recente amigo. Apertámo-nos
e, em poucas palavras rapidas,
contei a minha peregrinação pela rua
nesse dia obscuro e inerte. O doutor, com
um gesto vago, lançou apodos ao clima e,
arrebatando-me para a mesa, apresentou-me
a uma formosa mulher loura, em cujo
rosto reconheci promptamente as pupillas
azues mais claras do que a celagem,
que tanto me haviam seduzido quando,
pela primeira vez, palmilhei o lagedo da
rua do Ouvidor.
--Mlle. Marie, ou simplesmente Marion,
a divina Marion... E á loura, com
distincção: Dr. Anselmo Ribas, meu amigo.
Curvei-me ao peso do titulo e diante
da belleza. A divina Marion desabrochou
um sorriso adoravel, todo doçura e graça,
á flor dos labios finos e offereceu-me a
pequenina mão apertada em uma luva côr
de perola que lhe subia ao cotovello, enrugada
e cheia de pulseiras. Commovido
e tremulo tomei a mão leve de mademoiselle
e que de esforços empreguei para não
a levar aos labios!
--Mettez-vous ici... disse-me ella afastando-se
com um rumor de sedas, comparavel
ao que fazem os bandos de pombos
bravos quando levantam o vôo das margens
dos rios, na minha terra.
Sorri e balbuciei com uma pronuncia
tosca: Je vous remercie bien.
O doutor affixou com habilidade e
graça:
--Meu amigo, exprima-se em vernaculo,
sem cerimonia. Marion é de Paris,
mas fluminense pelo coração. Mademoiselle
asseverou galantemente com a cabeça
loura. Sorri.
--Iamos por um champagne e pela
moral de Philetas. Falavamos do amor
na accepção terna do termo, tão vilmente
abastardado pelos actos civis e religiosos
do casamento e bebiamos Clicquot frappé.
Veja o amigo se está pelo thema e se aceita
a bebida, que nesta casa é detestavel, valha
a verdade.
--Perfeitamente, disse voltando-me
logo para os olhos doces de Marion.
O doutor ergueu a garrafa esgotada e
impoz ao caixeiro:
--Outra e uma taça. E logo tornou:
Para um celibatario de gosto, meu amigo,
não ha actualmente no Rio melhor emprego
de capital e, com a mão aberta, estendida,
indicou-me Marion. Fala tres
linguas e com uma voz... Não é esta que
o amigo ouve, não, é bem differente--modulada
em bemóes languidos. Ó Marion,
dize alguma coisa no tom intimo, fala
como se estivessemos no teu ninho. E mademoiselle,
rolando os olhos, pipilou:
--Mon p’tit’! O doutor, em veia alegre,
derreou-se perdido.
--Ouviu? e ainda não é tudo! Quando
ella diz: Mon amour! e apertou o proprio
peito estremecendo e demorando a
exclamação. Ah! meu caro! Mon amour!
hein, Marion? Mademoiselle baixou as
palpebras maliciosamente. E o doutor
continuou: Executa Chopin e tem uma
estante de classicos. E mais do que tudo
isto--dezoito annos.
--Dix-neuf, emendou Marion, dando
com o leque uma pancadinha no hombro
do doutor. Dix-neuf, Gomes. Quand j’avais
dix-huit ans j’connaissais pas encór’
l’amour... arrulhou endeixosa.
--Pois sim, dezenove; mais um, que
não apparece ainda á flor do rosto. Ah!
porque os annos realisam o eterno principio
da gotta d’agua, já citado por Montaigne--accumulam-se,
accumulam-se sem
que a gente se aperceba e, ás vezes, basta
um dia para que a velhice transborde em
rugas e em cabellos brancos. Não achas,
Marion?
O caixeiro serviu o champagne.
Mademoiselle tomou a sua taça e, erguendo-a,
cumprimentou-me: M’sieur!
--Mademoiselle! correspondi; e os
crystaes tiniram. Mas (e aqui faço a confissão
da perfidia covarde de que me tornei
culpado) não foi só isso, por baixo da
mesa senti que um pésinho roçava pelo
meu carinhosamente e, num movimento
allucinado, calquei tambem, com toda a
violencia do meu amor e com todo o peso
dos sapatos inglezes. Mademoiselle, sem
um protesto, impassivel, bebia; e eu, num
delirio indomavel, baixava os olhos attrahidos
pela alvura do seu collo esgargalado,
de uma tez fina onde passavam fremitos
dourados.
--Demora-se no Rio? indagou a divina
Marion, rilhando as palavras.
--Pouco, mademoiselle.
--De onde é?
--De Minas.
--Ah! de Minas... Recolheu-se um
instante e, pouco depois, perguntou-me
com a sua voz mysteriosa, a encantadora
voz de que falara o doutor:
--Conhece em Juiz de Fóra, Amancio...?
--Amancio! Amancio de que, mademoiselle?
E os nossos pés trucidaram-se
cruelmente.
--Amancio de... Tocou os labios com
o leque, elevou as pupillas num olhar extatico
e nervosa: não sei de que... É um
gordo, tem uma fazenda com muitos bois,
faz queijo...
--Não, mademoiselle, não conheço.
Calámo-nos. O doutor, pensativo, desfazia
os crystaes de gelo no champagne,
balançando a taça. Mademoiselle tornou-se
de novo extatica.
De improviso o doutor chamou-me.
--Tem algum compromisso para amanhan,
Sr. Anselmo?
--Nenhum, doutor.
--Quer vir almoçar commigo?
--Com todo gosto.
--Podemos fazer uma ascensão ao
Corcovado? Ainda não conhece o Corcovado?
--Ainda não.
--É bello! E dá-se commigo um caso
estranho--sinto, de vez em quando, a necessidade
da altura, tenho a mania satanica
de contemplar da montanha as coisas
inferiores. Já experimentou a delicia
vaidosa de ver toda uma cidade a seus pés
em nivel humilde? É delicioso, meu amigo.
Demais, recebe-se o ar em primeira
mão, fresco e puro, sem os toxicos da vida
rasteira e certos de que a golfada que respiramos
não andou pelas cavernas de pulmões
enfermos.
--Aceito com prazer, doutor...
--Queres ser do bando, Marion?
--Não é possivel, disse com lentidão
mademoiselle trincando os labios.
O doutor encarou-a e por fim sacudiu
a cabeça resignado:
--Pois iremos nós...
Calquei o pésinho para ver se por meio
delle conseguia vencer a caprichosa, mas
com surpreza senti que me fugia esquivo.
Insisti amoravel:
--Então porque não vem comnosco,
mademoiselle?
--Pas possible... disse com um momo
abrindo e fechando com estardalhaço o
leque. E pondo-se de pé, num impeto:
--Eh! bien... j’m’en vais...
O doutor mirou-a. Mademoiselle estendeu-me
a mãosinha:--M’sieur... e
friamente, dando as pontas dos dedos ao
doutor:--Au revoir!...
--Au revoir, Marie; disse com lentidão
cruzando as pernas e, quando a viu
sahir, passando nervosamente a mão pelos
cabellos, exclamou entediado. Idiota!
--Zangou-se? indaguei com interesse.
--Ciumes... Que quer o meu amigo?
não ha um ser perfeito. Veja essa mulher
divina... é ciumenta. Ciumenta a ponto
de fazer tolices. Bolas...! E casmurro:
Eu sei como tudo isto acaba: vão ambas
para a rua! não ha que ver. Vão ambas
para a rua... E recuperando o natural:
Então está combinado?
--Perfeitamente.
Trincou um charuto e irrompeu assomado:
--Um dia magnifico, não ha duvida...
magnifico! enguliu um pouco de champagne
e continuou: Não sei se o meu amigo
cultiva a volupia do somno matinal, o
somno das seis ás dez? É uma delicia! O
somno da noite dorme-o todo o ser--o
operario e o poeta, a agua gemente e a
flor, mas o extra languido, o somno tepido
da indolencia, esse é exclusivo dos privilegiados
que conhecem a vigilia--esse é
incomparavel, porque, não sendo um acto
normal, é um vicio e, como todo vicio, encanta.
Eu penso assim. Difficilmente deixo
os lençoes antes das dez. Acho que um
homem de gosto deve encontrar o dia pleno,
em viva luz, passaros cantando e tudo
em ordem para recebel-o porque, sahir
pela manhan, á hora em que a natureza
se arranja, quando o sol nasce e os passaros
acordam, produz em mim a mesma
sensação de desgosto que experimento
quando entro em uma sala de jantar no
momento em que o copeiro estende a toalha.
É odioso! Sou um commodista extremado--gosto
de achar tudo prompto,
limpo e nitido--o céu todo em sol, a mesa
já florida. Haverá coisa mais ridicula
para os olhos de um homem do que surprender
a mulher amada diante do espelho,
em penteador, sem meias, amaciando
a cutis ou trançando os cabellos, ainda
com os olhos empapuçados de somno? É
desolador! Levanto-me tarde, desço para
a ducha, visto-me--uma grande hora de
trabalho lento, mirado e caprichoso--e
ganho a frescura do jardim, uns metros
de terra onde brotam cravos e bogaris, sob
a copa frondosa de uma amendoeira amiga.
Ahi leio pausadamente os jornaes e
bebo o café e o cognac, ouvindo os meus
canarios. Sem essas minudencias sou um
homem inutil. Recolhi-me tarde, muito
tarde, e sem somno. Reli uns capitulos
de psychologia experimental e confesso
que fiquei impressionado. Eram talvez
quatro horas da manhan, cantavam gallos
pela visinhança, quando consegui conciliar
o somno. Pois ás seis fui violentamente
acordado, porque um intimo carecia do
meu auxilio para resolver uma questão
magna. Note o meu amigo que sempre
tive uma decidida vocação para a gynecologia,
recuei diante do forceps e dos outros
apparelhos de viabilidade fetal simplesmente
porque as senhoras preferem
dar á luz á noite... Se não fosse a hora
incommoda preferida pela genese, eu seria
hoje um parteiro notavel. Sou advogado,
homem de leis e de rhetorica. Desci
desesperado. Borrifei-me com um pouco
d’agua, sorvi, ás pressas, um gole de café
e, ainda em jupon, bocejando, recebi o intimo
na minha sala de estudo. Quer saber
o motivo da visita do meu illustre despertador?
a crise de transportes. Baniu-me
do leito para pedir-me um artigo violento
contra a Central. Escrevi, deve sahir
amanhan. É um horror! resente-se terrivelmente
do meu estado de espirito. O
intimo collaborou dando-me a assignatura,
que é um mysterio de que elle faz segredo:
A alma de Frei Góes. Não sei que
quer dizer, mas presumo que ha dentro
disso coisas de subido alcance. Mas agora,
entre nós, que diabo tenho eu com a
crise de transportes? Cruzou os braços e
encarou-me. Que tenho eu com tudo isso?
As cargas que apodreçam ao sol, pouco se
me dá que haja ou não sal em Matto Grosso
e sapatos em Goyaz. Que se arranjem,
deixem-me em paz, deixem-me dormir.
Que tenho eu com a crise? Houve uma
pausa curta e o doutor tornou: Depois
do artigo uma scena de ciumes. Uma mulher
idiota que se revoltou porque um intrigante
qualquer lhe foi dizer que andei
seguindo os passos de uma hespanhola, no
Polytheama. Virou o resto do champagne.
Eu sentia-me meio atordoado--ardiam-me
os olhos amortecidos de somno.
--Mas, meu amigo, voltando á minha
leitura da noite: confesso que estou deveras
impressionado. Tem lido os modernos
estudos psychicos?
--Alguns.
--E... que pensa da alma? indagou.
--É uma hypothese, aventurei.
--Como! uma hypothese? Não crê?
Sorri, e entrei a falar como se dictasse:
As minhas idéas sobre psychologia estacam
diante dos tumulos: depois da lapide
mais nada. Não posso comprehender essa
verdade suprema dos philosophos romanticos--a
vida posthuma. Alma é o atomo,
alma é a monéra, alma é a cellula,
alma é o sangue. Das causas puras, doutor,
só podem derivar iguaes effeitos, entretanto
o odio germina dentro em nós, o
ciume, a aversão, a antipathia, abjecções
proprias da materia, naturalmente affecta
á podridão pela sua propria essencia--o
verme. O nosso corpo é um thermometro,
de que o sangue é o mercurio. Nos
periodos pacificos e normaes marcamos os
gráus baixos da tranquillidade; um pouco
que o sangue ascenda ao cerebro, como o
mercurio sobe, ao calor dos fortes estios
ou das febres, temos a exaltação, o delirio,
todos os horrores do desequilibrio mental,
todas as concepções extravagantes e allucinadas.
Creio no Nirvana porque adoro
o silencio. Ao céu, ao promettido paraiso,
falta a primeira condição: variedade. A
vida eterna deve ser monotona. O meu
ideal é o fim absoluto. Isto de vida, doutor,
é um phenomeno de attracção de moleculas.
O homem vem ao mundo pela
mesma razão porque vem á arvore o fruto,
o fio d’agua á rocha: fatalidade, sympathia,
cohesão, tudo quanto quizerem, da
vida physica, da vida material; mas de
alma, espirito invariavel e eterno, sopro
de Deus, etc., etc.... não percebo. Alma
como conjunto dos sentidos, admitto. O
beijo é uma premissa do amor, o amor é
uma manifestação da alma.
