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PROLOGO

Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indifferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou á lume.

Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor proprio de author. Sei que pouco vale este romance, porque escripto por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o tracto e a conversação dos homens illustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrucção miserrima, apenas conhecendo a lingua de seus paes, e pouco lida, o seu cabedal intellectual é quasi nullo.

Então porque o publicas? perguntará o leitor.

Como uma tentativa, e mais ainda, por este amor materno, que não tem limites, que tudo desculpa — os defeitos, os achaques, as deformidades do filho — e gosta de enfeital-o e aparecer com elle em toda a parte, mostral-o a todos os conhecidos e vel-o mimado e acariciado.

O nosso romance, gerou-o a imaginação, e não n'o soube colorir, nem aformosentar. Pobre avisinha silvestre, anda terra a terra, e nem olha para as planuras onde gira a aguia.

Mas ainda assim, nao o abandoneis na sua humildade e abscuridade, senão morrerá a mingua, sentido e magoado, só afagado pelo carinho materno.

Elle simelha á donzella, que não é formosa; porque a natureza negou-lhe as graças feminis, e que por isso não pode encontrar uma affeição pura, que corresponda ao affecto da su'alma; mas que com o pranto de uma dôr sincera e viva, que lhe vem dos seios da alma, onde arde em chamas a mais intensa e abrasadora paixão, e que em balde quer recolher para a corução, move ao interesse aquelle que a desdenhou e o obriga ao menos a olhal-a com bondade.

Deixae pois que a minha URSULA, timida e acanhada, sem dotes da naturesa, nem enfeites e louçanias d'arte, caminhe entre vós.

Nao a despreseis, antes amparae-a nos seus incertos e titubantes passos para assim dar alento a authora de seus dias, que talvez que com essa protecção cultive mais o seu engenho, e venha a produzir couza melbor, ou quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras, que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrucção mais vasta e liberal, tenham mais timidez do que nós.


I

DUAS ALMAS GENEROSAS

São vastos e bellos os nossos campos; porque innundados pelas torrentes do inverno simelham o occeano em bonançosa calma —- branco lençol de espuma, que não ergue marulhadas ondas, nem brame irado, ameaçando insano quebrar os limites, que lhe marcou a omnipotente mão do rei da creação. Enrugada ligeiramente a superficie pelo manso correr da viração, frizadas as aguas, aqui e ali, pelo volver rapido e fugitivo dos peixinhos, que mudamente se afagam, e que depois desapparecem para de novo voltarem -— os campos são qual vasto deserto, magestoso e grande como o espaço, sublime como o infinito.

E a sua belleza é amena e doce, e o exíguo esquife, que vae cortando as suas aguas hybernaes mansas e quedas, e o homem, que sem custo o guia, e que sente vaga sensação de melancholico enlevo, desprende com mavioso accento um canto de harmoniosa saudade, despertado pela grandesa d'essas aguas, que sulca.

É ás aguas, e á esses vastissimos campos que o homem offerece seus canticos de amor? Não por certo. Esses hymnos, cujos accentos perdem-se no espaço. são como notas d'uma harpa eolia, arrancadas pelo roçar da brisa; ou como sussurrar da folhagem em mata espessa. Esses carmes de amor e de saudade o homem os offerece a Deos.

Depois, mudou-se já a estaçao; as chuvas desappareceram, e aquelle mar, que viste, desappareceo com ellas, voltou ás nuvens formando as chuvas do seguinte inverno, e o leito, que outr'ora fora seo, transformou-se em verde e humido tapete, matisado pelas brilhantes e lindas flores tropicaes, cuja fragancia arrouba e só tem por apreciador algum desgarrado viajor, e por afago a brisa que vem conversar com ellas no cahir da tarde — á hora derradeira do seu triste viver.

E altivas erguem-se milhares de carnaubeiras, que balançadas pelo soprar do vento recurvam seus leques em brandas ondulações.

Expande-se-nos o coração quando calcamos sob os pés a herva reverdecida, onde gota a gota o orvalho chora no correr da noute esse chôro algente, que se pendura da folhinha tremula, como a lagrima de uma virgem seductora, e que, arrancada do coração pelo primeiro gemer da saudade se balança nos longos cilios. Depois vem a ardentia do sol, e bebe o pranto nocturno, e murcha a flôr, que infeitiçava a relva, porque o astro, que rege o dia, reassumio toda a sua soberania; mas ainda assim os campos são bellos e magestosos!

E desce depois o crepusculo, e logo após a noite bella, e voluptuosa recamada de estrellas; ou prateada pela lua vagarosa e placida que lhe branqueia o tapete de relva, derramando suave claridade pelos leques recurvados dos palmares. Então um vago senlimento d'amor, e de uma ventura, que mui longe lobrigamos, arrouba-nos a alma de celestes effluvios, e doce esperança enche-nos o coração, outr'ora myrrado e frio pela descrença, ou pelo scepticismo.

Quem haverá ahi que se não sinta transportado ao lançar a vista por esses vastos paramos ao alvorecer do dia, ou ao arrebol da tarde, e nao se deixe levar por um deleitoso scismar, como o que escuta o gemer da onda sobre areiaes de prata, ou o canto matutino de uma ave melodiosa!!.. A vista expande-se e deleita-se, e o coração volve-se a Deos, e curva-se em respeitosa veneração; porque ahi está Elle.

O campo, o mar, a abobada celeste ensinam a adorar o supremo Auctor da naturesa, e a bemdizer-lhe a mão; porque é generosa, sabia e previdente.

Eu amo a solidão; porque a voz do Senhor ahi impera; porque ahi despe-se-nos o coração do orgulho da sociedade, que o embota, que o apodrece, e livre d'essa vergonhosa cadeia, volve a Deos e o busca -— e o encontra; porque com o dom da ubiquidade Elle ahi está!

Entretanto em uma risonha manhan de agosto, em que a naturesa era toda galas, em que as flores eram mais bellas, em que a vida era mais seductora -— porque toda respirava amor -—, em que a herva era mais viçosa e rociada, em que as carnaubeiras, outras tantas atalayas ali dispostas pela naturesa, mais altivas, e mais bellas se ostentavam, em que o axixá com seus fructos imitando purpureas estrellas esmaltava a paisagem, um joven cavalleiro melancholico, e como que exhausto de vontade, atravessando porção d'um magestoso campo, que se dilata nas planuras de uma das nossas melhores, e mais ricas provincias do norte, deixava-se levar ao traves delle por um alvo e indolente ginete. Lonfo devia ser o espaço que havia percorrido; porque o pobre animal, desaletnado, mal cadenciava os pesados passos.

Abstracto, ou como que mergulhado em penosa e profunda meditação, o cavalleiro proseguia sem notar a estrema prostração do animal ou então fazia semblante de a não reparar; porque lhe não excitava os nobres estimulos. Dir-se-hia ter já concluido sua longa jornada.

Mas quem sabe?!.. Talvez uma ideia unica, uma recordação pungente, funda, amarga como a desesperação de um amor trahido, lhe absorvesse n'ess'ora todos os pensamentos. Talvez. Porque não havia o menor signal de que observasse o espectaculo que o circumdava.

Que intensa agonia, ou que dôr intima que lhe iria lá pelos abysmos da alma?! Só Deos sabe!.

Proseguia em tanto a marcha, e sempre abstracto, sempre vagaroso. Curvada a fronte sobre o peito, o mancebo meditava profundamente, e grande, e poderoso devia ser o objecto de seo atturado meditar. Arfava-lhe o peito sobre a qual descançava essa fronte acabrunhada, que parecia tam nobre e altiva? Quem o poderia dizer ao certo?

O mancebo occultava parte de suas formas n'um amplo capote de lan, cujas dobras apenas descobriam-lhe as mãos cuidadosamente calçadas com luvas de camurça. N'uma destas mãos o joven cavalleiro reclinára a face pallida e melancholica, com a outra frouxamente tomava as redeas ao seo ginete. Mas este simples traje, este como que abandono de si proprio, não podia arredar do desconhecido certo árde perfeita destincção que bem dava a conhecer que era elle pessoa d'alta sociedade.

Derepente o cavallo, baldo de vigor, em uma das avidades onde o terreno se accidentava mais, mal podendo conter-se pelo langor dos seus lassos membros, destendeo as pernas, dilatou o pescoço, e dando uma volta sobre si, cahiu redondamente. O choque era demais violento para não despertar o metitabundo viajor; quiz ainda evitar a queda; mas era tarde, e de envolta com o animal rolou no chão.

¿ Houvera mais que descuido no incerto e indolente viajar desse singular desconhecido; não previa elle um acontecimento fatal n'essa divagação de tanto abandono, de tam grande deleixo? e máo grado o langor do cavallo, sempre a proseguir, cada vez mais submerso em seu melancholico scismar! Cahio, e de um jacto perdeo o sentimento da propria vida; porque a queda lhe offendeo o craneo, e atturdido, e maltratado desmaiou completamente. Para mais desastre o pobre animal no ultimo arranco do existir, destendendo as pernas, foi comprimir acerbadamente o pé direito do mancebo, que inerte e immovel, como se fora frio cadaver, nenhuma resistencia lhe oppoz.

Era apenas o alvorecer do dia, ainda as aves entoavam seus meigos cantos de arrebatádora melodia, ainda a viração era tenue e mansa, ainda a flor desabrochada apenas não sentira a tepida e vivificadora acção do astro do dia, que sempre amante, mas sempre ingrato, desdenhoso, e cruel áfaga-a, bebe-lhe o perfume, e depois deixa-a murchar, e desfolhar-se, sem ao menos dar-lhe uma lagrima de saudade!... Oh! o sol é como o gomem maligno e perverso, que bafeja com halito impuro a donzella desvalida, e foge, e deixa-a entregue á vergonha, á desesperação, á morte! — e depois, ri-se e busca outra, e mais outra victima!

A donzella e a flor choram em silencio, e o seo choro ninguem comprehende!......

Era apenas o alvorecer do dia, dissemos nós, e esse dia era bello como soem ser os do nosso clima equatorial onde a luz se derrama a flux — brilhante, pura e intensa.

