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CRIME E COVID: uma relação doentia? [1]

APRESENTAÇÃO

O presente trabalho visa realizar uma singela análise sobre os índices de criminalidade no Estado de São Paulo em conjunto com os números da pandemia causada pela COVID-19.[2]

Pretendemos, partindo do contexto da pandemia (um evento novo, que gerou e ainda gera grande comoção), levantar algumas reflexões sobre os impactos da violência, que além de velha conhecida no Estado, aparentemente já foi normalizada em muitos sentidos. Dentre as perguntas que se pretende instigar (mas sem a pretensão de oferecer respostas):

  1. Qual é, em linhas gerais, a tendência de evolução da incidência criminal em SP? Os crimes têm, ao longo das últimas duas décadas diminuído ou aumentado?

  2. É possível visualizar tendências diferentes nas regiões da cidade?

  3. Como foi o comportamento dessas tendências durante os meses em que a quarentena em SP foi mais intensa? Houve padrão nos distintos tipos de crime e nas distintas regiões?

Ao final, queremos instigar a seguinte provocação na leitora e no leitor: Será que a violência em São Paulo é também “pandêmica”, isto é, comparável em magnitude ao que vem ocorrendo com a COVID-19? Será que, em alguma medida, não vivemos, também, uma duradoura e grave pandemia de violência no Estado? Que “novo normal” poderemos idealizar, sonhar e construir diante do “velho anormal”?

Para isso, antes de prosseguir, responda mentalmente à seguinte questão: temos mais vítimas por COVID-19 ou por crimes violentos?

DADOS UTILIZADOS

Para tentar orientar as reflexões propostas, vamos analisar as bases :

Embora cada uma delas possa render inúmeras análises interessantíssimas, diante da inquietude das questões apresentadas acima optou-se por olhar para elas em conjunto.

METODOLOGIA

Ambas as bases, embora pré-processadas e em formato tidy, receberam tratamento a fim de torná-las comparáveis entre si. O detalhamento dos passos fica mais evidente nos comentários nos arquivos nas pastas /R e /data-raw, porém a seguir trazemos os aspectos mais significativos das manipulações realizadas.

Tratamento dos dados da COVID

Os dados foram restritos ao estado de São Paulo e foram removidas variáveis como a quantidade de novos casos, casos recuperados, etc, uma vez que o foco da análise se deu sobre dois indicadores:

  • Incidência de casos: ou seja, a quantidade de casos confirmados por 100 mil habitantes em um determinado município.

  • Mortalidade (ou incidência de mortes): a quantidade de óbitos confirmados por 100 mil habitantes naquele mesmo município.

Variáveis originais Variáveis finais
regiao, estado, municipio, coduf, codmun, codRegiaoSaude, nomeRegiaoSaude, data, semanaEpi, populacaoTCU2019, casosAcumulado, casosNovos, obitosAcumulado, obitosNovos, Recuperadosnovos, emAcompanhamentoNovos, eh_capital, obitosAcumulado_log2, obitosNovos_log2, lat, lon regiao, mes, variavel, quantidade

Tab 1. Variáveis da base de dados COVID antes e depois do tratamento

Tratamento dos dados da SSP

A base originalmente continha variáveis em sub-espécies dos crimes cometidos, separando por exemplo homicídios de homicídios culposos. Para melhor aproveitamento dos dados, embora se leve em conta os bens jurídicos inerentes a cada tipo penal[3], conforme se estrutura do Código Penal Brasileiro, os crimes foram agrupados por sua natureza e não necessariamente por sua topologia no código.

As hipóteses originais foram dividas em quatro grupos:

  • Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI): reunindo homicídios dolosos, latrocínio (também chamado de roubo seguido de morte) e lesão corporal seguida de morte. Para fins desse estudo, se incluiu nesse grupo também os homicídios tentados (que, por definição, são intencionais), ainda que o óbito não tenha necessariamente ocorrido. [4]

  • Crimes contra o patrimônio: Reunindo roubos (exceto se resultantes em óbito) e furtos (de qualquer tipo).

  • Outros crimes contra a pessoa: Reunindo estupros[5] (em todas as modalidades) e lesões corporais. Sabe-se que ambos possuem grande diferença quanto aos contextos criminológicos em que ocorrem, porém apenas e exclusivamente para fins metodológicos fez sentido agrupá-los aquo.