Doutor, estude a psychologia em uma
criança: é um brutinho, incapaz de pensar,
incapaz de outra coisa que não seja vagir
e chupar tetas. A primeira manifestação
é toda material: o choro, manifestação positiva
do soffrimento ou do tedio, que é
innato, e a fome manifestação do instincto--a
alma mysteriosa não dá signal de si.
Com o correr dos annos chegam os sentimentos,
isto é, o aperfeiçoamento das sensações.
É por meio delles que as fibras
delicadas do cerebro e do coração vibram;
essas vibrações formam a vida complexa
do amor, do ciume, do desespero, do pensamento,
etc. Para a velhice, com o declinio
do corpo, todo o organismo definha e
a alma, immortal e forte, em vez de sustar
a queda da carne, auxilia-a porque os
sentimentos affluem todos para a saudade,
que é a velhice das paixões; ella é que vive
até á caducidade, até á bestialisação, até á
regressão ao primitivo estado de inconsciencia.
Alma é a vibração da mocidade,
alma é a ardencia do sangue. Infelizmente
nós outros oscillamos entre dois crepusculos--a
ignorancia da primeira idade e o
pavor do fim dos annos. Não creio, doutor;
em alma, não creio.
--Mas, pelo amor de Deus, meu amigo...
acudiu elle, vejo, pela prelecção que
acaba de fazer, que é um materialista intransigente;
isso, porém, não impede uma
observação singela. Abriu um parenthesis
para propôr mais champagne; recusei
e elle continuou firmando-se nas minhas
palavras: Vivemos entre dois crepusculos,
disse o meu amigo, mas os crepusculos
succedem-se numa eterna continuidade--as
almas têm o occaso em um corpo, mas
resurgem em outro. A alma existe como
existe a luz e ha de existir até á ultima
dynamisação. O corpo é um casulo. Como
já lhe disse, creio firmemente na vida eterna
das almas. A civilisação é o resultado
da longa pratica do espirito humano: a
carne é uma especie de alambique, mediador
plastico entre a concepção e o movimento.
Os homens que fizeram as primeiras
obras, os donos das idéas iniciaes, são
esses mesmos que as continuam. A morte
é apenas uma solução de continuidade.
Nós não fazemos outra coisa senão
aperfeiçoar o que dantes fizemos. As idéas
tem o seu alpha na antiga era. Ha uma
estranha connexão entre o pensamento
moderno e o modo de ver dos antigos--a
synthese de hoje vem da analyse de hontem.
Nós, a civilisação, estamos continuando
a nossa obra barbara. Somos os mesmos.
A alma de Lucrecio resurgiu em
Virgilio e a de Pythagoras, antes de metter-se
no corpo do sophista, animou Euphorbio,
filho de Panthous. Quem sabe se
dentro do meu amigo não vive a alma sceptica
de Zenon?
--Não, doutor, a alma que se aloja em
meu corpo nunca perscrutou mysterios
transcendentes--é a mais ingenua das almas,
contenta-se com um pouco de sonho
e com um pouco de amor. Como disse, as
minhas idéas estacam diante dos tumulos.
Depois da morte mais nada.
--Mas, meu caro amigo, note que já
os egypcios pensavam que «a morte é um
meio e não um fim»--um meio de perpetuar
a vida. A sciencia moderna vai desbravando
o mysterio da immortalidade: o
zaimph de Isis cahiu deixando a grande
deusa descoberta, e são tão fortes e peremptorios
os argumentos em favor da existencia
perenne, que é hoje quasi um absurdo
a negação da Eternidade da Alma.
--É possivel, doutor.
--É de uma arvore que murcha que
se colhe a semente para as florescencias
futuras. As suas idéas estacam á beira do
tumulo, porque encontram o silencio completo?
não; porque encontram a realização
perfeita do absoluto? não; um cadaver,
posto que vasio, existe. Nada se perde,
nada é inutil. O espaço é o nada e o
espaço existe. Que tem o espaço? constellações;
a morte tem tambem os seus astros,
o fogo fatuo, por exemplo, é uma estrella
funeral.
Demais se, como diz, as suas idéas estacam
diante dos tumulos, devem igualmente
estacar diante dos leitos.
--O doutor maneja adoravelmente o
paradoxo.
--Perdão, não é o paradoxo, é a analogia.
Diante de um dormitorio tem-se o
exemplo perfeito, o symbolo, devo dizer,
de uma pequena necropole: o leito é um
esquife. Reza-se para dormir e reza-se
para morrer; a lampada serve tanto para
os mortos como para os que dormem. Uns
e outros têm a mortalha...
--Doutor, mas isto é francamente o
que nós outros, pobres rusticos, chamamos
Poesia.
--Perdão, todo mysterio tem um fundo
poetico. Mostre-me uma religião sem
prophetas e os prophetas são os poetas
esotericos. Mas continuando: o sonho não
será a iniciação de uma outra existencia?
O sonho não será uma previdencia?
O corpo adormecido roja-se; parece
que tem a nostalgia da terra; e a alma?
paira, fica de vigilia como ficava, segundo
o pensamento dos padres de Osiris, de
guarda á mumia em que havia habitado.
O somno é o tunnel por onde a alma atravessa.
Meu caro amigo, não ha morte: Sisypho
é o symbolo da vida.
--Confesso, meu caro doutor, que apezar
da belleza da sua doutrina, o meu espirito
repelle-a. Escreva um poema com
essas idéas, um poema de mysterio no gosto
dos Versos Dourados.
--Pudesse eu, meu caro! Sacou o relogio
e poz-se de pé: Vamos sahir? Isto
está funebre.
--Tenho um encontro para as cinco.
--Feminino?
--Não, meu tio.
--Ah! Então demoro-me mais alguns
minutos. É cruel deixar um amigo abandonado
nesta triste sala em um dia como
o de hoje. E de repente: E se jantassemos
juntos...?!
--Onde? indaguei.
--Por ahi, em uma baiúca qualquer.
Pretexto para conversarmos. Temos a
ameaça de uma noite terrivel, podemos
atravessal-a queimando punchs em algum
gabinete, em companhia de alguem que
nos ajude a arrastar o tedio até a madrugada.
--Aceito, mas com a condição de impôr
alguma coisa: iremos a um theatro,
não para o espectaculo, pouco me preoccupo
com o que se canta em palcos, mas
confesso, em intimidade, que tenho um
desejo louco de ver a caixa de um theatro...
Dizem-se tantas coisas...
--É horrivel, meu amigo, mas não
pense que me recuso, póde dispôr de mim.
E mais ainda, sei que não conhece o Rio
á noite, proponho-me a mostrar-lhe, em
uma noite, todos os mysterios desta cidade
que começa a ter vicios. Joga?
--Pouco.
--Conhece a roleta?
--Conheço. E o doutor percebeu pela
expressão dos meus olhos que eu não era
de todo indifferente á tavola.
--Pois ha um meio de conciliarmos
tudo; vamos jantar ao club. Voltando-se,
o doutor deu com os olhos em meu tio, que
assomára á porta, sempre jocundo, já acenando
para o nosso lado. Levantámo-nos
para recebel-o.
--Meu caro doutor... e logo, dirigindo-se
a mim: Então? como te arranjaste?
--Perfeitamente.
--Bem... e de improviso: Vem jantar
comnosco, doutor?
--Hoje não é possivel, e indicando-me:
Vou mostrar ao amigo Anselmo o Rio de
Janeiro, á noite.
--Então, até amanhan.
--Até amanhan, meu tio.
--E não te cances muito, ajuntou com
um sorriso: amanhan á noite temos a festa
do Bessa, em Botafogo. E ao doutor: Lá
nos encontraremos.
--Não garanto.
--E cuidado, Sr. Anselmo, cuidado! O
Rio, á noite, é um perigo para os que vêem
pouco.
--Descance, commendador: eu vejo admiravelmente.
X
Em caminho o doutor, compenetrado
da minha ignorancia das coisas
do mundo, disse-me algumas
palavras de conselho, expondo-me, em claros
periodos, cheios de sinceridade, os riscos
da afouteza quando não se está de sorte,
e a profunda sciencia da roleta, que se
resume em saber acompanhar a banca.
Propoz-me um sector sempre feliz que,
uma noite, em casa de certa Elisabeth
Blayn, uma escosseza, lhe dera cinco contos
e tanto. Falou-me da roda que frequentava
o club--gente da melhor escolha:
alto commercio, a magistratura, as
letras, medicos. Podia-se estar á vontade
e o banqueiro, um homem de moral intransigente,
correcto e austero--tão digno a
dar a bola como um juiz presidindo um
conselho.
Tomámos o bond. A tarde triste escurecia
e o céu, pluvioso e grosso, pulverisava
uma neblina tenue, finissima, como a
garôa de Junho nos campos. Durante a
viagem falámos rapidamente da Débâcle
e de uma loura franzina, de waterproof,
que se acolhera a um canto e cruzara modestamente
as mãos no collo sobre uma
brochura ingleza. Iamos em corrida suave,
por um leve declive, em frente ao mar,
quando o doutor fez signal para que parassem.
Descemos e eu, numa attracção
amorosa, volvi os olhos mandando adeuses
tristes á loura, que parecia embebida num
sonho, tão distrahido tinha o doce e azulado
olhar.
--É ali! segredou-me o doutor, mostrando-me,
num gesto subtil, uma larga
porta, alta e nobre, onde rondava melancolicamente,
com as mãos para as costas,
um severo criado de casaca. Quando nos
viu curvou-se gravemente. Subimos por
uma escada de volta e, em cima, num vasto
salão, forrado por um tapete fôfo, semeado
de moveis, numa desordem encantadora,
um moço magro, de oculos verdes, tirava
tristonhamente de um Gaveau accordes
melancolicos.
--Guedes! O do piano voltou-se inopinado;
mas, como o doutor desapparecera
numa saleta cercada de cabides, mirou-me
fazendo um leve cumprimento e baixou a
cabeça terna, correndo os dedos pelo teclado
numa escala sentimental.
--Venha guardar o chapéu, amigo Anselmo.
E na saleta o doutor preveniu-me:
Esse typo que ahi está tirando gemidos ao
piano é um famoso cábula. Teve uma charutaria
e hoje vive a executar trechos de
sentimento e valsas nas batotas e nos saráus
dos bairros. Inculca um eterno palpite:
o 9. Muito cuidado! Sahimos para
a sala. O doutor, esfregando as mãos,
aproximou-se do piano.
--Chopin...? O dos oculos ergueu a
cabeça exclamando:
--Oh! doutor, bons olhos o vejam. Sacudiu-se
todo como para espanar a tristeza
d’alma e estendeu a mão affectuosamente.
--Dr. Anselmo Ribas, meu amigo,
apresentou o doutor e intimamente: O
nosso Guedes.
--Muito prazer, doutor, e estendeu-me
a mão dos accordes, humida e molle e, logo,
apressado, traquinando: Vamos para
a sala, vamos... Já devem estar á mesa.
Tomou-nos a frente, abriu uma porta e
meus olhos cahiram sobre uma calva polida
que reluzia, balançando, de leve, muito
regular, como certas pendulas de relogios
iconicos.
Entrámos. Jantavam.
O doutor, muito conhecido na casa, foi
recebido com um extenso oh! de todos que
cercavam a mesa ampla, de carvalho, arranjada
como para um banquete, com
grandes ramos de flores e puddings tremulos
em pratos de porcelana.
A mobilia, toda de carvalho, dava uma
feição distincta e séria á sala, forrada de
encerado inglez, com grandes reposteiros
que pareciam descer do tecto. Creados celeres
passavam sem rumor, de um lado
para outro. O homem da calva agitava-se,
com um guardanapo ao pescoço, esticando
os braços para apanhar pedaços de pão
numa corbelha de christofle, sempre a
mastigar. Mirou-nos e sorriu para o doutor
com a boca cheia. Sentámo-nos e logo
foi-nos servida a sôpa.
--Que tem feito, doutor? Por onde
tem andado? indagou um homemzinho engelhado.
--Negocios, meu caro.
--Não imagina como tem sido lamentada
a sua ausencia. Um gordo soprou ao
doutor: «O 7 deu hontem tres vezes seguidas.
O Monteiro lembrou-se logo do
amigo.» E voltando-se para a esquerda:
Hein, Monteiro?
Uma voz balofa indagou: Que é?
--O 7, hontem...
--Homem, é exacto: tres vezes! E
derreando-se sobre a mesa: Tres vezes,
Gomes.
--Sim, justamente porque eu não estava.
E o 29?
--Não foi mal, disse com circumspecção
o gordo; creio que repetiu. Espere
lá... Sacou do bolso uma tira crivada de
numeros e, acavallando o pince-nez, consultou--13,
22... ahn... ahn... 29! disse
com voz forte... ahn... 29! e... 29! Tres
vezes! Dobrou discretamente as notas e
guardou-as.
--Vamos ver hoje.