Vastos curraes de gado por ali havia; mas tam desertos a ess'ora matutina, que nenhuma esperança havia de que alguem socorresse o joven cavalleiro, que acabava de desmaiar. E o sol já mais brilhante, e mais ardente e abrasador, subia pressuroso a eterna escadaria do seo throno de luz, e dardejava seus raios sobre o infeliz mancebo!

N'esse comenos alguem despontou longe, e como se fora um ponto negro no extremo horisonte. Esse alguem, que pouco e pouco avultava, era um homem, e mais tarde suas formas ja melhor se destinguiam. Trasia elle um quer que era de longe mal se conhecia, e que descançando sobre um dos ombros, obrigava-o a reclinar a cabeça para o lado opesto. Todavia essa carga era bastante leve — um cantaro ou uma bilha; o homem hia sem duvida em demanda de alguma fonte.

Caminhava com cuidado, e parecia bastante familiarisado com o lugar cheio de barrocaes, e ainda mais com o calor do dia em pino, porque caminhava tranquillo.

E mais e mais se aproximava elle do cavalleiro desmaiado; porque seos passos para ali se dirigiam, como se a Providencia os guiasse. Ao indireitar-se para um bosque á cala sem duvida da fonte que procurava, seos olhos se fixaram sobre aquelle triste espectaculo.

— Deos meo! — exclamou correndo para o desconhecido.

E ao coração tocou-lhe piedoso interesse, vendo esse homem lançado por terra, tinto em seu proprio sangue, e ainda opprimido pelo animal já morto. E ao aproximar-se contemplou em silencio o rosto desfigurado do mancebo; curvou-se, e poz-lhe a mão sobre o peito, e sentio la no fundo frouxas e espaçadas pulsações, e assomou-lhe ao rosto riso fagueiro de completo enlevo; da mais intima satisfação. O mancebo respirava ainda.

— Que ventura! —"então disse elle, erguendo as mãos ao ceo"— que ventura, podel-o salvar!

O homem que assim fallava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar vinte e cinco annos, e que ria franca expressão de sua physionomia deixava adivinhar toda a nobresa de um coração bem formado. O sangue africano fervia-lhe nas veias; o misero ligava-se á odiosa cadeia da escravidão; e em balde o sangue ardente que herdara de seus paes, e que o nosso clima e a servidão não poderam resfriar, embalde — disemos — se revoltava; porque se lhe erguia como barreira — o poder do forte contra o fraco!...

Elle entanto resignava-se; e se uma lagrima a desesperação lhe arrancava, escondia-a no fundo da sua miseria.

Assim é que o triste escravo arrasta a vida de desgostos e de martyrios, sem esperança e sem gozos!

Oh! esperança! Só a tem os desgraçados no refugio que a todos offerece a sepultura!.. Gózos!.. só na eternidade os antevem elles!

Coitado do escravo! nem o direito de arrancar do imo peito um queixume de amargurada dôr!!.....

Senhor Deos! quando calará no peito do homem a tua sublime maxima — ama a teu proximo como a ti mesmo —, e deixará de opprimir com tam reprehensivel injustiça ao seu simelhante!.. a aquelle que é seu irmão?!

E o misero soffria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deos lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como a sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seo coração interneceo-se em presença da dolorosa scena, que se lhe offereceo á vista.

Reunindo todas as suas forças o joven escravo arrancou de sob o pé ulcerado do desconhecido o cavallo morto, e deixando-o por um momento, correo á fonte para onde uma hora antes de dirigia, encheo o cantaro, e com extrema velocidade voltou para junto do enfermo, que com desvelado interesse procurou reanimar. Banhou-lhe a fronte com agua fresca, depois de ter com piedosa bondade collocado-lhe a cabeça sobre seos joelhos. Só Deos testemunhava aquella scena tocante e admiravel, tam cheia de unção e de caridoso desvelo! E elle continuava a sua obra de piedade, esperando ancioso a resurreição do desconhecido, que tanto o interessava.

Finalmente seo coração pulsou de intima satisfação; porque o mancebo, pouco e pouco revocando a vida, abrio os olhos languidos pela dôr, e os fitou n'elle, como que estupefacto e surpreso do que via.

Deixou fugir um breve suspiro, que talvez apesar seo se lhe destacasse do coração, e sem proferir uma palavra de novo serrou os olhos.

Talvez a extrema claridade do dia os affectasse; ou elle suppozesse morbida vião o que era realidade.

Entretanto o negro redobrava de cuidados de novo afflicto pela mudez do seu doente. E o dia crescia mais, e o sol, requeimando a herva do campo, abrasava as faces pallidas do joven cavalleiro, que soltando um outro gemido mais prolongado e mais doido, de novo abrio os olhos.

Tentou então erguer-se como invergonhado de uma fraqueza a que irremessivelmente qualquer cedera; porem desalentado e amortecido foi cahir nos braços do compassivo escravo, unica testemunha de tão longas dores e desmaios, e que em silencio o observava. Mas esta segunda syncope, menos prolongada que a primeira, não affligio tanto ao mísero rapaz, que dedicadamente o reanimava. A febre começou a tingir de rubor aquella fronte pallida, dando vida ficticia a uns olhos, que um momento antes pareciam descahir para o tumulo.

— Quem és? —"perguntou o mancebo ao escravo apenas sahido do seo lethargo."— Porque assim mostras interessar-te por mim?!...

— Senhor! —"balbuciou o negro"— vosso estado.. Eu —"continuou com acanhamento, que a escravidão gerava"— supposto nenhum serviço vos possa prestar, todavia quisera poder ser-vos util. Perdoae-me!...

— Eu? —"atalhou o cavalleiro com effusão de reconhecimento —"eu perdoar-te! Podera todos os corações assimelharem-se ao teo. E fitando-o apesar da perturbação do seo cerebro, sentio pelo joven negro interesse igual talvez ao que este sentia por elle. Então n'esse breve cambiar de vistas, como que essas duas almas mutuamente se fallaram, exprimindo uma o pensamento apenas vago que na outra errava.

Entretanto o pobre negro, fiel ao humilde habito do escravo, com os braços cruzados sobre o peito, descahia agora a vista para a terra, aguardadando timido uma nova interrogação.

Apesar da febre, que despontava, o cavalleiro começava a coordenar suas ideias, e as expressões do escravo, e os serviços, que lhe prestara, tocaram-lhe o mais fundo do coração. É que em seo coração ardiam sentimentos tam nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro: por isso n'um transporte de intima e generosa gratidão o mancebo arrancando a luva, que lhe calçava a destra, estendeo a mão ao homem que o salvara. Mas este confundido e porplexo, religiosamente ajoelhando, tomou respeitoso e reconhecido essa alva mão, que o mais elevado requinte de delicadesa lhe offerecia, e com humildade tocante extasiado beijou-a.

Esse beijo sellou para sempre a mutua amisade que em seus peitos sentiam elles nascer e vigorar. As almas generosas são sempre irmans.

— Não foste por ventura o meo salvador?"— perguntou o cavalleiro com accento reconhecido, retirando dos labios do negro a mão, e máo grado a visivel turbação deste apertando-lhe com transporte a mão grosseira; mas onde descobria com satisfação lealdade, e puresa.

— Meo amigo —"continuou"— podes acreditar no meo reconhecimento, e na minha amizade. Quem quer que sejas, eu t'a prometto: sou para ti um desconhecido; e inda assim foste generoso, e desinterressado. Arrancando-me á morte tens desempenhado a mais nobre missão de que o homem está imcumbido por Deos — a fraternidade. Continua, agora peço-te em nome da amizade que te consagro, continua a tua obra de generosidade; porque sinto que tenho febre, e não me posso erguer. Arreda-me destes lugares se te é possível; porque... E a voz, que era fraca, expirou nos labios; porque ligeira vertigem precursora talvez de um mais prolongado soffrer de novo lhe offuscou a vista, e as faculdades se lhe afracaram.

A febre tornára-se ardente, e o mancebo exigia mais serios cuidados.

O negrou bem o comprehendeo, e esperou ancioso que o mancebo voltasse a si para fallar-lhe, e aproveitando um momento em que por um pouco se reanimara, disse-lhe:

— Meu senhor, permitti que vos leve á fasenda, que ali vedes — e apontava para a outra extremidade do campo —, ali habita com sua filha unica a pobre senhora Luiza B... de quem talvez não ignoreis a triste vida. Essa infeliz paralytica todo o bem que vos poderá prestar limitar-se-ha a uma franca e generosa hospitalidade; mas ahi está sua filha, que é um anjo de bellesa e de candura, e os desvelos, que infelizmente vos não posso prestar, dar-vo-los-ha ella com singular bondade.

Immerso entanto em novo scismar o mancebo parecia nada ouvir do que lhe dizia o joven negro, deixando-se conduzir por elle, que como se fôra leve carga o levava sobre seos hombros nus e musculosos.

Foi um momento de meditação, a febre, a dor, e o movimento arrancaram-na a ella, e soltando um frouxo suspiro perguntou ao seo conductor:

— Como te chamas, generoso amigo? Qual é a tua condicção?

— Eu, meo senhor —"tornou-lhe o escravo, redobrando suas forças para não mostrar cançasso"— chamo-me Tulio.

— Tulio! —"repetio o cavalleiro"— e de novo interrogou:

— A tua condicção, Tulio?

Então o pobre e generoso rapaz engulindo um suspiro magoado, respondeu com amargura, máo grado seo, mal disfarçada:

— A minha condição é a de misero escravo! Meu senhor —"continou"— não me chameis amigo. Calculastes já, sondastes vós a distancia que nos separa? Ah! o escravo é tão infeliz!... tão mesquinha, e rasteira é a sua sorte, que...

— Calla-te, oh! pelo céo, calla-te, meo pobre Tulio —"interrompeo o joven cavalleiro"— dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos. Tulio, meo amigo, eu avalio a grandesa de dores sem lenitivo, que te borbulha na alma, comprehendo tua amargura, e amaldiçoo em teu nome ao primeiro homem que escravisou a seo semelhante. Sim —"proseguio"— tens razão; o branco desdenhou a generosidade do negro, e cuspio sobre a pureza dos seus sentimentos! Sim, acerbo deve ser o meu soffrer, e elles que o não comprehendem!! Mas, Tulio, espera; porque Deos não desdenha aquelle que ama ao seu proximo... e eu te auguro um melhor futuro. E te dedicaste por mim! oh! quanto me has penhorado! se eu te podera compensar generosamente... Tulio — acrescentou apóz breve pausa — oh dize, dize, meu amigo, o que de mim exiges; porque toda a recompensa será mesquinha para tamanho serviço.