  • Acidentes penalmente relevantes: Agrupou-se os crimes de trânsito (inclusive as modalidades dolosas), lesões corporais culposas e homicídios culposos. Da mesma forma que no caso anterior, a proposta é unicamente didática, tendo em mente que todos os crimes aqui descritos possuem um aspecto subjetivamente não-intencional, mesmo nos casos de dolo eventual.

Variáveis originais Variáveis finais
mes, ano, delegacia_nome, municipio_nome, regiao_nome, estupro, estupro_total, estupro_vulneravel, furto_outros, furto_veiculos, hom_culposo_acidente_transito, hom_culposo_outros, hom_doloso, hom_doloso_acidente_transito, hom_tentativa, latrocinio, lesao_corp_culposa_acidente_transito, lesao_corp_culposa_outras, lesao_corp_dolosa, lesao_corp_seg_morte, roubo_banco, roubo_carga, roubo_outros, roubo_total, roubo_veiculo, vit_hom_doloso, vit_hom_doloso_acidente_transito, vit_latrocinio ano, regiao, tipo_crime, quantidade, qnt_relativa

Tab 2. Variáveis da base SSP antes e após tratamento

Convergência dos dados

A fim de que se pudesse tornar os dados estudados comparáveis em algumas medidas, adotou-se os seguintes padrões:

  • Os dados de população, oriundos das projeções do Tribunal de Contas da União (TCU) para 2019, foram aproveitados para ambas as bases. Elas vieram originalmente na base COVID e foi daptada para a base SSP.

  • Como as bases possuiam recortes temporais distintos, os dados de segurança da SSPforam projetados até o final do ano, considerando as tendências até abril/2020. Ou seja, levando-se em conta os dados do primeiro quadrimestre de 2020, procurou projetar os números até o fim do ano.

  • As regiões da Segurança Pública (base SSP) foram aproveitadas também para os dados da pandemia (base COVID). Assim, os dados foram apresentados considerando as mesmas 12 regiões, recebendo na maioria dos casos os nomes de uma das cidades que a representam. Abaixo a visualização geo-espacial de cada uma delas:

ESTADO DE SÃO PAULO E A COVID-19

Como é sabido, o Brasil chegou rapidamente aos países com mais casos no mundo, mesmo havendo reconhecida subnotificação e negacionismo por parte de autoridades públicas. Não iremos adentrar nas razões (e nas omissões) que nos trouxeram até aqui, porém é importante ressaltar que a gravidade da pandemia em nosso país é sem precedentes recentes.

Vejamos:

Incidência de casos e Mortalidade em SP

Por outro lado, o Estado de São Paulo foi por muito tempo o “epicentro” da pandemia no país, na medida em que - se imagina - que foram onde se originaram os primeiros casos, irradiando o contágio comunitário para outros cantos do país.

Oportuno, portanto, olhar um pouco dos indicadores da COVID-19 no Estado:

Região Tx. Incidência Tx. Mortalidade
Araçatuba 99,8 5,8
Bauru 138,6 4,5
Campinas 234,4 10,7
Capital 762,7 46,1
Grande São Paulo 424,2 32,3
Piracicaba 134,6 5,9
Presidente Prudente 85,1 5,0
Ribeirão Preto 135,9 4,5
Santos 632,1 27,8
São José do Rio Preto 178,2 6,1
São José dos Campos 150,1 5,2
Sorocaba 148,8 7,0

Fica claro que, a despeito das diferenças regionais de intensidade, a pandemia teve (e ainda tem) grande impacto em todo o território.

O CRIME E O ESTADO DE SÃO PAULO

Tendências

Vamos observar a evolução de ocorrências criminais registradas de 2002 até 2020.

É bastante evidente que há uma constante queda geral no número de ocorrências nos últimos anos, sobretudo a partir da segunda metade da década passada. Existem diversos fatores, por certo, que explicam essa queda, todos eles fora de nossos objetivos aqui.

No que pese a explicação das razões que levam a essa queda estejam fora de nosso objetivo, faz sentido aqui olhar para cada uma das quatro categorias individualmente, afim de verificar se esses números se refletiram em todas elas.