Da ponta da mesa uma voz esganiçada
pediu vinho. E travou-se uma palestra
viva, cruzada, em que os numeros entravam
ás porções, atropelando-se. Discutia-se
e, mais uma vez, ficou provado que á
roleta não se podia applicar principio algum,
porque não havia uma lei que se pudesse
dizer exacta,--tudo dependia do
acaso. Um rapazola citou Pascal, afiançando
que o methodo do illustre autor das
Cartas provinciaes era de incontestavel
merecimento. Entreolharam-se pasmados
e o gordo, cuspindo o palito, indagou:
--E você porque não segue os conselhos
do tal Pascal?
--Mas sigo, como não?
--Ah! Então percebo: Pascal tem um
methodo excellente para ensinar a ficar
limpo. Houve uma gargalhada estrepitosa
e o rapazola, corrido, procurou desculpar-se
com o temperamento:--Que era um
precipitado, sem paciencia, sem calma.
--Qual, menino: só ha uma sciencia--é
a sorte. Manda-me para cá a Escola Polytechnica
em peso e quero ver se ella
arranja alguma coisa com os calculos.
--Esta é a verdade, disseram.
--Qual Pascal, qual carapuça! Olha
o Monteiro: tem horror ás mathematicas,
é incapaz de sommar duas fracções...
--Incapaz! affirmou o Monteiro sacudindo
a mão diante dos olhos como para
afugentar a visão da sciencia exacta.
--Entretanto, perorou o gordo, é o que
se vê--os numeros procuram-no. O jogo
é como a mulher: quanto mais perseguido
mais esquivo. Qual Pascal nem meio Pascal--a
bola é que regula.
--Está quente aqui, soprou uma voz.
--Horrivel! ajuntou outra, esbaforida.
--Vamos subir, convidou o calvo, e todos,
concordando, já anciosos pelo primeiro
golpe, accederam.
--Sim, vamos subir. Ha pelo menos ar
lá em cima.
O doutor accendeu um charuto e, emquanto
os grupos desappareciam por uma
porta baixa, que abria sobre um largo patamar
de cimento, entre duas escadas, uma
que descia para o jardim, outra que subia
para um novo corpo do edificio, estabelecemos
as condições restrictas do jogo.
--Nunca mais de duzentos mil réis...
--Nunca mais! affirmei.
E caminhámos por onde haviam desapparecido
os grupos, ganhámos uma larga
escada que levava a um terraço, ao fundo
do qual havia a sala occupada exclusivamente
pela comprida banca da roleta, já
cercada de pontos anciosos. Justamente
na ocasião em que assomámos a uma das
portas, o calvo, sentado numa alta cadeira,
ao centro da mesa, annunciava com solemnidade:
--Cincoenta golpes, meus senhores.
O Guedes já havia tomado posto junto
ao rapazola que citara Pascal. O seu olhar
cúpido atravessava a espessa bruma das
lentes verdes e cravava-se no monte de fixas
que o neophyto acariciava cheio de
esperança, recapitulando baixinho os sabios
principios do mestre. O gordo passeiava
semeando fixas com calculo; ás vezes
demorava sobre um numero, trincando
o grosso beiço rubro, com as sobrancelhas
repuxadas por uma meditação profunda e
retirava-as, num accesso de palpite, recuando
ou avançando para outro numero.
Aproximámo-nos. O doutor, sempre
supersticioso, não quiz entrar na primeira
parada para jogar com segurança na sorte
do banqueiro. O calvo atirou a bola que
começou a gyrar, num silencio de anciedade--ouvia-se
apenas o leve rumor que
ella fazia circulando á borda da roleta,
como um satellite minimo em torno de um
grande astro, por fim foi amortecendo,
amortecendo. O gordo, que acompanhava
com ancia o gyro da bola, exclamou:
--Está dormindo! e inspirado: é o 19!
disse e precipitadamente atirou sobre o
numero tres fixas.
--É o 13, disse o Monteiro, carregando,
com a cara á banda, um olho pisco,
para evitar o fumo do cigarro.
--Feito o jogo! annunciou o banqueiro.
Recolheram-se todos e o calvo, gravemente,
espalhando pelo tapete um olhar
de exame, cantou. Duplo zero.
Houve uma exclamação desabrida: o
numero estava livre. O rateau recolheu
todas as fixas e já outras cahiam atabalhoadamente,
algumas rolavam. Cruzavam-se
braços afflictos. Os de uma ponta
pediam obsequiosamente que lhes puzessem
duas fixas no 3 ou no 8 e entregavam
espichando-se; outros consultavam o mostrador
compenetrados, sisudos. O Guedes
escrevia numa tira de papel.
--100 fixas! exclamou o doutor e eu,
sacando do bolso o dinheiro que me dera
meu tio, dei a troco de outras tantas fixas
uma nota de duzentos mil réis.
--Quer o troco em cartões ou em dinheiro?
--Em dinheiro, soprou-me o doutor. E
eu, immediatamente:
--Em dinheiro...
Deram-me fixas brancas e ao doutor
sangue de boi e começámos a cobrir os numeros:
elle seguindo o sector sempre feliz,
eu indifferentemente, á discrição do acaso,
atirando como quem semeia num campo,
confiado na terra fertil. Já a bola gyrava
quando o Guedes segredou-me em
confidencia:
--Olhe o 9, doutor; está vasio.
--Sim, o 9, e atirei para o numero tres
fixas. A minha largueza fez pasmar o
Guedes. Olhou-me com enternecimento e
gratidão como se me quizesse dizer na sua
linguagem humilde: «que me agradecia a
confiança depositada no seu palpite tão
desconceituado, já ridiculo entre os pontos.»
E sahiu da melancolia com palavras
confortativas:
--O doutor fez um jogo admiravel, vai
ver. Mas já o banqueiro annunciava, com
a sua gravidade de magistrado, oppondo
embargos ao rapazola, que despejava fixas
ás tontas: em pleno, nos esguichos, a cavallo,
no grande, na terceira duzia, como
se quizesse, de uma só vez, chamar ao seu
bolso os cinco massos de notas que ali estavam
accendendo a cobiça:
--Jogo feito.
--Prompto! Prompto... disse o retardatario,
sem arredar os olhos do tapete.
--18, cantou o calvo e o homem do
rateau começou a contagem: 35 amarellas.
--Minhas, disse o rapazola coçando a
nuca frenetico.
--35 azues...
O gordo, com a voz cheia, accusou: Do
dégas.
--105 brancas... eram minhas. O resto
foi raspado. O Guedes, corrido, não disse
palavra, limitou-se a molhar o lapis nos
beiços para annotar e o rapazola, enxugando
o suor da fronte, já sulcada de rugas,
lastimava: «que sahira justamente o
numero em que menos jogara.»
O doutor, vendo-me carregado de fixas,
felicitou-me, ajuntando em tom discreto--que
não me precipitasse.
--Descance...
--Deve ser agora o 36, disse o Guedes
timido.
--Como o 36? porque?
--É a somma de 18.
--Vá lá o 36... Jogo por sua conta,
e atirei sorrindo.
O gordo, engasgado, a tossir, seguiu o
meu palpite dizendo--que os estreantes
são sempre felizes e atirou duas fixas sobre
o 36. Tive impetos de declarar que jámais
pensara em tal numero, que o palpite
era do Guedes, mas o pobresinho
voltara para o meu rosto os oculos verdes
e, atravéz das lentes, pareceu-me que os
seus olhinhos tristes imploravam. Calei-me.
Deu o 15.
--Apre! bradou o de Pascal. Que
sorte!
--15...! é do sector! disse o Monteiro
sentenciosamente recolhendo 140 fixas--e
com ironia, puxando o rapazola pela manga
do veston: Applique-lhe os principios,
homem. Applique-lhe os principios.
--Qual! E agitando uma nota: Mais
vinte fixas! Entrara um novo ponto--um
velho moreno, magro, de cavaignac. Deu
uma volta distribuindo apertos de mão e
acercou-se do Guedes.
--Que numeros têm dado? O Guedes
entregou-lhe o papel.
--Jogo feito! annunciou o banqueiro.
Prompto! Prompto! disseram vozes e,
grave, como sempre, o calvo annunciou: 33.
Foi a minha sorte--280 fixas. O Monteiro
felicitou-me:
--Lindo golpe!
O rapazola sorria batendo as mãos e,
sem que eu lhe perguntasse, disse-me esticando
o beiço:
--Estou limpo!...
--Nove horas, meu amigo; avisou-me
o doutor.
--Sim, sim; vamos já. É a minha ultima
parada. E espalhei a esmo um punhado
de fixas afastando-me, em seguida,
para dar lugar ao novo ponto, que acompanhava
todas as peripecias do jogo com vivissimo
interesse. A roleta girou mais
uma vez e o calvo, com a gravidade habitual,
cantou: 18.
--Em branco, disse o doutor puxando-me
pelo braço. Os outros, arrebatados,
iam arrumando novas camadas, atulhando
as casas, com uma gana que seria para
receiar se ali não estivesse, na presidencia
fatal, o calvo com a sua serena impassibilidade.
O rapazola, sacando do collete uma
nota amarfanhada, berrou:
--Jogam duas fixas no 17, e acamou a
cedula sobre o numero com um murro.
Quando me apresentei ao calvo para
receber o valor das fixas, elle sorriu com
ar augusto e dignou-se dirigir-me a palavra:
--Então já?
--Tenho compromissos...
--Appareça, disse entregando-me o
bolo. E o Guedes, solicito, sahindo ao meu
encontro: Appareça, doutor. Venha jantar
comnosco.
--Pois sim, pois sim. Mas o doutor
do terraço acenou-me, bradando sonoramente:
«Boa noite, meus senhores!» Descemos.
Quando passámos a volta do patamar,
entrando na passagem que communicava
com a sala, alguem, que se balançava numa
cadeira, na penumbra humida de um socavão,
indagou com um timbre feminino:
se não queriamos tomar alguma coisa--cerveja,
cognac?
--Obrigado, agradeceu o doutor, e
como eu lhe perguntasse quem era:
--Hebe, disse elle sorrindo maliciosamente.
Atravessámos a sala deserta, tomámos
os chapéus e sahimos. A noite estava radiosamente
estrellada. A chuva cessara de
todo, deixando no ar uma frescura humida.
No mar tranquillo estendia-se tremulamente
o rastro diaphano do luar e sobre
o muro do caes um grupo de homens cantava
em vozeirada um rondó de opereta.
--Apre! respira-se finalmente.
--É verdade! Que forno esta casa!
--Para mim principalmente: queima-me
todo o dinheiro. E num tom convincente:
Mas a gente é de escolha.
--Pois não: roda magnifica. O proprio
Guedes é excellente rapaz.
--Excellente. Um admiravel companheiro,
meio desconfiado... Vai ás nuvens
quando alguem o chama de cábula. Sinto
que não tivesse visto o Balduino, o Pai 13,
como é conhecido nas batotas. Jogador
incorrigivel. Affirma que desde os 14
annos faz ronda ao tapis vert. Com 15
annos perdeu a legitima materna e anda
agora a transviar o fruto amargo da labuta
caseira--magros mil réis que a mulher
e as filhas retiram da loja para onde cosem
calças e colletes de brim. Mas é um
excellente pai de familia, o Balduino! adora
a sua gente, é tão amigo dos filhos como
da roleta, é tão fiel á mulher como ao seu
numero. Se consegue fazer uma feriasinha
razoavel, que lhe dê para um mez, entra
pela casa carregado de embrulhos, enche
á farta a dispensa, paga as contas, resgata
as joias, veste o rancho e accende uma
vela de libra aos pés da Conceição para
que lhe dê um pleno volumoso. Ao jantar
levanta um brinde commovido ao magnifico
numero, e toda a familia acompanha-o
com religiosidade, tocam-se as taças e Balduino
desenrola mais uma vez o seu grande
plano de felicidade que elle mesmo,
uma noite, contou-me ceiando commigo
num gabinete do Bragança: «Entra com
20$, atira-os em pleno sobre o numero e
ganha; deixa todo o lucro... e repete.
Affronta a sorte, num accesso de coragem
louca, e ganha ainda... é uma fortuna--não
ousa arriscar mais, retira o bolo e, no
dia seguinte, entra em ajuste de compra
com um fazendeiro--fica-lhe com as terras
e estabelece uma criação de gallinhas
em grande escala. Novos calculos: tantas
gallinhas, tantas posturas e faz-se exportador
de frangos e de ovos, conseguindo
accumular em 10 annos quantia superior
a 5 mil contos. Apparecem então as ambições
politicas--é outro jogo, porque
Balduino, apezar de retirado, não
póde esquecer, por gratidão, o seu inicio.
Apresenta-se candidato, ganha a eleição,
entra na camara com o diploma, faz o diabo,
até que um dia, inopinadamente, cahe-lhe
em casa uma pasta. Mas Balduino,
sempre fiel, não entra em exercicio senão
num dia 13--vai protelando, ha tantos
meios de protelar: enfermidade, arranjos,
coisas, até que chegue o dia... Ah! então
o Brasil viverá em regalada paz com a sua
administração cabulosa». Eis o seu romance.
O certo é que Balduino tem feito Africas:
teve camarote no Lyrico e apresentou-se
com dignidade. Dizem que, em certos
dias, passa como Lucullo.