— Ah! meo senhor. —"exclamou o escravo enternecido"— como sois bom! continuai, eu vol-o supplico, em nome do serviço que vos presto, e a que tanta importancia quereis dár, continuai, pelo céo, a ser generoso, e compassivo para com todo aquelle que, como eu, tiver a desventura de ser vil e miseravel escravo! Costumados como estamos ao rigoroso despreso dos brancos, quanto nos será doce vos encontrarmos no meio das nossas dores! Se todos elles, meu senhor, se assemelhassem a vós, por certo mais suave nos seria a escravidão.

E o cavalleiro perguntou-lhe:

— Essa é, Tulio, toda a recompensa que exiges?

— Sim, meo senhor. Fizeste-me tão feliz, que nada mais ambiciono; e rendendo a Deos graças pela minha presente ventura, supplico-lhe que vos cubra de benções, e que véle sobre vós a sua bondade infinita.

E o negro dizia uma verdade; era o primeiro branco que tão doces palavras lhe havia dirigido; e su'alma avida de uma outra alma que a comprehendesse, transbordava agora de felicidade e de reconhecimento.

Pobre Tulio!

E o mancebo sentia mais, e mais crescer-lhe as dores, e as ideias se lhe barulhavam: entretanto Tulio aproximava-se da casa de sua senhora para onde conduzia o moço enfermo.

Empregava para isso todas as suas forças, porque conhecia que o moço soffria cruelmente.

Dentro em pouco sua tarefa concluiu-se. Tulio penetrou, rendido de cançasso, o lumiar da porta.

Simples e solitaria era essa casa implantada sobre um pequeno outeiro, donde a vista dominava a immensidade dos campos. Um aspecto de nobre singelesa apresentava; pouco extensa era mas coroava-a agradavel mirante, orlado de largas varandas, por onde uma onda de ar tepido divagava remorejando.

Explendida claridade de um sol vivo e animador illuminava as nuas e brancas paredes dessa placida morada, e dardejando nas vidraças das janellas, reflectia sobre ellas as cores cambiantes do occaso. Ahi parecia gozar-se a vida; ahi ao menos o homem terá um momento de felicidade; porque longe do bulicio enganoso do mundo, co'a mente erma d'ambições, vive nas regiões sublimes de um pensar livre e infinito como a amplidão — como Deus. A existencia é serena, mais pura, e mais formosa; — ahi despe-se a vaidade do coração; — ahi cessam os mentirosos preconceitos, que o homem ergueo em seu orgulho— vergoonhosos limites contras os quaes vão quebrasr-se de encontro os virtuosos transportes do seu coração.

Quanto é o homem egoista e vão!...

Tulio franqueou a entrada da casa de Luiza B... no momento mesmo em que o joven desconhecido, alquebrado pelo muito soffrer de algumas horas, acabava de cahir em completa e profunda lethargia.


II

O DELIRIO

Violenta, terrivel, espantosa tinha sido a crise, e Tulio velava á cabeceira do enfermo. A noite ha muito que tinha desdobrado sobre a terra seo pesado manto de escuridão, animando dest'arte o profundo silencio dos bosques, apenas interrompido pelo roçar do vento nos longiquos bosques, apenas interrompido pelo roçar do vento nos longiquos palmares, ou pelo gemido triste de sentido noitibó, ou os agoureiros pios do acahuan.

O quarto do doente era apenas aclarado por fraca luz, cuja baça claridade deixava comtudo ver-se o rosto do mancebo, afogueado pelo requeimar da febre: os olhos tinha-nos elle dilatados, e com esse brilho e movimento que só dão a febre. No entanto estava tranquilo, e um só gemido não se lhe ouvia.

Após um breve instante desse ficticio socego, entrou a tremer-lhe o labio superior, ergueo as mãos ambas para o céo, e volvendo-se no leito, murmurou com vóz queixosa frases que não foram comprehendias.

— Eu a vi —"exclamou, erguendo a voz, num transporte de satisfação"— vi-a, era bella como a rosa a desabrochar, e em sua puresa simelhava-se a assucena candida e vaporosa! E eu amei-a!... Maldição!.... não... nunca a amei... E calou-se.

Depois um gemido lhe veio do coração; cobrio os olhos com as mãos ambas, e repetio:

— Oh! Não, nunca a amei !.....

Seguiram-se palavras entrecortadas, gemidos, e gesticulações desordenadas para ao depois cahir em inercia.

Era o delirio assustador que se manifestava !..

Tulio observava-o com angustia: as dores do mancebo sentia-as elle no coração.

A lua hia já alta na azulada abobada, prateando o cume das arvores, e a superficie da terra, e apesar disso Ursula, a mimosa filha de Luiza B..., a flor d'aquellas solidões, não adormecera um instante. É que afora esse anjo de sublime doçura repartia com seo hospede os diuturnos cuidados, que dava a sua mãe enferma; e assim duplicadas as suas occupações sentia fugir-lhe n'essa noite o somno.

Bella como o primeiro raio de esperança transpunha ella a essa hora magica da noite o lumiar da porta, em cuja camara debatia-se entre dores e violenta febre o pobre enfermo.

Era ella tão caridosa... tão bella... e tanta compaixão lhe inspirava o soffrimento alheio, que lagrimas de tristesa e de sincero pesar se lhe escaparam dos olhos, negros, formosos, e melancolicos. Ursula, com a timidez da corsa vinha desempenhar á cabeceira desse leito de dores os cuidados, que exigia o penoso estado do desconhecido.

Nenhuma exageração havia nesse piedoso desempenho; porque Ursula era ingenua e singela em todas as suas acções; e porque esse interesse todo caridoso, o mancebo não podia avalial-o, tendo as faculdades trantornadas pela molestia. Este sentimento era pois natural em seu coração, e a donzella não se invergonhava de o patentear.

— Tulio, —"disse ao entrar"— como vai elle? Toda a resposta do escravo foi um suspiro de profundo desanimo.

Ursula chegou-se ao leito do enfermo, e com timidez, que a sua compaixão quasi destruia, tocou-lhe as mãos. As suas gelaram de desalento e de commoção; porque sentio as do doente ardentes como a larva de um volcão.

Então ao contacto dessa debeis mãos, que tocara a sua, o cavalleiro abrio os olhos, a que um delirio febril dava extranha expressão, e fitando a donzella, n'um transporte indefinivel do mais intimo soffrer, exclamou com voz magoada e grave:

— Oh! pelo céo! anjo ou mulher! porque trocaste em absynthio a doçura do meo amor? Amor!.. Amei-te eu? Sim, e muito. Mas tu nunca o comprehendeste! Louco! louco que eu fui!.... E pasando da dôr á desesperação, torcia os braços gritando:

— Eu te vi, mulher infame e desdenhosa, fria e impassivel como a estatua! — inexoravel como o inferno!... Assassina!... Oh! eu te amaldiçôo... e ao dia primeiro do meo amor!... Minha mãe!... minha pobre mãe!!... entrou a soluçar desesperadamente.

Ursula e Tulio estavam perplexos; estas palavras sem nexo produsiam em seos corações sensações, supposto que em ambos doidas, mas diversas em sua naturesa.

A Tulio parecia aquelle delirio precursor da morte, e a dor da perda de um amigo, o primeiro talvez que o céo lhe dera, absorvia-lhe todas as faculdades, e para tão grande pesar não tinha prantos, não tinha uma só palavra. Ursula, pelo contrario, sentia extranho desaçocego, um que, que não sabia definir a si propria! Uma inquietação mortal, uma desconfiança, e as lagrimas brotavam-lhe espontaneas do coração.

— Adelaide! —"proseguio elle apoz longa pausa"— Adelaide!..... Este nome queima-me os beiços; enloqueço quando penso n'ella.

— Adelaide!... repetio comsigo mesma a filha de Luiza B... Oh! quem serás?!....

O que é a naturesa humana! O que é o coração da mulher! A Ursula, pobre flor do deserto, que importava um nome proferido em delirio?

Essa mulher, essa Adelaide, parecia-lhe que muito interessava ao mancebo, que ainda agora lhe vivia no coração máo grado as palavras amargas, ou entranhadas de desesperaçao, que lhe cahiam dos labios ao lembrar-se della. Essa mulher, figurava-se-lhe bella como um anjo, seductora como uma fada, maligna como um demonio, e entretanto amada, muito amada; e o seu nome lhe queimava o coração, como se lá estivesse escripto com lettras de fogo.

E ha-de elle amal-a? — repetia Ursula a si propria com uma pertinacia, que a teria admirado, se nisso podesse attentar. Amor! — proseguia — o que é amor? Creio que jamais amarei. Mas Adelaide deve ser muita amada por elle... mas eu o ouvi amaldiçoal-a!.... Porque diz que lhe queima os beiços o seo nome? Oh! não é possivel, elle já não a ama! E Ursula, perdida n'estes loucos pensamentos, não attendia ao que em torno de si havia.

O doente tinha adormecido.

Então ella voltou para junto de sua mãe. A pobre senhora, vencida pelo muito soffrer, tinha tambem adormecido, e a menina reclinando-se em uma cadeira, procurou, mas em balde, conciliar o somno, que n'essa noite parecia obstinado em fugir-lhe.

Em vão deixava cahir as palpebras; em vão tentava arredar os pensamento do que ouvira, que a mente errava em torno d'aquelle leito, d'onde ella se se destacara; e o coração dizia-lhe que não estava tranquillo. Entretanto, pobre Ursula, julgava que nunca havia de amar!....

Mais tarde um gemido sahio da camara do doente; o coração doeo-lhe; porque se tinha esquecido até do remedio do enfermo: lenvantou-se, pois correndo, e o foi levar.