Criminalidade durante a pandemia

Por outro lado, a despeito de existir uma tendência de redução do cômputo de casos em números gerais, ao olhar para o comportamento das diversas categorias podemos perceber diferenças entre elas:

O gráfico pode ser complementado pela tabela abaixo, focada nos últimos 5 anos:

Crime 2015 2016 2017 2018 2019 2020
CVLI 19,3 17,9 16,9 15,3 14,4 14,5
patrimonio 1.996,0 2.075,9 2.145,6 1.983,0 1.946,6 1.634,6
contra_pessoa 325,3 327,6 323,4 306,1 312,5 262,5
acidentes 264,6 231,5 212,0 182,8 179,8 134,2

Perguntas importantes (e sem respostas)

A queda generalizada nos registros criminais chama parece fazer sentido se considerada a tendência geral e já há alguns anos. Porém, o fato de não haver a mesma redução e - pior - um ligeiro aumento nos CVLI traz questões importantes.

Houve redução real nas ocorrências ou, meramente, aumento na subnotificação de crimes?

Por um lado, o fato de haver menor número de pessoas circulando parece justificar uma menor incidência de crimes contra o patrimônio, acidentes e crimes contra a pessoa. Por outro lado, os CVLI têm como peculiaridade a baixa taxa de subnotificação por natureza - afinal, a morte de uma pessoa dificilmente passa sem ser notada. Mas o que explicaria o aumento?

Além disso, é preciso notar que parte importante dos equipamentos públicos - delegacias de polícia inclusas - fecharam as portas total ou parcialmente durante os meses iniciais da pandemia. Isso pode ter levado a um desencorajamento do reporte de crimes, ainda que parte relevante deles seja passível de notificação mediante Boletim de Ocorrência eletrônico.

Ainda, se essa hipótese - a mera subnotificação - se mostrar verdadeira, um alarme deveria soar perante as autoridades públicas: é plausível imaginar que mais crimes de estupro e, pior, estupro de vulnerável, tenham aumentado ainda mais durante o período de isolamento. Sabe-se, há tempos, que parte relevante desses casos ocorre em ambientes domésticos.

Mortes decorrentes de intervenção policial?

Um fato digno de nota que coincidiu com os primeiros meses da pandemia foi a comoção em torno da morte do afroamericano George Floyd, que deu início a manifestações em diversos pontos do mundo. No Brasil, o movimento negro há anos denuncia os grandes números de casos de mortes causadas pela polícia, em contextos das chamadas “intervenções policiais”.

Foge do escopo desse estudo nos aprofundarmos nesse tema. Inclusive, o banco SSP não continha os dados para essas ocorrências e, consequentemente, ela não foi computada. O que ocorre, por outro lado, é que estudos apontam o crescimento desses números durante o ano de 2020, independnetemente de haver correlação (e não causalidade) com a pandemia.

Todas as regiões tiveram comportamento semelhante?

Vamos observar como se deu a distribuição dos crimes pelas regiões adotadas nesse estudo.

Para melhor visualizar quais foram as regiões que tiveram aumento, reforçando o que o gráfico nos mostra, vejamos a tabela a seguir:

Região

População

2019

2020

Diferença em %

Araçatuba

784.310

22,3

34,2

53,5

Bauru

1.867.184

14,4

17,8

23,7

Campinas

3.809.471

14,7

14,8

0,5

Capital

12.252.023

12,4

11,4

-7,8

Grande São Paulo

9.413.274

13,0

13,7

4,8

Piracicaba

3.314.154

13,2

14,7

12,1

Presidente Prudente

1.079.896

11,4

10,8

-4,8

Ribeirão Preto

3.666.016

14,2

12,8

-10,1

Santos

2.145.688

19,9

16,6

-16,5

São José do Rio Preto

1.552.180

15,3

11,6

-24,4

São José dos Campos

2.515.574

25,7

29,1

13,1

Sorocaba

3.119.491

13,7

12,7

-7,2

Geograficamente, podemos destacar as regiões que tiveram esse aumento:

Vemos, portanto, que, embora existam ainda perguntas sem resposta, está claro que os crimes violentos letais intencionais (CVLI) tiveram um destaque importante durante a pandemia: tanto por vermos, surpreendentemente, revertida a tendência histórica de redução, como, também, pelas questões postas acima.

Oportuno, então, observar com mais vagar essa categoria de crimes.

Violência pandêmica?

Convidamos o leitor e a leitora a retomarem a pergunta feita no início: temos mais vítimas por COVID-19 ou por crimes violentos?

Essa questão é importante pois, é inegável que há relevantes impactos sociais, econômicos e culturais que a COVID-19 irá impor ao Brasil e a o mundo.

Se a resposta da pergunta acima, à luz dos dados postos, indicar que nesse mesmo período a violência ceifou mais vidas do que o coronavírus, poderíamos nos perguntar se a violência no Estado não se tornou, também ela, pandêmica.