--Dava alguma coisa para ver esse
typo.
--Ora espere... hoje é...?
--8.
--Então podemos partir descançados--não
vem cá.
--Como sabe?
--É que elle só joga nos dias impares:
tem a superstição ás avessas.
Caminhamos lentamente, em silencio;
por fim observei ao meu amigo:
--O senhor joga friamente.
--É um engano, meu amigo; apparento.
--Mas não se distrae. Parece que não
acha prazer...
--No jogo? muito! Penso com os modernos
que dizem que o jogo é um prazer
esthetico. O gozo do jogador, pela tenacidade
da emoção prolongada e forte, pela
ausencia do sentimento, porque é um phenomeno
todo material de sensação, excede
o do artista que contempla embevecido,
por longo tempo, uma obra de genio. Os
sentidos, no jogador enfebrecido, atrophiam-se
e tornam-se uma especie de
abstracção, algumas vezes excessiva, a
ponto de o deixar em immobilidade de
hypnotico, emquanto corre o azar da bola
ou das cartas. O jogo opera como a morphina--excitando
e abatendo: é um estupefaciente.
A emoção é cruel sem deixar,
por isso, de ser agradavel. Se não educa
o gosto, educa as paixões: a luta com o
acaso torna o homem indifferente, quasi
stoico. Habituado ás contrariedades não
soffre com os revezes, acha-os naturaes,
aceita-os sem protesto, passivamente, como
aceita as sortes da banca. Alguem descobriu
que o jogo era uma manifestação da
hysteria, foi talvez por isso que a sabia
Europa instituiu para os hystericos dessa
mania, o grande hospital de Monte-Carlo.
Mas olhe o bond... vamos!
E deitamos a correr em direcção ao
bond.
XI
--Vamos refocilar na devassidão,
disse o doutor quando nos
apeamos. Infelizmente a besta
que trazemos em nós exige esse mergulho
de quando em quando. Os hygienistas
não se aperceberam desta grande verdade:
o homem espoja-se. O corpo exige, com a
mesma tenacidade, o exercicio e a insania,
a tensão dos musculos e o enervamento,
como o espirito requer o real e o ideal. O
vicio mantem em silencio a carne: é um
repasto material. É preciso satisfazer o
animal. Estudei profundamente o organismo
do homem e cheguei á convicção de
que a vida serena é um absurdo impraticavel.
A vida deve sujeitar-se ás leis do
movimento--a variedade é um facto.
Confesso ao meu amigo que sou avesso ao
deboche, detesto a vida de noceur; mas
sinto, de longe em longe, necessidade de
atravessar uma noite desfolhando rosas em
champagne, no fundo de um gabinete discreto,
com uma grisette que me recite a
léria do amor, trincando lascas de fiambre
e queimando cigarrilhas. Acho prazer,
prazer perverso, porque sou um detestavel
instincto. Estacou e disse-me de novo:
um detestavel instincto.
Se pudesse viver como me inspira o
temperamento, garanto-lhe, meu amigo,
que as chronicas terriveis de Gilles de Rais
desappareceriam como banaes e pueris.
Depravar a humanidade!... deve ser um
prazer magnifico. Ver todo um mundo no
vicio, numa orgia sardanapalesca, ao sol,
cantando. O vinho a correr pelo leito dos
rios. Em vez de barcas, grandes cantaros
fluctuando; e gente a beber, a cambalear,
a cahir, besuntada e tropega, crianças e
velhos, virgens, monjas, tudo, a babel terrivel
do satyrismo, num diluvio roxo escoado
de todas as torneiras e de todas as
vinhas... que delicia! E calmo: O vicio
é uma necessidade, affirmo-lhe.
Jogo e depravo-me como empanturro o
estomago, como ingiro a medicina. Para
mim a pilula e a esphera da roleta pertencem
á mesma therapeutica, operam diversamente,
mas operam. Para os males
do figado calomelanos, para o tedio uma
parada commovedora. As mulheres interessam-me
pela estranheza do typo: adoro
a mulher de amor, não pelo seu beijo, mas
pelo seu estudo, porque é curioso ver como
esses animaesinhos sabem attrahir. Algumas,
pobres camponias, ainda com as mãos
grossas do cajado com que andaram a pastorear
nos campos, conhecem melhor a arte
de agradar, as delicadas minudencias do
amor que interessam, que prendem, que
sensualisam, do que as eruditas educadas
em finos boudoirs, lendo brochuras ardentes.
Acho adoravel a cocotte--é um
sexo neutro--alguma coisa de homem, a
tactica commercial, alguma coisa de mulher,
a hypocrisia. De resto, é uma valvula
de segurança social. Um contemporaneo
da academia, rapaz de finissimo espirito
e talento não vulgar, dizia-me sempre:
que sentia, de tempos a tempos, necessidade
de embriagar-se. Encerrava-se e
bebia. Era uma medicina.
Aventurei citando Simão Carreira,
que, nos momentos em que a musa lhe foge,
vai ao pucarinho e derreia bebedo
acordando, no dia seguinte, dyspeptico
e amarrotado, mas com a imaginação fulgurante
e provida para um novo canto
do seu poema ou para meia duzia de
sonetos, que immediatamente registra
para o Correio da Serra, orgão superiormente
litterario para as alturas em que
vê a luz.
--Mas é assim, meu amigo. A castidade
atrophia, deprime, suffoca o espirito.
O amor é um derivativo. Não o amor
sentimento: o amor sensação. Afinal, que
vamos nós buscar no fundo de um theatro,
prazer? distracção? arte? não absolutamente:
vamos cevar o animal. No meu
programma de educação, inaplicavel, porque
não tenciono perpetuar a minha crise
de spleen, dando ao mundo um representante
de meu tedio e das minhas desillusões,
entraria, como curso fundamental--o
vicio. O vicio, pois não. O epigono constitue
o seu caracter com mais vigor nos
camarins e nas tascas do que nas escolas.
Que diabo ensina o mestre? ensina a evitar
o vicio, o que vale dizer--mostra outro
vicio. É uma verdade o que Comte
deixou escripto: «Não se destroe senão o
que se substitue.» Afinal a vida é uma
constante marcha e a natureza tem as suas
leis. Para seguir é preciso tomar rumo.
O mestre diz que não se vá pela direita;
então o caminho da moral é o da esquerda
e ahi vai o pimpolho arrebatado pelo temperamento
e induzido pela logica do pedagogo
para peior deveza. E por fim a educação
inutilisa um homem que podia ser
perfeitamente aproveitado. Meu amigo,
os primeiros ciumes fazem os futuros bravos,
os primeiros amores fazem os futuros
poetas. A moral é uma palavra van; toda
a gente a pronuncia e poucos a praticam.
Qual moral, qual nada!... o corpo exige.
Emmudeceu de repente.
Haviamos chegado a um largo, e na
parte fronteira á rua por onde seguiramos,
uma grande cauda de luz electrica alastrava
o passeio argentando as arvores e,
ás vezes, ganhando o céu como uma esteira
de luar.
--Variedades, disse-me o doutor. Mas
se fossemos ao Sant’Anna?
--Como quizer...
E seguimos. O doutor, depois de um
silencio, avisou-me: Mas não se illuda--olhe
que a caixa de um theatro é um pouco
peior que a caixa de Pandora...
--E a esperança, doutor?
--Fica á entrada, como no distico do
Dante. Vai ver de perto a illusão, que é
uma triste realidade. E voltando a rua:
Eis-nos chegados, disse.
Á porta do theatro formigava uma
multidão impaciente. Logo que nos aproximámos,
dois sujeitos avançaram pressurosos,
offerecendo bilhetes:--que eram os
melhores, que na casa só havia da ultima
fila e perseguiam-nos tomando-nos o caminho,
embaraçando-nos o passo, sofregos,
afflictos. Safámo-nos briosamente e ganhámos
a bilheteria. Tomei a frente ao
doutor e, enfiando a mão pelo guichet,
bradei:
--Duas cadeiras!
--Uma! Uma só, disse elle.
--E o senhor?
--Não preciso; tenho entrada.
--Uma, emendei; uma cadeira. E, recebendo
o papelucho das mãos do bilheteiro,
examinei-o: Lettra L... que tal?
--No inferno...! Mas como não tencionamos
assistir, qualquer coisa serve.
Vamos.
O doutor encaminhou-se vaidosamente
e confesso que, pela primeira vez em minha
vida, senti picar-me a inveja vendo-o
passar entre os porteiros grave, sem uma
palavra, como se entrasse por sua casa.
A mim tomaram o papelucho e rasgaram
uma nesga entregando-me o resto; ao doutor
disseram com respeito: Boa noite!
Achei-me num estreito pateo de terra
humida. Para um lado, um correr de portas
verdes com um oculo ao alto; para outro
lado, mais adiante, um balcão de bebidas--na
mesma direcção um tablado coberto,
cheio de mesas de zinco entre as
quaes passavam atarefados caixeiros carregados
de copos. Mulheres subiam e desciam
opulentamente vestidas, saracoteando,
com grandes leques de plumas, deitando
olhares, franzindo sorrisos; outras tagarelavam
em grandes rodas de rapazes,
com gargalhadas estridentes; e uma velhusca,
de preto, com uma barbicha no
queixo, como as feiticeiras de Macbeth,
estremecia, mostrando as gengivas desertas,
rindo estridulamente aos galanteios
de um meninote de chapéu de palha e terno
de flanella branca.
--Vê este seculo, meu amigo?
--É a propria velhice...
--É Venus ancestral. Essa mulher é o
centro do mundo equivoco--é ella quem
dirige as neophytas e dizem que tem um
curso admiravel de sciencia. Dá lições diarias
ás que pretendem fazer carreira pelo
caminho que Laïs trilhou arrastando poetas
e o tonel de Diogenes. É uma mulher
digna de consideração: sem ella não haveria
novos encantos, nem os languores imprevistos.
A sabedoria está com os velhos,
meu amigo. E, baixinho, soprou-me: Olhe
a Marion, evitemol-a. Era, em verdade, a
loura, a formosa loura ciumenta e aspera,
que acariciara os meus sapatos com o pésinho
minusculo.
--Se a convidassemos para a ceia, doutor?
--Não... não... Excede-se e dá para
chorar a sua infelicidade, porque essa divina
mulher tem saudades da patria e da
honestidade e, quando bebe vinhos de
França, lamenta não ter um filho e fica
de tal modo nostalgica que, ao cabo da lamentação
saudosa, é sempre necessario que
venham tres homens para leval-a ao carro.
Não... não...! Evitemol-a.
Marion bebia e tão entretida estava
com a sua garrafa de Apollinaris que não
deu por nós.
--É sobria, entretanto: bebe agua, á
grega.
--Sobria? quem...? Marion...?! porque
está bebendo Apollinaris? Conheço
muito essas medidas preventivas: é que ella
conta ceiar, meu amigo, e está recompondo
o estomago para um diluvio de Bourgogne.
Mas vamos. Tomámos por uma
das alas do theatro e, justamente quando
voltei os olhos para a scena, entrava um
grande diabo, brandindo um facho, a bradar
coisas terriveis, ao clarão purpureo de
fogos de bengala. A orchestra ia num crescendo
infernal--quasi se não ouvia a declamação
do maldito quando surgiu uma
legião de diabos vermelhos, truculentos,
dançando em torno do rei a berrar, a bramar,
á proporção que os musicos, num delirio
satanico, sopravam com furia, batiam
com gana, dando ao espectador pasmado
a idéa aproximada do que deve ser a musica
nesse reino negregado de chammas,
onde as almas penam torrando-se em labaredas
inextinguiveis, sob abobadas de
granito em brasa. Felizmente, porém, houve
uma pancada vibrante e os demonios
sumiram.
Cahiu um novo panno: Uma aldeia risonha
sob um ceu de azul, com uma igrejinha
branca a um alto e na eira da herdade,
no primeiro plano, entre médas de
palha e instrumentos agrarios, camponios
a espadellarem linho, cantando um
villancico meigo.
--Vê aquella velhota que ali vem por
entre arvores...? É a Jesuina.
--Por Deus! mas é uma antigualha!
--Engana-se. É uma bella mulher.
Vai convencer-se...
Os homens, que se apertavam á minha
frente, pouco me deixavam ver. Puz-me
nas pontas dos pés, já interessado pela
velhota quando, subitamente, vi surgir o
demonio, sem archote, os braços cruzados,
numa attitude hostil, e berrar:
--Fada... não sei que... e uma infinidade
de palavras que deviam ser de insulto,
porque a velha poz-se tambem de
entono e avançou hysterica, vociferando:
--Ainda não!... Cahiram-lhe os andrajos,
o cajado transformou-se em sceptro
enramado de folhas de ouro e eu vi
uma esplendida mulher, de fórmas admiraveis,
resplandecente na sua toilette feerica.
--Linda, com effeito, doutor! disse
maravilhado.
--Ah! é esplendida! E languido, com
os olhos em alvo, trincando o beiço: E
que mulher! A scena atroou aos berros
dos camponios, que deitaram a correr espavoridos.