A hora tinha já passado; poremo calmante produzio salutar effeito; porque ao returar-se-lhe a colher dos labios, o cavalleiro, deslisando um fraco sorriso, estendeo a mão á donzella, e disse-lhe com reconhecimento:

— Ah! senhora, como sois boa! Quem quer que sejais, acceitai meus sinceros agradecimentos pelo generoso interesse, que mostrais por um infeliz desconhecido.

— Silencio, —"animou-se ella a dizer, corando muito"— não vedes que tendes febre? Perdoai-me; mas eu não consinto que falleis.

— Oh! —"exclamou elle"— tanta bondade me confunde. Deixai ao menos agradecer-vos; mais tarde submetter-me-hei com gosto as vossas determinações.

— Agradecer-me? —"interrogou Ursula com voz um pouco commovida"— que vos hei eu feito que mereça vosso reconhecimento? Pelo céo, nem falleis n'isso; e em seus grandes olhos erro uma lagrima.

Não sei que sentimento a trouxe do coração aos olhos; mas fosse qual fosse, o que é verdade, é que a lagrima, simelhando uma perola escapada a precioso collar, rolou-lhe pelas faces e foi cahir sobre a mão do enfermo.

Ella estremeceo involuntariamente, e um rubor subitaneo, que ocultou com as mãos, lhe assomou ás faces.

Mas os olhos do cavalleiro, rehavendo seo fulgor febril, não viram essa lagrima, que lhe teria escaldado a mão, nem esse innocente rubor tão expressivo; porque começara um novo solliloquio.

— Sim —"dizia"— e não era feliz em possuil-a? — Que ! — Oh! foi um só dia... foi. Mas, minha mãe!... via-a no sepulcro! e ella era um anjo!... Mataram-na!... mataram-na!...

E estendia os braços, e sorria-se como afagando benefica vizão.

— Agora posso viver —"disse respirando largamente"— sim, agora posso viver; porque já a não amo: sim, já não amo aquella que trahio cruelmente minhas loucas esperanças.

— Não vedes? —"proseguio fitando Ursula"— como é bello amar-se! Como se nos espande o coração, como nos transborda a alma de felicidade?!!...

E a moça dizia consigo —"Meo Deos ! meo Deos, que é o que eu sinto no coração que me internece? Deve ser sem duvida esta forçada vigilia, este lidar de todos os momentos. O estado de minha pobre mãe... a compaixão que me inspira este infeliz mancebo, tão proximo talvez da morte!... Oh! terrivel idéa! A morte! É elle tão joven... tão leal, e tão franca é a sua physionomia... meu Deos! seria bem duro vel-o morrer! Poupae-o, Senhor. Se eu podesse, duplicára os meos cuidados para salval-o! oh se eu podesse!..."

O enfermo entrou a sorrir-se; a febre começava a declinar. Ao delirio violento seguio-se placida hallucinação: — parecia que um mundo de gratas illusões, povoado de meigos seres, o afagava; estendia os braços como para estreitar entes que lhe eram caros e o rosto se lhe espandia suavemente.

Depois sua mão tocou uma mão alva, e tremula, e gelada: esta mão, que elle em seo delirio procurou com ardor levar aos labios, fugio-lhe medrosa ao contacto desse beijo de fogo.

— Attende-me —"exclamou com desalento"— não fujas... tenho a contar-te uma historia bem triste! oh! bem triste!...

E estendia as mãos supplices, e já nada encontrava.

Tulio contemplava-o silencioso até que por ultimo exclamou:

— Homem generoso! unico que soubeste comprehender a amargura do escravo!... Tu que não esmagaste com despreso a quem traz na fronte estampado o ferrete da infamia! Porque o africano seu semelhante disse: — és meo! — elle curvou a fronte, e humilde, rastejando qual herva, que se calcou aos pés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que é livre, tem segura em suas mãos ambas a cadeia, que lhe opprime os pulsos. Cadeia infame e rigorosa, a que chamam: — escravidão?!... E entretanto este tambem era livre, livre como o passaro, como o ar; porque no seo paiz não se é escravo. Elle escuta a nenia plangente de seu pae, escuta a canção sentida que cahe dos labios de sua mãe, e sente como elles, que é livre; porque a rasão lh'o diz, e alma o comprehende. Oh! a mente! isso sim ninguem a pode escravisar! Nas azas do pensamento o homem remonta-se aos ardentes sertões da Africa, vê os areaes sem fim da patria e procura abrigar-se debaixo d'aquellas arvores sombrias do oasis, quando o sol requeima e o vento sopra quente e abrasador: vê a tamareira benefica junto á fonte, que lhe amacia a garganta resequida; vê a cabana onde nascera, e onde livre vivera! Desperta porem em breve d'essa doce illusão, ou antes sonho em que e engolphára, e a realidade oppressora lhe apparece — é escravo e escravo em terra estranha! Fogem-lhe os areaes ardentes, as sombras projectadas pelas arvores, o oasis no deserto, a fonte e a tamareira — foge a tranquillidade da choupana, foge a doce illusão de um momento, como ilha movediça; poruqe a alma está incerrada nas prisões do corpo! Ella chama-o para a realidade, chorando, e o seo chôro, só Deos comprehende! Ella, não se pode dôbrar, nem lhe pesam as cadeias da escravidão; porque é sempre livre, mas o corpo geme, e ella soffre, e chora; porque está ligada a elle na vida por laços estreitos e mysteriosos.

E Tulio ficou pensativo, e as lagrimas cahiram, a seu pesar, fio por fio pela face a baixo.

Tinha no entanto terminado o delirio ao doente: seguio-se-lhe extrema prostação e um suor geral e frio.

Ursula e Tulio tiveram então uma só idéa, terrivel e medonha — a morte! e estremeceram de dôr. O escravo; porque este homem era agora a vida da sua alma; porque era a imagem de Deos, que lhe sorria: — a donzella porque?... Ella propria não no saberia dizer. Mas ambos sentiam iguaes temores, afflições iguaes: é então porque ambos o amavam.

E as noites, que succederam a esta, eram ainda povoadas de sustos e anciedade: o mancebo continuava a soffrer, e seus amigos redobravam de desvelos, e choravam sobre suas dores.

O cavalleiro via-os; escutava-os, e sentia lá no fundo d'alma um extranho sentir. Ursula tornara-se para elle a imagem vaporrosa e afagadora de um anjo: e o que se passava n'aquelle coração enfermo só elle o sabia.


III

A DECLARAÇÃO DE AMOR

Muitos dias se passaram já, e Tulio, menos preocupado, mostrava-se feliz e communicativo. Luisa B... o tinha incumbido do serviço exclusivo do seo hospede, que começava a recobrar as forças, o que elle attribuia aos cuidados do joven negro, e da formosa donzella, e ao ár puro que ali respirava. Com effeito elle hia a melhor, e cada dia dava esperanças de proxima convalescença. Aprasia-se com essa noticia a boa senhora Luiza B...; mas a encantadora Ursula, melancolica, e mais bella que nunca, sentia um indefinivel pesar ao lembrar-se que em breve volveria para o seu antigo exulamento, e ainda maior que d'antes: o cavalleiro fallava de sua proxima partida.

Tulio acompanhava-o.

Tinha-se alforriado. O generoso mancebo assim que entrou em cavalescença dera-lhe dinheiro correspondente ao seu valor como genero, dizendo-lhe:

— Recebe, meo amigo, este pequeno presente que te faço, e compra com elle a tua liberdade.

Tulio obteve pois por dinheiro aquillo que Deus lhe dera, como a todos os viventes — Era livre como o ar, como o haviam sido seos paes, la nesses adustos sertões da Africa; e como se fora a sombra do seo joven protector estava disposto a seguil-o por toda a parte. Agora Tulio daria todo o seo sangue para poupar ao mancebo uma dôr sequer, o mais leve pesar; a sua gratidão não conhecia limites. A liberdade era tudo quanto Tulio aspirava; tinha-a — era feliz!

E Ursula invejava vagamente a sorte de Tulio e achava mór ventura do que a liberdade poder elle acompanhar o cavalleiro.

Pobre menina! Toda entregue a uma preocupação, cuja causa não podia conhecer ainda, engolphava-se de dia para dia em mais profunda tristesa, que lhe tingia de seductora pallidez as frescas rosas de sua faces avelludadas. Pouco e pouco desbotava-se-lhe o carmim dos labios e os olhos perdiam seos vividos reflexos, sem que nem ella propria desse fé d'essa transformalção!

Alguem havia, porem, que reparava nessa mudança, que o coração já lh'o havia denunciado, fasendo-lhe vibrar nas suas cordas todos os sympathicos efluvios que emanavam do peito candido e descuidoso da virgem. Esse alguem amava a pallidez de Ursula, esse alguem adorava-lhe a suave melancholia, e o doce langor de seos negros olhos. Mas ella nem sequer descubrira tal, não sabendo explicar na sua innocencia o que sentia.

À proporção que se adiantavam as melhoras do seo hospede, Ursula com precaução occulatava-se ás suas vistas, limitando-se unicamente a informar-se com Tulio da sua saude, e empregando as horas de seo mortal enfado no generoso desempenho de sua filial sollicitude.

Dias inteiros estava a cabeceira do leito de sua mãe, procurando com ternura roubar á pobre senhora os momentos d'angustiada afflição: mas tudo em vão porque seo mal progredia, e a morte se lhe aproximava a passo lento e impassivel; porem firme e invariavel.

A noite, após compridas horas de vigilia ao pé desse leito materno, onde ella consumia seos primeiros annos de joventude, a donzella, recolhida em seu gabinete, meditava profundamente. Ella antes tão descuidosa, ella no arrebol da vida, no primeiro despontar da existencia, tão bella, tão pura, tão ingeenua e tão louçan; porque sentia esse desejo irresistivel de engolphar-se em tristes pensamentos, que davam-lhe a um tempo praser e pena?! Onde a levava o ardor da mente? Ursula, interrogada, mal o saberia dizer.

E as noites, tornavam-se para ella longas e fatigantes; porque o somno não lhe abreviava as horas do scismar acerbo, nem lhe reparava as forças, e por isso a aparição da aurora era-lhe quasi uma felicidade.