Para continuar essa reflexão vamos olhar para as cidades que tiveram ao menos um registro de óbito por COVID. Elas totalizam 286 cidades.

Dessas, vamos verificar se e quais cidades tiveram mais óbitos por COVID do que por CVLI. Embora imperfeita, a comparação é possível considerando que o resultado dos CVLI é o óbito[6].

municipio

populacao

CVLI

obito_covid

causa_maior

São Paulo

12.252.023

4,0

34,9

covid

Santos

433.311

28,8

34,2

covid

Embu-Guaçu

69.385

0,0

14,4

covid

São Luiz do Paraitinga

10.687

0,0

9,4

covid

Uchoa

10.110

0,0

9,9

covid

Tarabai

7.468

0,0

13,4

covid

De um lado, chama atenção que a COVID tenha sido a maior causa de óbito em apenas 6 municípios, sendo que 4 deles não tiveram nenhuma morte registrada por CVLI.

Por outro lado, chama atenção que as duas cidades que tiveram mais mortes por COVID do que por CVLI sejam, justamente São Paulo - a capital e maior cidade do país - e Santos, uma das principais cidades do litoral.

Conclusão?

Tendo em mente tudo o que observamos aqui, pudemos constatar que:

  • A COVID-19 teve (e, quiçá, ainda tem) enorme impacto em todo o estado de São Paulo;

  • Não se pode afirmar, necessariamente, relação de causa e efeito entre a pandemia e a criminalidade. Porém, o número de ocorrências sofreu queda neste período, com destacada exceção - justamente - dos CVLI.

  • Há fatores como a subnotificação que podem melhor explicar esse fenômeno. Por outro lado, continua sendo intrigante o não-impacto sobre esses crimes violentos.

  • Que “novo normal” pretendemos construir ao fim da pandemia de COVID-19? Ele inclui o enfrentamento das causas que levam a taxas de violência tão significativas?

Próximos temas

Menos pelo que foi dito e mais pelo que não pode ser dito, é possível levantar algumas questões para estudos futuros e mais aprofundados:

  • Considerando que em CVLI não são englobadas as mortes causadas por intervenção policial, é importante considerar esse aspecto.

  • Observar dados mais atualizados tanto de crimes quanto de COVID pois é possível que a taxa constante de crimes não tenha sido superada pelas da pandemia.

  • Levar em conta que é possível que haja registro tardio de crimes ocorridos nesse período e represados (ou subnotificados) durante a pandemia.

  • Observar em outros países as taxas de criminalidade a fim de verificar possíveis padrões.

Notas

  1. A ideia do nome veio de uma excelente matéria da Revista piauí

  2. Ele se dá no contexto de conclusão do Curso de R para Ciência de Dados e, portanto, não tem grandes pretensões científicas. Ainda, é preciso levar em conta a inexperiência do autor com programação em R e com análise de dados de modo geral.

  3. De acordo com as teorias clássicas do Direito Penal. Grosso modo, poderia se dizer que o bem juridico penal é aquele valor protegido pelo direito penal em cada um dos crimes. Essa ideia permeia todo o Código Penal. Por exemplo, o homicídio (Art. 121) se encontra no título I, “Dos Crimes contra a pessoa”, e, neste, no Capítulo I, “Dos crimes contra a vida”.

  4. A classificação em CVLI é seguida pela SENASP-MJ e dá mais ênfase ao resultado (vulneração da vida) do que na conceituação jurídica dos atos (na prática, isso permite tratar de forma semelhante, p. ex., o homicídio e o roubo seguido de morte, que, a rigor, é considerado um crime contra o patrimônio).

  5. A rigor, o crime de estupro está previsto no artigo 217 do Código Penal, em título que hoje se chama “Crime contra a dignidade sexual”. É preciso levar em conta, porém, que originalmente essa parte do cógido era denominada “Crimes contra os costumes”, o que representa uma visão antiquada - e inadequada - do tema. Entende-se aqui que sua natureza se aproxima muito mais de crimes contra a integridade física e emocional, de modo que poderia perfeitamente ocupar o mesmo capítulo do código inerente aos crimes contra a pessoa.

  6. Ainda que aqui tenhamos agrupado também os homicídios não consumados (“tentativas de homicídio”).

About

Trabalho de final do curso "R para Ciência de Dados 2" da Curso-R. Aluno Rodrigo Dornelles.

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