Ficaram sós, desafiando-se--o
diabo negro e a fada. Houve uma troca
de palavras e novo tchaan! Pannos cruzaram-se
acima e abaixo. Nova scena. Jardim
florido, entre grutas. Mulheres: nymphas,
disse-me o doutor, tangendo lyras e
cantando. Cahiam do céu, como na lenda
de Danae, palhetas de ouro. O diabo, estortegando,
vencido, urrava com os joelhos
em terra, e a fada, com um gesto cheio de
magestade, mantinha-o subjugado e immovel.
Romperam palmas e o panno veiu
descendo lentamente.
--Vamos falar á Jesuina.
--Pois não, doutor. Pois não... E
partimos atravéz da multidão que recuava.
O doutor bateu á porta da caixa, e appareceu
ao postigo uma cara ossea, macilenta,
hispida de pellos, indagando soturnamente:
Quem é?
--Abre, Amaro.
O cérbero sumiu-se batendo o postigo
e logo abriu meia porta, por onde nos esgueirámos
rapidamente. Ambiente de estufa--mal
se podia respirar. Não haviamos ainda
caminhado dois passos quando
vi surgir a uma porta o truculento diabo,
abanando-se, com um charuto nos beiços,
muito ancho. O doutor acenou com os dedos
um cumprimento intimo. Entre os
bastidores torvelinhava a gente do movimento
arrastando peças accessorias, içando
nuvens, pregando sarrafos. Dois homens,
agachados junto de uma rocha sarapintada,
ajustavam cordeis, e um moreno,
de sobrecasaca, a cara rapada, berrava
para as bambolinas:
--Ó Candido! ó Candido! desce mais
essa vista! mais! mais, homem! Que diabo...
mais! e bateu uma patada formidavel.
--Mais á frente...! ordenava um outro,
alto, de cavaignac, aos homens que
collocavam a rocha... ahi...
Um soldado, com o capacete atirado
para o sinciput, passeava de um para outro
lado, cantarolando. Um pequenote passou
por mim esbaforido, arrastando uma
carapaça de saurio com grandes escamas.
Era difficil atravessar-se, porque de
toda a parte surgiam genios, demonios,
soldados, mulheres, atropelando-se, azafamados,
lançando appellos, a correr, empurrando-se.
O doutor avançou e, mostrando-me uma
escada larga por onde desciam coristas
trauteando, disse:
--Vamos subir... Isto aqui em baixo
é impossivel. E galgámos os degráus, ganhando
um passadiço por onde andavam
actores, refrescando-se com ventarolas.
Um, em trajo de principe, vociferava no
camarim, sacudindo uma gaforinha loura:
--Que aquilo era uma vergonha, um
nojo! E sahiu bradando: Ó Ferreira! ó
Ferreira! Vocês não viram por ahi o Ferreira!
Ah! grandissima besta!...
--Mas que é? indagou um escudeiro
acaçapado e ventrudo, arrastando a durindana
ferrugenta.
--Olha p’ra isto... e tomou a cabelleira
nas pontas dos dedos. Isto é decente?
Pois eu hei de entrar em scena com esta
peruca?! Não entro, nem que me rachem!
E berrou de novo: ó Ferreira! ó Ferreira!
Outro assomou á porta de um camarim,
em ceroulas, todo sarapintado:
--Ó Ferreira! Onde é que se mette
esse pedaço d’asno, não me dirão? Ó Ferreira!
Passámos atravéz do alarido e, como
olhasse por uma porta entreaberta, surprendi
um lindo braço nú, de esbelto contorno
e avisei o doutor.
--Ahi? é uma certa Clotilde... detesta-me;
de resto não vale um olhar: é mulher
de banhas fofas. Vamos á nossa Jesuina.
É aqui. Parou diante de uma porta e
bateu:
--Quem é.
--Eu, Jesuina.
--Eu, quem? Estou occupada.
--O Gomes...
--Ah! Espera... E a voz, mais proxima,
indagou: Estás só?
--Não, mas é como se estivesse: trago
commigo o Amor que tem os olhos vendados.
--Oh! filhinho... não estou em estado
de receber. Mas a chave rangeu na fechadura,
a porta descerrou-se e eu vi o rosto
adoravel da fada.
--Como vais? indagou lançando para
o meu lado um olhar obliquo, e baixinho:
Espera um momento, abro já, sim?
Recolheu-se e voltámos a passear. Ainda
gritavam pelo Ferreira. Debruçámo-nos
á balaustrada: em baixo andavam soldados
antigos, com grandes escudos rutilantes,
jacarés arrastando caudas enormes,
monos, demonios e camponezes, uma
promiscuidade mirabolante, gente e animaes,
em intimidade só comparavel á que
existiu entre esse troço de salvados que
andou pelas aguas do diluvio dentro da
arca, para perpetuar as especies. Fios de
luzes tremeluziam ao alto, por trás dos
pannos. Subiam vistas, arrastavam-se bastidores--havia
um grande rumor de faina.
De repente uma voz fanha entoou
/*
Nu... unca percas a esp’rança
*/
e outra violenta e desesperada esbravejou:
--Quem diabo tirou daqui as minhas
botas? Isto é uma pocilga! Ah! seu Alvaro!...
Quem diabo tirou daqui as minhas
botas?
/*
Foi, foi, foi...
*/
outro cantarolou em tom de troça. Travou-se
um dialogo azedo atravéz do tabique
divisorio de dois camarins e riamos
dos palavrões, quando uma velhota nos
veiu dizer que--«madama estava prompta».
Fomos immediatamente e, á porta, o
doutor, lisonjeiro, indagou com ternura:
--Dás licença, Titania?
Entrámos. O doutor apresentou-me
como «favorecido das musas.» Jesuina
sorriu e mostrou-me um divan forrado de
damasco vermelho. A velhota, que nos
acompanhara, tomou de uma prateleira
um par de sapatinhos brancos debruados
á sarja, agachou-se e, com os pésinhos de
Jesuina ao collo, calçou-os sem esforço,
suavemente. E ella, delicada e meiga, voltando
para o meu rosto os olhos admiraveis:
--Desculpe-me, doutor. Vou concluindo
a minha «toilette», porque, infelizmente,
esse maldito contra-regra é de uma impaciencia
feroz. A velhota levantou-se e
foi ao canto.
--Agora é que são ellas! disse Jesuina
a rir. Vamos ao peior. E, franzindo a
fronte serena: Que calor, hein?
--Muito, disse eu, bufando.
A velha voltou com uma cotta de seda
imbrincada de ouro e deu-lh’a a vestir,
primeiro um braço, outro depois, e as duas,
a velhota de joelhos, Jesuina, muito direita,
firme, obrigada pela pressão das barbatanas,
começaram a abotoar, uma da
fimbria para cima, outra da gola até á cinta,
apressadas, magoando os dedos.
Depois uma tira de filó em diagonal ao
peito, cahindo em duas pontas soltas sobre
um dos flancos; duas pulseiras em cada
braço e, á cabeça, comprimindo os cabellos,
um diadema altissimo com um brilhante
á frente.
--Prompta! exclamou a velhota levantando-se.
--Graças a Deus! suspirou Jesuina
sorrindo. E a vara?
--Está aqui...
--Estás divina! disse o doutor abraçando-a
e beijando-lhe a nuca.
--Oh! oh! É terrivel este seu amigo,
disse-me. E o doutor, tomando a frente,
impoz:
--Hoje vens ceiar comnosco.
--Hoje...?!
--Hoje, e não admitto desculpas.
--Se assim é, disse ella com um momo...
que hei de fazer...? Verteu algumas
gottas de perfume na palma da mão e esfregou-as
dando-me depois a aspirar:
--Delicioso! sussurrei, fungando.
--Agradavel, não é? Mas a sineta vibrou
e um mulatinho appareceu á porta:
--D. Jesuina...
--Vou já.
--A que horas acaba esta rigolade?
perguntou o doutor.
--Meia-noite.
--Pois até lá. E vai ter com Satanaz,
que te espera.
Despedi-me tambem e descemos.
A orchestra executava os primeiros
compassos de uma marcha infernal, quando,
de novo, ganhámos a frescura do jardim.
--Então, meu amigo?
--Divina, disse eu. O diabo é que isto
demora. Que havemos de fazer...?
--Vamos á cerveja; não ha outro meio
de fugir á insipidez.
E abancámos.
--E dizer que toda essa gente goza,
ponderou o doutor, num tom melancolico
de lastima. Isto que me enfada, que me
provoca bocejos, faz as delicias de uma
multidão. Olhe ali aquelle homem debruçado
á balaustrada... Quanto eu daria
para poder rir como elle! Decididamente
esse casal do paraiso levou-nos o melhor
da vida--a innocencia, deixando-nos em
troca o tedio. Felizes os simples!
Não imagina como invejo um desses
homens que são specimens raros do animal
primario, que se destacam, entre os
civilisados, como um grande cedro num
campo raso. Ás vezes, quando passo por
uma dessas casas de pasto, onde o grosso
povo de trabalho se ajunta para comer,
tenho impetos de entrar, sentar-me no
mesmo banco, acotovellando estivadores e
canteiros, fascinado pela voracidade pantagruelica
desses brutos que devoram pratos
enormes, com mais apetite do que um
de nós, em dias de fome, trincaria uma
fatia de caça. Nós somos os degenerados.
Que mais pode ambicionar um homem que
já experimentou todas as sensações e que
leu os materialistas? Que ideaes pode ter
um ser esgotado? Nem riso nem pranto.
Sinto-me vasio e inutil. Já não existem
imprevistos para mim. Tudo dimana de
causas naturaes, diz a philosophia, e acham
os evolucionistas que feliz é o homem que
conhece todos os phenomenos da natureza,
que sabe dizer, sendo preciso, por que razão
a pedra deriva a gotta d’agua, para
onde caminham as correntes dos rios, quantos
millenios tem Syrius, porque é pallida
a lua, quaes são as causas que presidem
aos fluxos dos mares, a origem do homem
e tudo mais que a sciencia investigou para
esterilisar os productos mais delicados do
espirito que, a meu ver, são--a imaginação
e a esperança. Felizes são esses pobres
homens que crêem nas boas fadas dos
caminhos e nos genios dos campos. Felizes
são esses que vêem na Via Lactea o caminho
sagrado dos reis magos, attribuindo
a pulverisação das nebulosas ás patas dos
dromedarios que vieram do Oriente parar
á entrada da lapa em que Jesus dormia.
Felizes são os que podem ainda imaginar
mysterios... Oh! os crentes, os religiosos!
esses é que são os bemaventurados, não no
céu, aqui mesmo, na terra, porque esperam,
porque não duvidam. Aquelle homem
que ali está desfeito em gargalhadas
nunca leu um aphorismo, desconhece a
syntaxe e as causas finaes, nunca atravessou
uma noite acotovellado á banca do jogo,
nem de certo poliu os seus beijos procreadores--é
um simples. Trabalha e crê,
conhece o Ave e respeita a Lei, ama e
quando chega á casa, estafado e moído, o
seu primeiro cuidado é para o filho mais
novo--toma-o nos joelhos e brinca com
elle a rir. E dorme em paz, porque não
tem problemas a resolver nem gazes de
dyspepsia. É um animal amoroso e puro...
E sinceramente, não é preferivel levar
a vida assim materialmente, em ignorancia
beata, abençoando as estrellas cadentes
e commungando, de vez em vez, a
andar pelo mundo empanturrado de pessimismo,
repetindo com o «Ecclesiaste»
que tudo é vaidade?
O homem não nasceu para maldizer sómente,
creio eu. «A resignação é o heroismo
da desgraça.» Um moralista exprimiu-se
mais ou menos nestes termos,
mas eu devo confessar que não tenho absolutamente
o sangue heroico--sou um pusillanime.
Dêem-me novidades, imprevistos,
qualquer coisa que me commova: um
grande amor, um grande odio. Infelizmente,
porém, o amor adquiro-o como
adquiro as luvas e os plastrons, por um
preço, por outro, mas sempre a dinheiro...
É sordido! É vil! Não foi para mealheiro
que Deus, ou não sei quem, fez o coração.
O amor é uma permuta de affectos e não
um mercado. Mas que quer? comprar um
beijo, pagar um sorriso, subornar uma
meiguice... eis em que consiste a civilisação;
isso é requinte, é espirito.
Duas mulheres passaram por nós discutindo
em dialecto aspero, esgrimindo
com os leques, frementes, terriveis. As
vozes subiam, já da platéa reclamavam silencio
com prolongados «psios».
Os homens, que cercavam a balaustrada,
interessados no escandalo, vieram
aproximando-se. Descia gente em tropel
e as duas, uma em frente da outra, ameaçadoras,
mirando-se roxas de furia, vociferavam
com grandes gestos. Repentinamente
brandiram os leques e engalfinharam-se--os
chapéus rolaram para o chão,
as fitas voaram e, apezar da immediata
intervenção de alguns rapazes, as duas lutavam,
já com os leques partidos, numa
algazarra bravia. Na platéa havia gente
de pé. Os actores, em scena, emmudeceram
e o grande diabo, curioso, coçando o
queixo agúdo, alongava os olhos procurando
ver á distancia as heroinas. Os coristas,
amontoados sem ordem, cochichavam.