Á hora em que os possaros despertam alegres e amorosos, em que o vento mais queixoso cicia por entre as franças das arvores, em que a relva, orvalhada pela noite, ergue suas folhinhas mais verdes e mais bellas, á essa hora magica em que toda a creação louva ao Senhor, e que o coração sente que nasceo para amar, a donzella, procurando fugir a suas meditações, sahia a respirar a puresada aragem matutina.

Quantas vezes ella sentada sobre a relva, ou recostada a algum tronco colossal, que decepado e meio combusto brada contra a barbaria e rotina da nossa lavoura semi-selvatica, via despontar o sol por sob a orla azul dos horisontes, espalhando com seos raios de fogo a luz por toda a parte e destruindo como por encantamento a neblina, que qual denso veo encobria aos olhos madrugadores toda aquella paisagem!!..

Ahi de novo entregue a seos pensamentos Ursula perguntava a si propria a causa de seos soffrimentos, e as vezes chegava a persuadir-se que seo fim estava proximo, e sorria-se. Pobre menina!....

Quando o sol tingia de côr dourada os cocares das palmeiras, ella voltava ao lar materno para continuar a desempenhar a penosa tarefa de que se havia incumbido. E a pobre mãe exultava de vel-a tão meiga, tão generosa, e tão compassiva.

Ninguem em casa sabia dos seos passeios matinaes, e ninguem os adevinhava, e por isso esperava com ancia o romper do dia: e a hora em que a naturesa desperta, só, e sem temor, tomava o caminho, que bem lhe convinha, e hia conversar com a solidão, essa conversa, que só Deos comprehende, e quando voltava achava-se mais aliviada.

Ursula enganava-se — cada dia mais se aggravavam seos males.

E o cavalleiro, quasi que inteiramente restabelecido, apenas resentindo-se algum tanto do pé, despunha-se com effeito para a partida; e em seo coração haviam bem profundas saudades; porque nessa habitação encontrara vida e acolhimento. Ahi alguem lhe prendera o coração, e o mancebo, cheio de amor e de gratidão, sentia deslisarem-se-lhe os dias breves e risonhos. Entretanto a sua partida era infalivel; mas elle não podia affastar-se d'aquelles lugares sem ter uma explicação. Era preciso ver Ursula, e Ursula fugia-lhe como a caça foge ao caçador. E o dia passava, e vinha a noite, e succedia-se outro, e mais outro dia, e o moço dilatava a sua viagem.

Em uma madrugada, comtudo, após uma noite de atribulada vigilia, mais cedo ainda que de costume a mimosa donsela entranhou-se por acaso no mais espesso da matta, onde não bulia a mais pequena folha, e onde apenas o reflexo do sol nascente penetrava a custo. Divagando por ella sem tino, vencida pelo cançasso sentou-se, ou deixou-se cahir sobre as raises de um jatubá, cuja altura chamaria a attenção de outra que não fôra Ursula, de outra que não sentira, como ella, o coração opprimido por mortal desaçocego. Este jatubá, sobre cujas raises Ursula se deixara cahir, parecia em annos rivalisar com a creação; sua copa altaneira, balançando-se no espaço, derramava grata sombra em larga distancia. Ahi em seu tronco a naturesa, melhor que um habil artista, entalhára em deredor espaçosos degráos; como outros tantos assentos preparados para descanço dos que á sua sombra buscassem uma hora de repouso, ou de meditativo scismar.

Ursula sentou-se sem o menor reparo n'um desses degráos, e continuou nos seos pensamentos loucos, ou talvez innocentes como a sua alma; más profundos, penosos para ella, que pela vez primeira sentia a necessidade de uma alma, que comprehendesse a sua, de um pensamento que se harmonisasse como o seo.

Mas amava ella a alguem? Ao cavalleiro? Talvez! Ursula sentia uma vaga necessidade de ser amada, de amar mesmo; mas em quem empregar esse amor, que devia ser puro como a luz do dia, ardente como o fogo de madeira resinosa?! Em quem?! Não o sabia ainda.

Ursula, máo grado seo, experimentava todo o fogo de um primeiro amor, bem o conhecia, e revoltava-se contra esse sentimento, que suppunha não ser compartilhado, e altribuia-o a simples amisade. Embalde o coração lhe gritava, esclarecendo-a, ella julgava-se humilhada, reassumia toda a sua dignidade em face do cavalleiro, e só na solidão derramava o pranto de amargo e occulto padecer.

Entretanto, n'essa madrugada em que Ursula, ferida pela mais profunda angustia, sentára-se junto ao altivo jatubá que ficava cavalleiro ás demais arvores, pensava em que o mancebo hia n'esse mesmo dia partir, e esse pensamento era-lhe como o leito de Procusto,* e o coração desfalecia-lhe de dor, a vida parecia-lhe agora inutil e fastidiosa.

Sentio leve arruido de folhas seccas como que calcadas sob os pés que se moviam cautelosos, e despertou. E o arruido não cessou. Então a joven donzella, meio asustada levantou os olhos, e prescrutou em deredor; mas nada viu. Seria talvez alguma fugaz cutia que atravessa o bosque correndo. Então Ursula de novo voltou aos seus sonhos; mas um momento depois os passos eram já mais proximos, ella tornou o olhar, e mais amedrontada, quiz erguer-se, quiz sahir correndo; porem uma força occulta, irresistivel, a deteve, e os passos mui perto estavam d'ella. Ursula, temerosa, e sem poder atinar com quem seria, estremeceu, mas não de verdadeiro medo, antes por um presentimento imcomprehensivel e que as vezes presagia vagamente algum acontecimento futuro da nossa vida. Ursula tudo ignorava; mas alguem com intima satisfação descobrio seos passios matinaes, alguem, que sentia a necessidade de vel-a, de fallar-lhe um momento, e que devassou-lhe o retiro e foi perturbal-a em sua meditação.

E de repente ella ouvio uma vóz, que a essa hora do amanhecer, n'esse lugar, onde se julgava só, a surprehendeo, assustou-a, e lhe arrancou um grito.

— Ursula! —"dizia-lhe a pessoa que estava ante seus olhos"— Ursula, perdoar-me-heis?

— Oh! pelo céo, Senhor! —"exclamou a moça a tremer"— que viestes aqui fazer?!

E levantou-se resolvida a deixal-o, castigando assim tanta ouzadia. O mancebo, antevendo a sua resolução, caiu-lhe aos pés e supplicante, disse-lhe:

— Oh! não, não, Ursula, por amor de vossa mãe, não me deixeis sem ouvir-me. E tanta singelsa havia n'estas palavras, e tanta expresão nos olhos do mancebo, que a donzella estacou indecisa e confusa.

Era o cavalleiro convalescente o homem que assim fallava, como o leitor perspicaz tel-o-ha já adevinhado.

Nesse momento tão solemne para Ursula, sentio profundo arrependimento de seus passeios da olvorada, e rapido pela mente repassou todos os ultimos actos de sua vida, sem atinar com o motivo que a levou tam longe de sua morada, e a um bosque que nunca vira, e porque fatalidade aquelle homem a viera ahi surprehender.

Ursula, amando vel-o, arrependia-se, e quasi que maldizia o sentimento de seo coração, que a obrigára a hir tão longe, e ater, a seu pesar, aquella entrevista que tanto começava a inquietal-a, e lembrando-se de sua mãe, que tudo ignorava, exprobava-se a si acremente de tam leve procedimento.

— Ursula —"continuou o mancebo, reconhecendo sua perturbação"— Ursula, mimosa filha da floresta, flor êducada da tranquillidade dos campos, porque tremeis de me ouvir a voz?! Julgaes acaso que vos possam offender as minhas palavras?! Socegae, em nome do céo, Ursula, socegae!.... Donzella! eu vos juro, que sou leal, e que o respeito que vos consagro, e de que sois digna, nem o silencio deste bosque, nem a solidão do lugar o quebrará jamais.

O que sinto por vós —"continuou commovido"— é veneração, e a mulher a que se venera, rende-se um culto de respeitosa adoração, ama-se sem desejos, e n'esse amor não entra a satisfação dos sentidos.

— Ursula, —"proseguio com vóz que inspirava confiança"— comprehendo, e avalio a perturbação em que vos achais; porque é innocente e pura vossa alma; mas se me escutardes, se vos dignardes ouvir-me, conhecereis que tambem puras são as minhas intensões, e que o amor que inspirastes é candido como a vossa alma.

Então Ursula erguendo as mãos com afflição disse:

— Oh! senhor, por quem sois, deixae-me voltar agora mesmo para ao pé de minha mãe! —"e deo um passo; mas esse passo foi vagaroso e tremulo, e o mancebo electrisado, encantado por essa candida timidez, que revelava a mais angelica puresa, correo para ella com indefinivel transporte, misturado de amorosa veneração, e docemente obrigando-a a sentar-se, curvou-se-lhe aos pés, e mudo, e contemplativo, e enlevado no rubor, que tingia as faces da donzella, guardou silencio por alguns instantes, e depois rompendo-o disse-lhe:

— Ursula, casto é o meo amor, e se o não fora, por premio de tanto desvelo e generosidade, não vol-o oferecera. No meo delirio, Ursula, não creis vós quem me aparecia, oh! não. Uma outra mulher eu via! Era terrivel essa visão infernal, e julguei morrer de desesperação; porque dia e noite ella, implacavel, desdenhosa, e fria estava ante meos olhos!.... Sim, julguei morrer; mas vós aparecestes junto ao meo leito, vi-vos, e as dores se amodorraram, e como se eu visse a Senhora dos Afflictos levando á minha cabeceira um dos anjos que a rodeam, e que lançou balsamo divinal em minhas feridas, que se cicatrisaram e o coração serenou, a alma ficou livre. Então a imagem odiosa, que me perseguia, desappareceo para sempre. Ursula, pude esquecel-a para sempre, sim! esquecel-a! e esquecer com ella não o amor que sentia; porque essa ha muito que me morreo no coração; mas o odio, o odio, que lhe votava.

A vossa bondade deo-me forças para esquecel-a, talvez mesmo para perdoal-a!....