O regente voltara-se e varios musicos,
de pé, olhavam curiosamente; um deixou-se
estar sentado, aproveitando a balburdia
para afinar o seu violino. Trilaram
apitos, mas já haviam apartado as
belligerantes. Appareceram praças e o
povo foi descendo, em onda compacta, em
direcção á porta. Ouvia-se ainda, de vez
em vez, um guincho colerico. Por fim
irrompeu uma assuada tremenda e gargalhadas
estrepitosas abafaram as phrases
violentas de uma das mulheres.
Já no palco haviam recomposto a scena,
o diabo carregara de novo o sobr’olho
e, quando avançou para o ponto, sustentando
uma nota grave, de novo o povo reclamou
silencio e, pouco a pouco, foi recahindo
a tranquillidade.
--Foram presas, doutor?
--Não, fazem-n’as sahir simplesmente.
Estalaram palmas estrepitosas, olhámos: o
panno vinha descendo lentamente sobre
uma scena flammejante.
--Falta-nos ainda um acto, suspirou o
doutor. E não ha infelizmente duas outras
mulheres ciumentas.
Ao fim do espectaculo, depois de uma
fulgurante apotheose no reino das perolas,
de grandes pylonos côr de opala, regado
d’aguas lactescentes, floridas de nelumbos
por onde andavam cysnes alvadios,
reino administrado pela magia dos olhos
de Jesuina e pelos cordeis do machinista,
veiu abaixo o panno ao som abemolado
do côro triumphal das nymphas, que
exaltavam o poder da soberana. O diabo,
corrido e humilhado, estarrecido ao fundo,
entre columnas gyratorias rugia, rolando
os grandes olhos chammejantes e orlados
de malacachetas. O povo, em delirio, prorompeu
em gritos, victoriando a boa fada
pelo seu nome humano, mais doce, talvez,
que o da magica:
--Á scena, Jesuina! Bravos a Jesuina!
E uma voz isolada accrescentou num
berro agudo:
--Jesuina na ponta!
E tudo desappareceu.
A retirada foi rumorosa e lenta. O
povo escoava aos empurrões como uma
grossa e pesada torrente contida muito
tempo pela comporta de uma represa. As
luzes minguavam e, pouco a pouco, veiu
cahindo a sombra; o silencio substituiu o
rumor. O panno levantou-se de novo sobre
um fundo de andaimes e de sarrafos.
Fóra andava um meninote assobiando
baixinho, com a bengala ao hombro, passeiando
ao longo da varanda.
--Vamos esperal-a á porta da caixa.
E, em segredo, indicando-me o rapazito
solitario, disse-me o doutor:
--Ali está um que não nos perdoará a
aventura de hoje. É um terrivel amoroso.
Governa o partido da Jesuina. Só em flôres
gasta todas as noites para mais de cinco
mil réis. Já fez tirar uma polyanthéa
glorificando a actriz que, incontestavelmente,
tem um lindo collo, mas que desafina
soffrivelmente e no terreno da concordancia
é como um louco diante de um taboleiro
de xadrez: baralha tudo. Emfim,
como o fim utilitario da mulher é o amor,
Jesuina cumpre admiravelmente o seu destino
na vida, porque, sem encomios, é um
bello exemplar do sexo.
Começavam a sahir os actores; alguns
com embrulhos debaixo do braço. Uma
mulher, de mantilha, passou por nós ninando
um pequerrucho. Um sujeito magricela,
de longas pernas e farto bigode,
com agudas saliencias de ossos, deu-nos
boa noite em tom amigo.
--Quem é? indaguei.
--É o diabo; pois não conheceu...? é
o diabo. Chama-se Silveira.
Voltei-me para ver ainda uma vez o
vencido, elle lá ia, murcho e sorumbatico,
mascando uma ponta de charuto, triste,
desmanchado, já sem os arreganhos terriveis,
sem a attitude audaciosa e ostensiva
com que surgira entre os seus sequazes,
bradando pelas furias do Averno e arrancando
gritos ás crianças. Ia abatido e não
era, de certo, o poder da vara de Jesuina
que o derreava, não, deviam ser preoccupações
communs. Talvez tivesse um filho
doente, sogra de perfeita saude ou, quem
sabe se o pobre diabo não estava ameaçado
de ser lançado á rua pelo senhorio feroz...?
Fosse o que fosse, achei-o mais
sentido dentro do frak e nas calças de brim
do que na farpella purpurina de rei dos
demonios, anniquilado pela magia das
pupillas de uma mulher, tres vezes mais
forte com as suas nymphas do que elle com
a legião de bruxos negros e diabretes.
Em seguida um casal, muito aconchegado,
cochichando--a mulher, com uma
indignação mal contida, elle calmo, grave,
respondendo com pequenas phrases. Depois
uma onda tumultuosa, com alarde,
achincalhando coplas--os coristas.
--Está demorando, disse o doutor impaciente.
Mas no mesmo instante a porta
abriu-se e Jesuina appareceu no patamar,
seguida da velhota.
--Salve a formosa apsara! saudou o
doutor.
--Estão cançados de esperar? indagou
sorridente.
--Nem por isso.
Jesuina pareceu-me menos formosa no
seu vestido marron e com a cabeça coberta
por uma capota de veludo. Confesso--e
vai nisto uma ingenua franqueza--confesso
que a Jesuina que meus olhos aguardavam
anciosos e desinsoffridos era a outra,
a que eu vira no palco, entre nymphas,
na nudez artistica do maillot, afoufada
em rendas, com os cabellos soltos e á fronte
o diadema régio. Era assim que eu esperava
vel-a, de sorte que tive uma pequena
desillusão quando ella assomou á
porta, em toilette vulgar, como todas as
mulheres, ella, que para mim não era outra
senão a propria, a verdadeira fada das
perolas, que apparecera em scena, affrontando
o Demonio. O doutor sussurrou-lhe:
--Aceita o braço que te offerece o meu
amigo, tenho de dar um pulo á Maison
para desfazer um compromisso. É um instante.
Comprehendi a delicadeza do pretexto
e adiantei-me pressuroso e ella, voltando
para o meu rosto os olhos incomparaveis,
ainda assim menores do que os que
me haviam seduzido, indagou:
--Onde vamos?
--Onde quizer, disse-lhe.
--Ao Bragança, não é?
--Ao Bragança, sim, affirmou o doutor.
E venham vindo porque já os encontro
no Rocio. E até já. Partiu como uma
frecha.
--Thereza, podes ir, disse Jesuina á
velhota.
--Boa noite, meu senhor. Então até
logo.
--Adeus! E a velhota partiu compondo
o chale. Sahimos. Á porta havia um
homem de gorro, que nos offereceu um
carro.
--Sim, vamos, disse eu.
--Oh! não vale a pena. Tomar um
carro para ir ao Bragança! Não, vamos
andando. E já intima, maliciosa, apertando-me
o braço: É preguiçoso assim?...
--Não, gosto de andar, faço leguas a
pé, mas... E não me atrevi a dizer-lhe a
verdade: eu não sabia onde era o Bragança.
Felizmente, porém, o doutor surgiu a
uma porta.
--Oh! pois ainda vêm ahi...? E adiantando-se:
Os corações já se fizeram amigos?
E ella, repousando no meu braço,
com um languido olhar e um doce sorriso:
Creio que sim.
--Creio que sim, corroborei sorrindo.
Mas o doutor deteve-se para dizer em
tom sentencioso:
--Devo observar aos meus amigos que
o amor é um sentimento digno, que deve
ser cultivado como uma flor preciosa, mas
acima do amor ha alguma coisa que é preciso
não esquecer...
--Deus! disse ella com beatitude.
--Não, filha: o estomago. Temos um
gabinete no Bragança á nossa espera. Depois
do champagne gelado os beijos têm
mais calor. É a reacção. Cá por mim,
como pretendo passar a noite como Santo
Antão, comerei alguma coisa solida...
--Você só!?
--Sem duvida. Quando se vai á Cythera
é perigoso levar farnel.
--Pois sim... E, com um muchocho,
Jesuina achegou-se a mim. Senti-lhe as
carnes... Que carnes!
XII
Triste manhan.
Bocejei espreguiçando-me e
estirei-me na cama, mas com que
alquebramento! Sentia uma fadiga de
longas jornadas, como se tivesse viajado
sem repouso estiradas leguas ao sol, curtindo
fome e sêde. Doíam-me as pernas,
e que saburroso gosto, Deus meu! e que
dormencia de idéas! Tentei, por vezes,
saltar da cama, mas a energia abandonara-me.
O corpo, apezar do esforço, abatia
amollecidamente. Deixei-me estar deitado
com os olhos no docel e, nessa attitude
inerte, recapitulei as scenas da noite
da vespera.
A ceia! Regalado repasto! Lembro-me
que começou por uma salada de lagosta,
que o doutor acolheu com uma prelecção
sobre os molluscos e Jesuina com palmas
e gritinhos. O que veiu em seguida
não sei bem e não me seria facil recordar
porque, emquanto o criado substituia pratos
e talheres, emquanto o doutor recitava
dythirambos exaltando a excellencia dos
vinhos de França e do Rheno, eu extasiava-me
nos olhos de Jesuina que, de vez em
vez, abrindo sobre as nossas cabeças o leque
de pennas, como a aza do amor, protectora
e discreta, dava-me um beijo, mais
doce do que o vinho, oh Sunamita! mais
doce do que os favos deliciosos das abelhas,
Aristêu!
A palestra erudita, finamente colorida
e nobremente elegante do doutor, perdeuse.
Era em vão que elle recapitulava as
orgias primévas e os festins colossaes dos
antigos. Que me importavam, a mim, as
dionysiacas! Que me importavam os brodios
de Roma e de Carthago se eu tinha
ali, ao alcance da boca, a vinha por excellencia,
que eram os labios da Jesuina. Que
falasse o doutor, que não estancasse nunca
a fluencia doutissima das suas palavras,
Jesuina, com o seu arrulho de pomba
mansa, prendia-me, absorvia-me todo
e eu não tinha ouvidos senão para o que
ella dizia e só aos seus beijos respondiam
meus labios.
Vinhos diversos subiram da adega preciosa
do Bragança e da adega á minha
cabeça. Provei de todos, porque Jesuina
queria que eu bebesse á nossa felicidade,
ao nosso amor eterno, á estrella que nos
illuminara o encontro, aos seus olhos, á
sua boca... e eu, vencido, bebia sem murmurar
até que, por fim, o doutor, sempre
fecundo em idéas, encommendou um
punch em chammas, ardente como o nosso
amor.
Veiu numa grande terrina fulgurante
e alumiou a mesa com um clarão tábido.
O doutor, num assomo, ergueu a sua taça
e pronunciou um brinde em que passaram,
lembro-me vagamente, as gerações
que adoravam Agni, o immortal, o lume
eterno, e veiu pelos caminhos difficeis da
historia, parando em todos os templos para
mostrar, no mais reservado do ádyto, a
chamma sempre vigilante, que é o symbolo
da fé. E bebemos.
Findam ahi as minhas memorias dessa
noite. Do que mais houve não sei--tenho
o estomago abrasado como se houvesse emborcado
a terrina, engulindo vorazmente
o punch em chammas.
Meu tio, surgindo á porta do quarto,
com uma physionomia grave e carregada,
fulminou-me com o olhar.
--Bom dia, meu tio.
--Bom dia, disse-me elle, puxando
uma cadeira para junto da cama.
Compuz as cobertas, enfiei os dedos pelos
cabellos para alisal-os e esperei grandes
coisas porque, certamente, iam cahir
grandes coisas da boca de meu tio.
--Então, que foi isso hontem?
--Isso que, meu tio...?
--Ali! meu sobrinho, razão tem teu
pai--elle é que está no caminho da verdade.
Na carta que me escreveu disse-me
que não te désse liberdade, que te trouxesse
sempre debaixo das minhas vistas,
porque és ainda uma criança, apezar dos
bigodes que tens. Decididamente és ainda
muito criança, concluiu meu tio, baixando
a cabeça como fulminado por um pezar
profundo.
--Mas que houve, meu tio?
--Que houve? ainda perguntas...!
Disse e levantou-se. Foi a um canto e,
tomando de cima de uma cadeira um casaco,
que eu reconheci immediatamente,
abriu-o diante de meus olhos. Estava enlameado
e roto.
--Que é isto, Anselmo...?
Baixei os olhos e não tive uma palavra,
mas confesso que eu mesmo não poderia
dar o motivo daquellas nodoas nem
daquelles rasgões.
--Não sabes...? foi a ceia de hontem.
--A ceia de hontem!
--Sim, ficaste enlevado nos olhos de
uma actriz e foste demais ao cantaro; finalmente,
esquecendo as bôas regras da
educação e do cavalheirismo, desmentindo
o teu caracter e manchando o nome dos
Ribas, quizeste... Mas tu estavas doido?
indagou meu tio, assomado, agarrando a
cabeça com ambas as mãos. Tu estavas
doido, rapaz!
--Não sei, meu tio.
--Que diabo, eu tambem bebo...
--Mas eu não bebo, meu tio, foi uma
vez... um incidente...
--Sim, um incidente, que teria funestas
consequencias se, em vez do doutor,
que é um cavalheiro, fosse outro homem.
--Mas que houve?! Fale, pelo amor
de Deus!
--Que houve! Pois não te lembras
que esmurraste o doutor num gabinete do
Bragança!?
--Eu! bradei saltando da cama. Eu...!
--Tu?!
Emmurcheci de vergonha e só levantei
a voz para declarar peremptoriamente
que partia á tarde, pelo nocturno.
--Hoje?
--Sim, meu tio: hoje mesmo e para
o sempre!
--Pois então avia-te, porque são quatro
e meia.
--Quatro e meia! Eu então estou dormindo...?
--Ha doze horas, senhor meu sobrinho;
ha doze horas! E solemne, sem mais
dizer, retirou-se do quarto.
Foi morrendo o rumor dos passos de
meu tio e achei-me só com o meu remorso.
Baixei os olhos para o pellego amarello
e vi as minhas botinas manchadas
como o nome immaculado e probo dos Ribas,
que eu arrastara, sem escrupulo, pelos
canaes do vicio, como um podengo estrafega
e arrasta pelas sargetas um trapo.
Tentei aturados esforços para reconstituir
a scena nefanda que tanto me rebaixara
aos olhos do meu digno tio, mas a embriaguez
correra um denso véu sobre o passado.
Sentei-me na cama como um bonzo
e meditei sobre os acontecimentos dessa
noite de depravação e delirio, mas só consegui
lembrar-me dos olhos de Jesuina--divinas
pupillas de mulher, supercilios divinos!
Por fim o raciocinio foi desbastando,
pouco a pouco, a densidão alcoolica
e deduzi, com profunda logica que, se eu
esmurrara o doutor, não fôra sem motivos,
a menos que o punch illuminado me
não tivesse enlouquecido por momentos.
Mas do fundo do meu amor levantou-se o
espectro terrivel do ciume--ah! fôra de
certo o ciume o movel desse crime.
O doutor, apezar das doutrinas que expende,
é azevieiro como D. Juan e Jesuina
não é mulher que se despreze, principalmente
depois de uma terrina de punch
em chammas, e assentei que quem armara
o meu braço, quem fechara o meu punho
para os murros fôra esse mesmo sentimento
que fez do mouro apaixonado um estrangulador
e que, em nossos dias, na cidade
tranquilla do meu sertão, armou uma
scena de escandalo na sacristia da igreja
parochial em que me lavei dos peccados
e ganhei o nome de Anselmo, entre o padre
Coriolano e o sapateiro Gaudencio,
afinador de pianos e trombone da philarmonica.
O ciume...! Jesuina! devo-te a triste
desgraça de ter molestado o meu illustre
e douto cicerone. Se algum dia o domares
com os teus olhos doces e crueis, arranca-lhe
do fundo do odio o perdão para os
murros que por teu amor lhe dei, lembrando-lhe
que Jesus tambem perdoou,
invocando piedosamente, com a santissima
resignação de martyr, a clemencia do
Pai para os legionarios: «Perdoai-lhes,
meu Pai! elles não sabem o que fazem!»
Eu tambem não sei que fiz, palavra
de honra, posso mesmo ajuntar que não
foi por querer.
Que fazer? Correr á casa do doutor
para pedir-lhe que relevasse a brutalidade
do meu vinho brigão, confessar a minha
fraqueza...? não. Decididamente só
me restava um alvitre--voltar á minha
terra e esconder entre as arvores, que me
viram criança, boas arvores amigas que
me carregaram tantas vezes nos seus braços
verdes, a minha vergonha, o meu
opprobrio. Era, de certo, a resolução mais
acertada e mais digna. Saltei da cama e
enfiei as calças, adiantando-me para o espelho,
curioso de ver a devastação da minha
physionomia e não foi sem pasmo
que reconheci todos os meus traços intactos--apenas
a barba, que apontava,
punha-me uma orla azul pelo queixo e,
em volta dos olhos radiados um halo roxo--no
mais era eu mesmo, fresco e forte,
com as minhas cores de serrano, com os
meus cabellos negros, em bucres, como os
do Apollo.
Vendo-me, esqueci por momentos a estroinice
e admirei-me e pensei com vaidade
que Jesuina, no silencio do seu boudoir,
quando se lembrasse de mim, havia
de lastimar a minha ausencia e quem sabe
se aquelles olhos formosos não humedeceriam
lenços por minha causa, quando
eu, já em caminho, de volta ao lar, fosse
revendo esses campos monotonos e essas
varzeas de uma eterna verdura por onde
caminham rebanhos, mugindo, á luz de
ouro das manhans.
Pobre Jesuina...! suspirei commovido.
Mas, de novo, appareceu-me a idéa da
partida. Lancei os olhos a um canto e vi
a minha maleta aberta, como se tambem
quizesse demonstrar-me a necessidade imperiosa
e inadiavel de seguir. Resignei-me
e, mollemente, descalço, fui ao cabide
buscar o jupon para retemperar-me no
banheiro, lavando abundantemente o corpo,
já que não podia fazer o mesmo á reputação.
Desci.
Meu tio, debruçado á varanda do jardim,
extasiava-se no crepusculo, já prompto
para jantar. O criado taciturno arranjava
a mesa. Nas gaiolas os canarios cantavam
estridulamente. Passei de leve
como uma sombra; o criado lançou-me um
olhar malicioso e baixou a cabeça.
Refrescado e vestido vim tomar o meu
lugar á mesa. O tio recebeu-me sem azedume,
mais cordial e mais meigo e, quando
provou o polme de ervilhas, com os
beiços a escorrerem, arregalou-me os olhos
como se me quizesse dizer que atacasse,
porque estava delicioso! E até a hora dos
badegetes não falámos. Foi justamente
quando o criado poz diante de mim os peixes
que descerrei os labios.
--Não, meu tio, disse repudiando o vinho
que elle me servia.
--Como! peixe sem vinho...? estás
doido! E, teimoso, verteu no meu calice
verde as gottas de Chablis. O vinho é um
reactivo, disse-me. Lá porque hontem
houve aquella historia queres deixar de
beber...? Historia!... O vinho é um tonico
poderoso. Atiça-lhe! e piscou-me o
olho. Corei e bebi umas gottas.
--Então embarcas amanhan?
--Impreterivelmente!
--Mas que diabo vais fazer a Minas?...
--Preciso. Meu pai chamou-me e meu
tio bem sabe...
--Ora, teu pai! Teu pai pensa que
no Rio de Janeiro não ha outra coisa senão
febre amarella. Deixa-te estar, homem...
Goza a mocidade emquanto é
tempo.
--Não, meu tio, sigo amanhan.
--Já sei, é por causa da scena do hotel.
Pensas que o doutor tomou a sério
as tuas bravatas? deixa-te disso. Elle tem
criterio bastante para julgar essas coisas.
Queres saber, sentiu-se tanto que até te
trouxe á casa ao collo.
--Como! Ao collo, meu tio!
--Ao collo, sim, porque quando aqui
chegaste foi um trabalho para que te tirassem
do carro. Vinhas lacrimoso, soluçando,
abraçado com o doutor, lamentando
a perda da mulher amada e recitando
emphaticamente versos do Simão Carreira.
Esmurraste o doutor, mas, que diabo!
murros de bebedo... E desatou a rir espalmando
a mão larga e dadivosa sobre
o meu hombro. Ora, o Anselmo! onde diabo
foste achar tantas lagrimas? Teus
olhos eram como duas torneiras abertas...
Mas deixemos o que houve: aguas passadas...
Vamos ao que serve: Temos hoje,
á noite, a festa do Bessa. Esperam-te...
--A mim, meu tio?
--Então? Has de ir para a roça sem
uma noção do grande mundo, do que chamam
high-life? Não, senhor...
E emborcou o copo de Bourgogne.
XIII
O baile do Bessa... (Commendador
Saturnino Pecegueiro Bessa, 52
annos, da ordem de Christo, alguns
gráus maçonicos, varios predios e
duas filhas; viuvo.) O baile de 4 de Setembro,
data do natal memoravel da beneficencia
encarnada... como descrevel-o
neste tempo curto que me resta emquanto
arranjam a minha bagagem? Como descrevel-o
assim asinha e de afogadilho sem
retocar o estylo? Arte exige, e muita, a
pintura de tão encantador e selecto convivio
de damas e de cavalheiros.
Não, não descrevo, tenho tempo de sobra
para commettimento que demanda esmero
e argucia, esmero para fazer com
que brilhem, na fórma ingrata das letras,
a graça das senhoras e o sorriso das senhoritas,
sorriso que affixa o reclamo de um
coração disponivel, sorriso com que a garridice
poz em reserva obsoleta a quadra
da cantiga que começa:
/*
Meu coração está vasio... etc.,
*/
e argucia para penetrar o pensamento dos
homens e as entrelinhas de uma certa viuva
prematura, tão habil na seducção que...
não é exagero dizer que essa notavel dama
insinou em meu coração a mais inabalavel
certeza da victoria dos meus olhos,
pronunciando durante uma valsa de
Strauss (o Danubio azul, que tem arrastado
nas suas ondas harmoniosas muitos
pares ao altar) duas phrases simples,
mas de uma intenção clara e escandalosa
que me fez corar. Simão Carreira, em
uma ode immortal, explica que o pudor
no homem é uma tolice... para as mulheres.
Eu fui tolo durante os compassos de
Strauss e a viuva acabou a noite nos braços
de um estudante de pharmacia, mais
lepido nas danças e mais desembaraçado
em colloquios. O estudante, depois da quadrilha
final, sabia o endereço da viuva e
eu aqui estou amarfanhando o enxoval
para a viagem de amanhan.
Dançou-se até meia noite com orchestra,
dessa hora para a madrugada senhoras
revesaram-se ao piano. As filhas do
commendador, gentis e conversadas, entretiveram-me
com algumas observações
de fina e atilada analyse--falaram-me,
com enthusiasmo, das pelouses lamentando
apenas a falta de fiscalisação e os tribofes.
Asseguro que esse termo feio e desgracioso
«tribofe» não é uma invenção cerebrina,
cahiu dos labios de Mlle, como
uma lesma cahe das petalas de uma rosa.
Os diccionarios não o inserem por escrupulo
e, em verdade, «tribofe» é horrivel.
Falaram-me da opera lyrica e, como eu
indagasse se tinham ouvido Wagner, uma
affirmou--que sim! Mlle. Alice. A irman,
porém, não se lembrava e foi preciso
que a outra recordasse a estréa de
um vestido de faille para que a doce e angelica
Delphina sorrisse achando a vaga
reminiscencia dum cavalleiro e dum cysne.
Mlle. Delphina, romantica, durante
uma languida habanera, falou-me, enternecida,
do Serge Panine e criticou a toilette
exagerada da viuva que girava, com
o busto em nudez, enlevada nas phrases
therapeuticas do seu amoroso par.
Do que ouvi, no vão de uma janella,
emquanto D. Brites, contralto, cantava ao
piano um melancolico romance de Tosti,
ficaram-me as palavras do Dr. Silverio
Torres, deputado da opposição, socialista.
Explicou-me, entre outras coisas, que a
miseria é um resultado da abundancia,
como a lama é o resultado do excesso da
chuva. O mundo, no seu rudimento, não
conhecia a miseria, disse-me---ella appareceu
com a primeira moeda. E teve este
pensamento, que deve ficar eterno como
um dogma de economia politica: «Quereis
ver um paiz de fome? entrai num
paiz de millionarios», e estendeu o braço
para o jardim procurando mostrar-me
além, na grande noite, esse paiz de fome:
Lá está, é a Inglaterra. Olhei machinalmente
e vi as estrellas do céu. O Rio, disse-me
mais, vive sitiado pelo varegista.
Nós não temos esquinas, temos vendas,
barreiras onde o pobre vai diariamente
pagar o seu imposto. O taverneiro occupa
os extremos da rua e, ás vezes, assalta o
centro--e esse excesso de mercado é uma
das causas da luta de contingencia. A luz
é a vida, o excesso de luz é a chamma, é
o incendio, é a morte. O taverneiro estabelecido
torna-se, em pouco tempo, o senhor
do quarteirão. Por intermedio do
caixeiro, que vareja o mais intimo recesso
da casa e espia e ouve emquanto conduz a
lenha, levando para o patrão, conjuntamente
com o dinheiro, o segredo da vida
privada do pobre, o taverneiro torna-se
uma especie de suzerano--elle fia, elle
sabe. É das vendas que vêm os grandes
desesperos para o proletario, é das vendas
que partem as diffamações mais crueis.
Dirão:--mas o pobre podia libertar-se
desse jugo fugindo ao balcão do taverneiro.
Infelizmente assim não é--nem sempre
o mealheiro tine na casa do operario,
o amanhan é tenebroso e no dia em que
elle, baldo de recursos, por molestia ou
por desemprego, tentasse o credito para o
alimento dos filhos, o taverneiro, que não
desconhece o prazer dos deuses, vingar-se-ia.
A venda é o terror do pobre porque
é o escoadouro do seu trabalho e, muitas
vezes, a causa das suas lagrimas. Concordei.