— Eu tinha o coração dilacerado por cruentas dores, —"proseguio o moço, com voz pausada, apóz um momento de silencio"— e esse estado de penosa angustia occasionou a enfermidade que me deo a ventura de conhecer-vos, e se vos não houvesse visto, se prolongaria até o extremo da vida, que não poderia tardar. Vós, Ursula, apparecestes, e espancastes as trevas de tão apurado soffrimento — Fostes o meo anjo salvador. Ursula, eu vos amo! e se vossa alma sympatisar com a minha, meo coração vos tem escolhido para a companheira dos meos dias.

— Amais-me, Ursula?!....

Um subito rubor, melhor que a rosa, tingio as faces da delicada virgem, e ella baixando os olhos, disse-lhe:

— Talvez!... A vós era tão debil que semelhou o doce murmurio de queixoso ribeiro.

Mas em quanto os labios diziam simplesmente talvez, o coração desfeito em transportes de ineffaveis doçuras, sonhava as venturas do paraiso. E sua inquietação, e suas noites de vigilia, já não eram para ella um penoso mysterio, ou uma forçada dissimulação. — Ursula confessou a si mesma, que aquillo que sentira, era verdadeiro e ardente amor.

E Adelaide — essa mulher, esse nome proferido em delirio, que lhe apparecia em seus sonhos como uma visão que a encommodava, deixava d'agora em diante, de occupar-lhe o pensamento; porque o mancebo havia dito: — Esqueci-a, perdoei-a por amor de vós. Mas, inda assim, quem seria ella que tanto amor lhe tinha merecido?

Que lhe importava? Era feliz; porque era amada, e sua vida inteira teria dado por esse momento de ventura.

Amor! esse sentimento novo — ardente como o sól do seo paiz, arrebatador como as correntes, que se despenham no valle — foi a varinha magica que transformou-lhe a existencia. Julgou tudo um sonho encantador, cujas doçuras começava apenas a apreciar.

Extasiada e louca de amor, a donzella embalde procurava rehaver a rasão; e mais embalde procurava interrogar-se a si mesma, — quem seria aquelle homem, que assim attrahia o seu coração? poruqe este só lhe dizia: — amal-o é viver, e a vida assim vivida é a eternidade no gozo.

—Ursula, —"disse o mancebo, commovido, após de longo silencio"— devo-vos a fiel narração de minha vida. O homem, que vos ama, que vos idolatra, o homem que vos escolhe para sua esposa, não vosdeve occultar a minima particularidade da sua triste existencia; e depois que me tiverdes ouvido, depois que souberdesquem é o cavalleiro que tendes ao vosso lado, dai-lhe o vosso coração, dizei-lhe que o amais,e elle será uma vez feliz, uma só na vida; mas esta felicidade deve ser tão grande, que o seu passado cahirá para sempre em um abysmo de profundo esquecimento. Porem, Ursula, se me recusardes essa ventura, a unica que almejo, a minha vida tornar-se-ha um prolongado martyrio, e quem sabe se a poderei supportar!?....

— Oh! "exclamou a donzella com interesse"— pesa-vos acaso no coração tão pugente magua?!

— Sim —"tornou elle commovido"— sim, grande tem sido o meu soffrimento. Julguei, Ursula, nunca mais amar, e morrer amaldiçoando meo primeiro amor; mas eu vol-o disse já — vi-vos e meo coração cobrou nova vida, e novo amor curou-lhe as feridas, que o destruiam. Agora, decidireis da minha sorte: feliz, ou desgraçado, Ursula, só vós sereis o meu amor.

Então os olhos da donzella desferiram brilhantes reflexos de amor, e cedendo a um transporte de indefinivel enthusiasmo, exclamou:

— Sejais vós, senhor, quem quer que fordes, quaesquer que sejam os precedentes da vossa vida, que generosamente prometteis confiar-me, aqui, na solidão silenciosa e grave d'esta matta, onde só Deos nos ouve, onde só a naturesa nos contempla, juro-vos pela vida de minha mãe, que vos amarei agora e sempre, com toda a força de um amor puro e intenso, e que zombará de qualquer opposição donde quer que parta.

— Vós?! — Repetti-m'as, repetti-m'as ainda uma vez essasenebriantes palavras que transportam-me!

— Sim —"tornou ella, cujos olhos scintilavamcomo dous astros luminosos e diziam mais que os labios, e cujo coração arfava de amor e de felicidade"— sim juro-vos pelo céo, que nos escuta, que hei-de amar-vos sempre! Feliz, ou desgraçada, lembrai-vos que por amar-vos despresarei a vida.

— Oh! —"exclamou o joven convalescente"— eu agradeço-vos, meo Deos, de todo o meo coração!... É verdade então que para mim ainda pode haver felicidade?! Meo Deos, Senhor meo Deos, como sois bom!... "E olhava a donzella com inexprimivel transporte."

— Ursula —"proseguio"— vós me erguestes do abysmo da desesperação em que uma outra mulher me havia despenhado, e apagais da minha alma a derradeira lembrança do seo funesto amor!

E eu amei-a, Ursula, amei-a com todas as véras de um primeiro amor. Não vos pode offender esta confissão; porque esse amor tão apaixonado varreo-se da minha alma como a nodoa pela limpida agua da fonte crystalina.

Depois de tão longo e apurado soffrimento, depois de ter esgotado até as fezes o meo calix de amargura, votei ódio áquella que fora tão cara.

Excessivo era o meo affecto; mas ela quebrou-o, delio-o do meo coração, e hoje sinto por essa mulher fundo e inextinguivel despreso.

— Despreso?! —"continuou meditando sobre esta palavra"— sim despreso; mas o tempo e o meoo coração, e todas as minhas faculdades revoltadas contra o mais hediondo proceder dessa creatura infame foram que o trouxeram, e agora votava-lhe odio e maldição; mas taes sentimentos, tão pouco em harmonia com o meu ser, acabo de immolal-os ante os vossos pés, anjo bem-fadado!

— Cumpre quo vos confesse como o a amava.... "Aqui, recolheu-se a si, e fazendo um esforço sobre-humano, continuou." Oh! amava-a como o captivo ama a liberdade, como o ebrio o vicio que o mata; seguia-a como o colibri as flores, como a bussola o norte, como o fiel lebreu a seu dono: — era uma paixão que me prendia o coração e os sentidos — era um frenesi, um delirio proximo da loucura perenne. Tudo ella destruio em um momento como a creança o brinco, cujo valor não sabe!... Via-a na escuridade da noite, no cahir da tarde; via-a na herva do prado, no calix de uma flor, no firmamento entre as estrellas mais brilhantes, no arrulho amoroso das aves, no canto sentido da sororina..... Oh! sempre ella, sempre ella, sempre meiga e seductora, sempre apaixonada!

E eu gemia de amor, e de saudades, e amaldiçoando a separação; porque esse affecto, que me escaldava e se apossara de todo o meu ser, julgava-o egual e tam intenso no seu peito. Engano, engano fatal!....

— Ursula! agora todo esse amor, ou inda amor mais sublime, mais digno de vós nutreo o meo coração; agora poderei ter forças para contar-vos a historia da minha vida.

E depois de breve pausa, proseguio, suspirando:

— Quizera que o meu passado fugisse como a sombra de uma ave inquieta, ou como uma nuvem que o vendaval desfaz, para nunca mais invocal-o; porque é triste e pungente; mas é preciso pedir-lhe recordações, que me rasgarão de novo feridas mal cicatrisadas, para patentear-vos todas as minhas longas e profundas dores.

Rogo-vos, pois, que não tomeis a minha narração, quando tenha de ser apaixonada, como desejo do passado e saudades d'elle. Podeis amar-me sem receio de que elle perturbe o nosso mutuo affecto. Resentimento, odio, maldição, tudo, tudo hei sacrificado ao vosso amor.

Oh! de novo jurae-me que sois minha, que o vosso amor é egual ao meo, doce e mimosa Ursula, para que eu possa fallar-vos d'aquella que foi casta e pura como vós, d'aquella que foi minha mãe.

E a vóz tornou-se-lhe debil, e surda, e dolorosa, como um chôro sentido, que fica no coração e não vem aos olhos.


IV

A PRIMEIRA IMPRESSÃO

Lagrymas tinhas elle na voz, e no coração; que lha embargaram e o impediram de atar o fio da sua narração. Fez por ultimo um esforço sobre si e começou:

—Ursula, se eu vos não encontrara meiga, e desvelada, no caminhar de minha amarga existencia, odiosa me fora ella, e a recordação do passado seria para mim um prolongado martyrio.

O segredo de minhas dores seria para sempre sepultado no mais fundo do meo coração; mas eu vos amo, e o vosso amor da-me forças para tamanho sacrificio. Ouvi-me, pois, e perdoae-me.

Só apartei-me de minha mãe quando fui para San' Paulo cursar as aulas de direito, e seis annos de saudades ahi passei, tendo-a sempre em meos pensamentos; porque amava-a com uma ternura que só vós podeis comprehender. Num dia recebi o gráo de bacharel e n'outro segui para a minha terra natal.

Ah! como me transbordava a alma de praser! eu vinha rever aquella, que cercara de amor e de cuidados a minha infancia!

Affeição alguma me pode reter em San'Paulo; minha mãe, o lugar onde eu tive meo berço, meos amigos de infancia, não os podia esquecer. Parti pois com prazer d'uma terra onde tinha vivido longos annos de saudade, e de pesares.

E eu vi essa mulher, que me dera a vida, essa mulher, que era idolo do meu coração, e lancei-me nos seus braços, chorando de alegria por tornar a vel-a; mas ella estava desfeita, e suas feições denunciavam grande abatimento moral.

Nunca tive felicidade a que se não viesse misturar sentimentos de angustia; nunca fui completamente feliz.

— Sel-o-heis ainda —"disse-lhe a donzella com indefinivel ternura."

— Sim, agora o creio —"respondeo elle com confiança"— Vós, Ursula, sois a mulher com quem sonhava minha alma em seu continuo devanear.

— E juncto de minha pobre mãe —"continuou o cavalleiro, apoz breve silencio"— eu vi uma mulher bella e seductora, d'essas que enlouquecem desde a primeira vista.