Elle ainda me fez saber o que eu,
até então, ignorava--que essas casas de
penhores são uma instituição do luxo. E
demonstrou com sabedoria: Esses estabelecimentos
de recurso prompto só recebem
joias e objectos de alto valor. O pobre,
quando muito, possue o collar que enfeita
o pescoço do filhinho, as bixas modestas
da esposa, um relogio de prata para marcar
a hora do trabalho--tudo isso que
vale?! Entretanto vá o senhor a um dos
leilões das casas de emprestimos e ha de
ver--braceletes preciosissimos, solitarios
offuscantes, diademas, chuveiros, toda a
joalheria fidalga e cara, porque a outra
nem sequer é apreçada. O pobre vai aos
belchiores e não empenha, vende: o casaco
dos domingos, a cama em que lhe
nasceram os filhos, o oratorio dos santos
protectores. Logo: quem empenha? os remediados,
os ricos, para manutenção da
apparencia. E perorou iracundo: o prego
é uma instituição do luxo, fomenta o vicio
e a hypocrisia. Iamos entrar em outras
analyses quando o commendador
Bessa, a conselho de meu tio, veiu tirar-me
para uma valsa com a Ex.ᵐᵃ Snr.ᵃ
D. Adelaide Fogget, esposa de um importador.
Dancei e suei. E chamaram-nos
para a ceia.
Lauta e facunda, bons vinhos e tropos.
Falaram todos, menos eu, que fujo á exhibição.
D’entre os muitos discursos inspirados
ficou-me o de um Bartholomeu de
tal, gordo e curto, homemzinho redondo,
um frasco. Louvou e bebeu com emphase;
ao fim da terceira taça, rematou: que o
commendador era da massa de D. João
de Castro e explicou o parallelo. Perdi,
infelizmente, a explicação porque Mlle.
Delphina, que distribuiu os lugares, fez
com que eu ficasse entre a contralto e o
deputado opposicionista, de modo que,
durante o transbordamento da facundia,
os arroubos melomanicos da direita e as
invectivas da esquerda distrahiram-me,
ella que me dizia, com os olhos em alvo,
que depois do Vorrei morire, só a morte,
e elle que soprava maliciosamente aos
meus ouvidos: Que áquillo só faltava o
retrato a oleo.
Uma balburdia chamou a nossa attenção
applicada á ironia--era entre as senhoras.
Todas as damas pediam ao deputado
que respondesse por ellas ao brinde
do pharmaceutico, que saudara na mulher
a joia mais delicada sahida das mãos do
Creador. E o deputado, mastigando, ás
pressas, uma febra de presunto, empunhou
a taça e disse coisas lindas, agradecendo
em nome do sexo feminino. Depois da
ceia (dezoito brindes e duas taças quebradas
para que nunca mais concorressem a
elevação dos dotes de um mortal, á mesa)
voltámos ás danças.
Grande coisa a vida! Já não baixo á
terra fria sem o supremo gozo de ter passado
uma noite em sociedade. Como é divertido
um baile... Oh! simplicidade do
meu campo, oh! cateretês da minha serra
ingenua...! Ó noites no rancho, á beira
da estrada, com a luz do luar, o bom cheiro
dos bogaris abertos e a cantilena do
serrano, ao som da viola, emquanto os curiangús
contentes saltam piando na estrada
lisa...
Recolhi-me com a noite--ella a desapparecer
no céu, eu a mergulhar nos lençoes,
estafado e triste. Acordei ás tres da
tarde, moído. Meu tio, mal soube que eu
abrira os olhos, subiu ao meu quarto para
dizer-me que o doutor estivera com elle;
e deu-me um cartão. Li; era laconico e
generoso.
/#
/*
«Meu caro:
*/
Vim trazer-lhe o abraço de despedida.
Parto para Belém no comboio da tarde.
O meu caseiro escreveu-me, relativamente
á venda de uma porcada (é o termo). Vou
á verdade da vida--o interesse. Tenho
um sitio e consolo-me das durezas e dos
desenganos deste mundo cultivando rosas
e criando porcos: o perfume e a linguiça,
a floricultura amada dos atticos e o
suino repellido pelo Koran. Levo commigo
um livro seu que achei sobre um
dunkerque: Eschylo. É um scaphandro
para garantir o espirito. Boa viagem.
/*
Sempre affectuoso
Gomes.»
*/
#/
--Então, meu tio, exclamei radiante,
elle não levou a mal os murros...?
--Ora... A italiana não me atirou ao
rosto Amor e Psyché, e eu?... Deixa-te
disso. O mundo é um jogo de concessões.
Deste-lhe um murro, amanhan ou depois
elle t’o restituirá. Isto é assim. E, sem
transição, cravou os seus olhos empapuçados
no meu rosto: estava terno como
uma mulher amorosa:
--Anselmo, porque não te formas?
Não temos na familia um homem de sciencia...
Arrisquei o nome de meu tio padre--Cleofano
Ribas...
--Cleofano... nem para missas! Temos
aqui uma academia livre, estás prompto
em humanidades, sabes latim, que é
a palavra de honra de convicção nas tribunas;
porque não te matriculas? Em
dois annos podes estar formado. Ficas
commigo. Que diabo! é preciso que eu
faça alguma coisa pela patria--quero
deixar-lhe um bacharel.
--Mas meu pai é contrario ás cartas.
Desde que lhe receitaram tartaro para
uma congestão hepatica tem horror aos
homens formados.
--Teu pai é um misanthropo.
--Alceste, comparei sorrindo.
--Qual Alceste, nem meio Alceste. E
serio: Que Alceste?
--De Molière, meu tio.
--Ah! pensei que era o das loterias,
esse é um excellente homem. Mas voltou
logo á questão: Se queres escrevo a teu
pai?
--Tente, meu tio.
Fiquei só na varanda emquanto Serapião
Ribas, no seu gabinete, tratava de
converter o irmão com uma longa epistola
sobre o meu futuro.
E o resto da ultima tarde foi de inenarravel
tristeza. Os passaros pareciam
chorar adeuses e havia no rumor vesperal
dos ramos do jardim e na agua da rega,
que jorrava sobre os canteiros, o suave e
blandicioso timbre de uma voz conhecida
que me dizia, queixosa:
--Porque partes, ingrato? E eu? e o
nosso amor?...
--É impossivel, Jesuina, comprei passagem
de ida e volta, disse enlevado.
--Que é isso, rapaz? estás falando só?
--Não, meu tio, falo com a minha illusão.
E a noite veiu funebre, mas rutilante
de astros.
Ás quatro da manhan, cantavam os
gallos pelos quintaes, quando o criado bateu
á porta do meu quarto avisando-me--que
o carro estava prompto.
A lua viu-me atravessar o jardim e ella
que conte os adeuses que fiz, mais tristes
do que os de Boabdil á Granada. E emquanto
durou a corrida, só tu, Jesuina, só
tu, doce amor, mereceste os meus suspiros.
XIV
Tu, imprudente moço da parabola
messianica, tu, de certo, sentiste,
voltando ao lar, desilludido e pobre,
a mesma impressão que me feriu o
espirito quando, abrindo os olhos á luz
clara da manhan, reconheci o meu quarto
modesto, alvo como uma cella monastica,
ornado singelamente com os meus instrumentos
de caça. Ao fundo, num velho armario
tosco, os livros das minhas leituras
ao lado da mesa ampla e pesada das minhas
meditações.
Coisas minimas para as quaes raramente
se voltavam meus olhos, como as
mirei extasiado! E que prazer em folhear
brochuras, em reler fragmentos, em passar
a mão pelos couros estirados nos muros
claros! E quem diria que eu, tão exigente
outr’ora, achando infecto esse jornalesco
patricio o Phanal de Tamanduá,
havia de ler, desde o artigo de fundo sobre
a questão do casamento do Braz Lamenha,
infenso ao pretor e á lei, redigido
pelo meu venerando mestre o reverendo
Coriolano, até o annuncio do bazar do
Pindella. Decididamente não ha nada
para revigorar o amor como a saudade.
Os rumores deliciavam-me e enterneciam-me--deixei-me
estar muito tempo a
ouvir o chofrar das aguas do moinho, perto
do meu quarto, e descobri um encanto
divino no balido das ovelhas que erravam
pelos caminhos.
Leve, longinquo, soava o sino da parochia,
ora brando, ora forte, conforme a
brisa e nasceu-me uma estranha curiosidade
de saber se aquelles toques, que vinham
pela manhan limpida, sonoros e
festivaes, eram por algum santo ou pelo
baptismo de mais um sertanejo. Mas,
acalmando-me, entrei por uma duvida incoercivel
recapitulando a vida fantastica
desses oito dias aventurosos, que tão depressa
correram. Pareceu-me que jámais
passara além das montanhas levemente
esfumadas no horizonte, reduzi essa viagem
da minha imaginação a uma simples
sortida de caça--a mesma fadiga que eu
sentia era natural depois de tantas escaladas atrevidas,
depois de tantos saltos
temerarios, ravinas acima, penhascos
abaixo.
Que trazia eu que me demonstrasse ter
vivido nessa cidade de luxo e de vicio, tão
celebrada entre serras pelos que, uma vez,
pisaram as suas ruas e admiraram o seu
fausto? Que trazia eu como documentos
affirmativos? a carta de meu tio...? Sim,
era uma verdade a carta, tanto que arrancara
a meu pai estas profundas palavras
cheias de sabedoria: «Que eu me deixasse
de sonhos. Que me dedicasse á terra,
que é uma fonte perenne de riqueza, porque
neste paiz a lavoura é que rende,
e citou a phrase do estadista--isto é
«um paiz essencialmente agricola» aconselhando-me
que não a perdesse de memoria.
Tudo mais, vaidade das vaidades.»
E ajuntou: «que mais valia ter uma junta
de bois e uma charrua para sulcar o solo
do que todas as cartas das congregações.
E, por fim, lembrou que a terra não produz
perfidias nem calumnias e que viver
entre as arvores é bem melhor do que viver
entre os homens.» Convenci-me e decidi
ficar no campo, lavrando.
Sonha-se tanto! Já uma vez sonhei
que era amante de Cleopatra. Vivi dois
longos mezes felizes, de amor lascivo e de
festas com a formosa rainha que me chamava:
Ri-Ri.
Com ella enlaçado subi o Nilo muitas
vezes, numa barca de cedro, que tinha
um cysne de ouro á prôa. Charmion
sempre mimosa, cuidava dos meus cabellos
lavando-os em essencias que vinham
da Ethiopia e, até hoje, guardo a physionomia
simiesca de um retinto nubio de
nome André, (coisa estranha, nome exotico
na terra de Isis), que era o encarregado
de encher o rython de prata por onde
bebiamos, Cleopatra e eu, e descia a comprar-me
cigarros quando me faltavam.
André...! é uma figura indelevel na
minha memoria. Entretanto foi tudo sonho;
porque, se a propria rainha, desligando-se
das tiras com que os embalsamadores
a prenderam, quebrando o seu sarcophago,
viesse dizer-me que me pertencera
um dia, eu lhe diria brutalmente na
face: Mentes como uma bruxa, filha dos
Pharaós! Sonho, puro sonho. Com o Rio
não se teria dado o mesmo phenomeno?
Porque a verdade é que todos quantos caminharam
pelas ruas da cidade excelsa
gabam-lhe as maravilhas e de todos ouvi
narrações de aventuras que eu, nem mesmo
em sonho, concebi: mulheres que desciam
a entregar-se, arrulhando entre limoeiros
em flor; outras, mais abrasadas,
que, em furor de ciume, ameaçavam com
escandalos e punhaes, e noites delirantes
e mil coisas que os persas imaginosos não
incluiram nos contos de Scherazada.
Eu só não vivi: atravessei o Rio como
uma sombra perdendo o fio do prazer
quando já o tinha seguro e vendo differentemente
de todos, atravéz do meu tedio
e do meu sonho.
Assim foi que achei a rua do Ouvidor
infima e acanhada; assim foi que abandonei
o jogo no momento em que começava
a accumular; assim foi que apenas
provei o beijo de Jesuina e perdi a viuva.
Todos os factos experimentados, sem remate,
interrompidos em meio, justamente
como nos sonhos. Seria embriaguez?...
Teria eu atravessado toda uma semana
bebedo como Pedro Macaco, que confunde
os dias com as noites e não tem,
desde muito, a noção exacta do tempo?
Não creio. Sonhei, foi sonho decididamente.
É assim quando sonho, sempre ha
de vir uma mulher para suppliciar-me: foi
Cleopatra primeiro, amei-a muito e passou;
agora Jesuina.
A vida é um sonho. Quem sabe se não
sonhei? Mas lá fóra ha uma voz que indaga--se
cheguei do Rio. É Simão Carreira,
sempre rouco, o mavioso lyrico. Então
não, não é sonho.
Não ha nada mais real do que um poeta
e Simão que pergunta se cheguei é porque
sabe que parti. Então os sonhadores
são outros que me fizeram a descripção
do Rio, sonhadores ou mentirosos, sonhadores,
em summa, porque a mentira é um
producto de sonho. Mas Jesuina!? Foi
sonho como Cleopatra, como Charmion,
como o nubio André. Dreams! Dreams!
Dreams!
E a vida é isto: sonho ou tedio. Antes
sonhar.