No primeiro transporte d'alegria, em quanto minha mãe chorava de satisfação, ella com os olhos fitos em um bordado, que tinha entre as mãos, parecia destrahida; e eu revia-me na sua belleza tão pura como a estrella da manhan.

Oh! minha doce Ursula, eu amei a essa encantadora donzella, e o meo amor foi puro, arrebatador; mas ella não o comprehendeo.

— Meo filho —"disse-me minha mãe, apresentando-me a formosa donzella"— eis Adelaide, a minha querida Adelaide. É filha de minha prima, e orphan de mãe e pae. Recolhi-a e amo-a como se fora minha propria filha.

Tancredo —"continuou"— não poderei esperar de ti desvelada proteção para aquella que adoptei por filha, para quella que têm enchugado as lagrymas de tua mãe na auzencia de seu filho??!...

— Minha Ursula adorada, de joelhos prometti a minha infeliz mãe ser o escudo da formosa orphan.

Então ella em signal de reconhecimento, estendeo-me a mão, que apertei com enlevo. Creio que meos olhos exprimiam algum sentimento terno a seu respeito; porque seo rosto se tingio de carmim, e depois um debil suspiro, como que a muito reprimido, sahiu meio abafado de seus roseos labios.

Ouvi-o, e julguei, —louco de mim!— que esse suspiro era a primeira expressão de um repentino e profundo affecto: julguei que sonhava; porque nunca havia sentido o que então se passava em mim.

Mais tarde, veio meo pae felicitar-me. Mostrava-se feliz e orgulhoso de seu filho; e abraçou-me com transporte.

Não sei porque; mas nunca pude dedicar a meu pae amor filial que rivalisasse com aquelle que sentia por minha mãe, e sabeis por que? É que entre elle e sua esposa estava collocado o mais despotico poder: meo pae era o tyranno de sua mulher; e ela, triste victima, chorava em silencio, e resignava-se com sublime brandura.

Meo pae era para com ella um homem desapiedado e orgulhoso — minha mãe era uma sancta e humilde mulher.

Quantas vezes na infancia, máo grado meo, testemunhei scenas dolorosas que magoavam, e de louca prepotencia, que revoltavam! E meo coração alvoroçava-se n'essas occasiões apesar das prudentes admoestações de minha pobre mãe.

É que as lagrymas da infeliz, e os desgostos, que a minavam, tocavam o fundo da minha alma.

E meo pae resentia-se da affeição que tributava a esse ente de candura e bondade; mas foram as suas caricias, os seus meigos conselhos, que soaram a meos ouvidos, que me entretiveram nos primeiros annos; ao passo que o genio rude de meu pae amedrontava-me.

O desprazer de ver preferida a si a mulher que odiava, fez com que meu implacavel pae me apartasse d'ella seis longos annos, não me permittindo uma só visita ao ninho paterno; e minha mãe finava-se de saudades; mas soffria a minha ausencia, porque era a vontade de seo esposo. Mas eu voltava agora para o seu amor, e seos dias vinham a ser bellos e cheios de doce esperança.

Entretanto, eu tambem era feliz. Aprasia-me ver Adelaide, no arrebol da vida, tão casta, tão encantadora, compartilhando ora a dôr, que nos opprimia, ora o praser que enchia os nossos corações. Em Adelaide minha mãe encontrara uma desvelada amiga; a sua extrema belleza, e a dedicação áquella mulher, que eu tanto amava, attrahiam-me incessantemente para ella; e a primeira vez que a vi, o meo coração adevinhou que havia de amal-a.

Sim, amei-a loucamente, amei-a com todas as forças de um primeiro amor, e quando um dia lhe revelei o profundo affecto que me inspirava, conheci que era correspondido, não obstante o ella dizer-me:

— Tancredo, sou pobre, e teo pae se ha de oppor a semelhante união.

— Ah! —"prorompeu o cavalleiro com azedume mal desfarçado"— mulher infame e ambiciosa!

E minha mãe conheceo a ffeição que nos ligava, e estremeco de horror.

— Meo filho, —"disse-me um dia, chorando"— tu amas Adelaide, eu o tenho adevinhado; porque ao coração de uma mãe nada se occulta. Vás amargurar a tua existencia.....

Tancredo, meo filho, não cedas a um amor que te pode vir a ser funesto. Adelaide é pobre orphan, e teo pae não consentirá que sejas seo esposo.

Adelaide entrou, surrio-se para mim, e foi abraçar minha mãe, e eu continuei a conversação.

— Sim, minha querida mãe, amo Adelaide, e seo coração retribue-me, meo pae ama-me, não poderá, por tanto contrariar a minha primeira inclinação. Não, minha mãe, abençoai primeiro que elle o nosso amor; porque esta ha de ser a esposa do vosso filho. Não é verdade, minha Adelaide?

Ella corou de pejo, e redarguio:

— Tancredo, sou uma pobre orphan, vosso pae.... — Oh! pelo céo —"interrompi-a"— pelo céo... meu pae não tem coração de tigre.

— Ah! meo filho! —"objectou minha pobre mãe com voz tão tremula que simelhou um choro amargo:"— receio....

— Receaes!....

— Receio a prepotencia de teo pae, e uma opposição tenaz e exorbitante.

— Tendes razão! —"disse-lhe, porque as recordações do passado se erguiam ante mim como pavorosos phantasmas de dôr e de vergonha,"— Creio no entanto que elle cederá a seo filho o unico favor que lhe ha pedido em todo a vida.

— Duvido! —"replicou, abanando tristemente a cabeça"— Meos filhos, o céo que lhe illumine as trevas do pensamento cobiçoso e que eu os veja unidos e felices.

— Sim, minha boa e terna mãe —"lhe tornei com convicção"— haveis de ver-nos felices, e vós o sereis tambem. Estou que meo pae não me poderá negar a esposa que meo coração escolheo.

Notei que meo pae começou a ser mais communicativo e mais tractavel, e com isso minhas esperanças robusteciam e minha mãe cedeo a essa enganosa illusão.

Oh! como escoaram felices esses dias! Eu amava, e meo amor correspondido bastava para a minha ventura.

Todo embevecido no meo amor, não curava de meos interesses e nem d'illustrar meo nome na carreira publica. Toda minha ambição era essa mulher tão loucamente amada. Mas isto não podia durar muito — era ventura de mais para um pobre mortal.

Era o dia dos annos de Adelaide. Esse dia! que de amargas recordações me traz!!....

Decidi-me a hir communicar a meo pae o segredo do meo coração — esse segredo que me transbordava já da alma, e que elle fingia não conhecer.

— Qualquer que seja a impressão, que a meu pae possam causar minhas palavras, —"disse a minha mãe"— Adelaide ha de ser minha.

Ella olhando-me com severidade, redarguio:

— Tancredo, não chames sobre ti a colera de teo pae. Oh! Deos não protege a quem se oppõe á vontade paterna!

Baixei os olhos confuso e magoado, e quando os ergui duas lagrymas lhe sulcavam o rosto.

— Oh! minha pobre mãe —"exclamei reconhecido"—perdoae-me!

Então ella surrio-se, porem seo sorriso era amargo e terno a um tempo!

Ah! ella temia seu esposo, respeitava-lhe a vontade ferrea; mas com uma abnegação sublime quiz sacrificar-se por seo filho.

— Irei eu —"disse-me e sahio—"

Corri para o meo quarto, contiguo ao de meo pae, e ouvi tudo quanto se passou entre elle e minha mãe.

O que ouvi, ainda hoje enche-me de espanto, e reconheci desde então que meo pae era mais desapiedado, e cruel do que imaginava.

E minha desditosa mãe tudo arrostou, porque era a cauza de seo filho que advogava! Era as vezes tão debil e tremula a sua voz, e tão aspera, e violenta a de meo pae, que seos accentos chegavam a meos ouvidos como a queixa ao longe de sentida rola.

Mas outras vezes vinha ella aos meos ouvidos, e eu acreditei que era minha mãe uma sancta.

Deos meo! parece-me que inda a escuto!

A mansidão com que se exprimia desarmaria a uma fera; mas meo pae irritado e fora de si exclamou com vóz terrivel, que echoou medonha em meos ouvidos.

— E acreditastes, senhora, que eu consentiria em simelhante união? Estais louca?! Sem duvida perdestes a rasão. Ide-vos, e não continueis a alimentar no coração d'esse louco uma esperança que jamais lhe deveria ter nascido.

— Mas senhor... —"aventurou-se a retorquir-lhe minha desvelada mãe"— Adelaide é a filha de uma parenta querida! amo-a; e poruqe não será ella digna de meu filho?....

— Calai-vos! vol-o ordeno —"interrompeu acezo em ira"— Julgais que por ser essa misera orphan vossa parenta, e porque a amais, hei-de desposal-a a meo filho só por ser essa a vossa vontade? Decididamente que enlouquecestes.

E surrio-se, mas com um sorriso sardonico que me gelou de angustia.

Não se aterrou, e respondeu-lhe com uma vóz tão debil, que não ouvi; mas tam meiga e queixosa, que o acalmou um pouco.

— Louvo-vos a generosidade, minha nobre mensageira; —"disse pouco depois com tom de sarcasmo, que me fulminou"— guardai para uma esposa mais digna de Tancredo essa parte de vossa fortuna com que pretendeis tão desinteressadamente dotar a vossa Adelaide.

E terminou isto com estrepitosas gargalhadas.

— Oh! senhor, pelo amor do céo! É só para me roubardes a ultima ventura de um coração já morto pelos desgostos, que me negais o primeiro favor, que vos hei pedido! Que vos hei feito para merecer tanta duresa da vossa parte? Que vos ha feito meo filho para vos oppordes a sua felicidade?! Oh! quanto sois implacavel em odiar-me... Sim, a lealdade e o amor de uma esposa, que sempre vos acatou, merece-vos tão prolongado, desabrido e maligno tratamento?!!

Perdoae-me... mas tanto tenho soffrido; tantas lagrymas me tem sulcado o rosto desfeito pelos pesares; tanta dor me tem amargurado a alma, que estas palavras, nascidas do intimo do peito, pungentes, como toda a minha existencia, não vos podem offencer. Arranca-as, senhor, dos abysmos da minha alma a agonia lenta, que nella tem gerado o despreso e o desamor com que me tendes tratado!

E extenuada por tammanho exforço e pela dôr não pode continuar.

E meo pae ouvi-a em silencio; quando ella terminou suas magoadas expressões, elle com tom secco e firme, tão extranho aos queixumes da esposa, como se os não ouvira, exclamou:

— Ide-vos —"E acrescentou no mesmo tom"— Dizei a vosso filho que a vontade de seo pae não a domastes vós, e ninguem o conseguirá.

— E nem uma palavra de esperança?... — soluçou minha infeliz mãe.

— Ide-vos —"tornou-lhe o endurecido esposo."

Ella obedeceo.


V

A ENTREVISTA

— A dor, que senti, minha querida Ursula —"proseguio o mancebo com voz maguada"— não vos poderei exprimir.... Ella callou-me até o fundo do coração, e eu gemi de angustia por mim, por minhas esperanças assim cortadas, e por minha mãe desdenhada e alvitada ao ultimo apuro por seo esposo!...

Corri para ella chorando: esse choro, que eu não sabia reprimir, arrancava-m'o o soffrer profundo d'aquella criatura angelica.

E ella tambem chorava; mas era um pranto sentido e terno, que contrastava com o meo, que era provocado mais pela indignação mal suffocada no coração, ao passo que o d'ella era o de uma sancta.

— Que humilhação! —"exclamei pallido de commoção"— que humilhação, minha mãe!...

— Amo as humilhações, meo filho —"disse com brandura, que me tocou as ultimas feveras da alma"— o martyr do Calvario soffreo mais por amor de nós.

Meos joelhos vergaram instinctivamente ante essa mulher de tão sublimes virtudes, e eu disse-lhe:

— Ao menos o sacrificio do filho de Deos não foi inutil, minha mãe, e o vosso?!.... Lagrymas, e desesperança!.....

— Paciencia, meo filho, Deos assim o quer!

— Eu tudo ouvi, minha mãe, tudo —"E ajuntando as mãos sobre seos joelhos, que tremiam de afflição, continuei soluçando"— Por amor de mim quizestes sacrificar-vos!... "E reprimindo o pranto continuei"— Meo pae...

— Silencio! —"exclamou ella interrompendo-me"— Meo filho, não levantes a vóz para accusar aquelle que te deo a vida.

Adelaide, que estava presente, pallida e abattida, disse com vóz grave e melancolica; porem firme, que revelava dignidade:

— Para que repetirem-se estas scenas de humilhação e de pranto, que me magoam? Cessem ellas, senhora, para sempre. "E voltando-se para mim, com acento breve; mas tremulo e amargurado, concluio": — Tancredo, eu te restituo teos votos.

E depois com voz mais tocante e mais dolorosa, que me cortou o coração, proseguio:

— Agradeço-te, generoso mancebo, o affecto desinteressado, que animou teo coração; mas se me é permittido pedir-te ainda um ultimo favor — Tancredo, pelo amor do céo não desafies a colera de teo pae!

— Mulher angelica! —"bradei commovido por tão sublime expressão"— Que me pedes? Posso por ventura esquecer-te? poderei viver um só dia sem ver-te? Sem ouvir o harmonioso som da tua vóz? Oh! Adelaide.... esse sacrificio fora de mais para mim — nunca o farei!.. Deixasses embora de amar-me, que ainda assim eu te amaria loucamente.

— E eu, —"disse ella com amargura; mas tão baixo que só eu lhe ouvi"— triste de mim! amar-te-hei sempre; mas em silencio — basta que só Deos o saiba.

E um turbilhão de lagrymas borbulharam de seos olhos e suffocaram-n'a.

— Ursula... minha Ursula, — só agora sei que essa mulher mentia, que suas lagrymas eram encadeadas aleivosias, e suas palavras refalsadas como o seo coração.

Tresloucado, porque essas lagrymas feriam a minha alma, arranquei-me á triste scena que tão dolorosamente me magoava, e fui procurar meo pae.

Apenas fiz-me annunciar, fui logo introduzido em seos aposentos.

Nesse quarto, onde brilhava o luxo e a opulencia, tudo era triste e sombrio.

Cruzava-o meo pae com passos rapidos e incertos; seos olhos reflectiam o odio que lhe dominava nesse momento o pensamento. Notei que suas feições estavam transtornadas, e que baça pallidez lhe anuviava o rosto. Simelhava o leão ferido, que despede chamma dos olhos, e eu julguei que hia proromper em insensatos brados. Enganei-me.

Apenas vio-me, serenou um pouco, assentou-se, e accenou-me para a cadeira, que estava ao lado.

Houve então um momento de profundo silencio, nesse momento, meo pae observava attento minha physionomia, que devia estar bastante alterada; porque eu soffria horrivelmente.

Entretanto, depois de minucioso e aturado exame, deixou errar nos lavios um surriso meio animador, e meio escarnecedor, e disse-me com ironico acento que esmagava:

— Por mais que tenha cogitado, não atinei ainda, meo Tancredo, com o motivo, que te obriga a assim obsequiar-me. Não ousava contar com este favor.

Enclinei-me, e elle proseguio:

— Dispunha-me agora mesmo a hir procurar-te; porque tenho noticias de alta importancia para communicar-te.

— Estou as vossas ordens, meo pae —"disse-lhe com sequidão."

— Que reserva! —"exclamou mordendo os beiços"— Que reserva, Tancredo! que quer isto dizer? Desconheço-te.

— Senhor!... —"redargui confuso por aquella interpelação que não esperava."

— Tancredo! —"bradou com vóz de trovão"— vens por acaso questionar commigo? Tambem tu!....... "E surrio-se com desdem, e depois continuou"— De ha muito que conheço que o amor que me dedicas, não excede aos limitees, que te impõe a sociedade, e a decencia. Bem; nem outra cousa podía esperar: entretanto para provar-te o meo desvelo, não hei poupado fadigas, nem desdenhado meios para offerecer-te um lugar distincto entre os homens.

— Meo pae! —"disse-lhe com dignidade"— adradeço-vos os desvelos de que me tendes cercado; mas senhor....

— Cala-te, —"interrompeo elle mudando de tom"— nada de recriminações. Podes seguir —"continuou"— as tuas inclinações, teo pae não te estorvará a carreira.

E com certo sorriso, meio fagueiro, perguntou-me:

— Poderei saber o que aqui te trouxe?

— Então, não atinastes ainda com o motivo da minha visita? —"disse-lhe"— Pois bem, explical-o-hei se o permittirdes.

— Falla, —"disse-me friamente."

— Já não podeis ignorar, senhor —"comecei"— que amo com paixão a joven Adelaide, e que é ella digna da minha mão: uma só palavra vossa bastará agora para a minha completa ventura. O vosso consentimento, senhor, para desposal-a, que o meo reconhecimento será eterno e profundo.

— Deveras? —"interrogou, fitando em mim seos olhos com indefinivel altivez, e depois cravando-os no chão, guardou profundo silencio, que eu não ousei quebrar; porem mais tarde compondo o rosto avermelhado e severo, objectou com vóz firme; mas pausada, grave, e sem colera:

— Meo filho, tenho pensado madura e longamente sobre os teos amores — são uma loucura!

— Loucura! —"exclamei com ancia"— loucura, meo pae? Porque o dizeis? Porque é ella pobre! Oh! a um thesouro de riquesas é preferivel seo coração.

Escutou-me sem alterar-se, e depois perguntou-me pesando cada uma de suas palavras.

— Sabes tu quem era o pae dessa menina?

— Não te fallarei, —"continuou"— de seos coffres vasios de ouro pelo seo pessimo proceder; mas, Tancredo, sobre o nome d'esse homem pesa uma....

— Perdão, meo pae, —"atalhei com afflicção"— Amo-a. Que me importa o nome de seo pae? dar-lhe-hei o meo; e se alguma nodoa houve sobre esse homem, purificou-a o gelo do sepulchro. Meo pae, Adelaide está pura d'essa mancha como de toda a culpa.

Esperava uma explosão de colera; mas contra toda a expectativa surrio-se com bondade e disse-me:

— Tancredo, tens o meo consentimento. Adelaide, será tua esposa; mas has de permittir que, te imponha uma condição.

A estas palavras, Ursula, eu estava de joelhos aos pés d'esse homem, que pela vez primeira se mostrava bondoso.

— Fallae, meo pae, —"disse-lhe"— qualquer que ella seja aceito-a.

— Pois bem —"tornou elle rindo-se tão expansivamente, que, Deos meo! acreditei que vinha tudo aquillo do coração, que se lhe expandia pela minha felicidade: e eu transportado de reconhecimento beijava-lhe as mãos, e sentia que o amava; porque era feliz. Mas esta illusão passou, e o despertar foi doloroso.

— Tancredo, és o desposado de Adelaide. —"disse-me"— d'ora avante esse thesouro, que has amado, será por mim vigiado como a mais preciosa esperança da tua suprema ventura; Adelaide, porem, é ainda uma creança, e a experiencia de uma já longa existencia obriga-me a impor-te a condição de esperar por essa união um anno.

— Oh! meo pae!....

— Escuta-me. Bem sabia eu que te hias affligir; porem attende-me. A esposa, que tomamos, é a companheira eterna dos nossos dias. Com ella repartimos as nossas dores, ou os praseres que nos afagam a vida. Se é ella virtuosa, nossos filhos crescem abençoados pelo céo; porque é ella que lhes dá a primeira educação, as primeiras ideias de moral; é ella emfim que lhes forma o coração, e os mette na carreira da vida com um passo, que a virtude marca. Mas, se pelo contrário, sua educação abandonada torna-a uma mulher sem alma, inconsequente, leviana, estupida, ou impertinente, então do paraiso das nossas sonhas venturas despenhamo-nos n'um abysmo de eterno desgosto. O sorriso foge-nos dos labios, a alegria do coração, o somno das noites, e a amargura nos entra na alma e nos tortura. Amaldiçoamos sem cessar essa mulher que adoravamos prostrados; porque se nos figura agora o anjo perseguidor dos nossos dias.

Vês, meo filho —"continuou"— Adelaide é apenas uma creança; é tão nova.... tão pouco conheces suas qualidades que....

— Mas, meo pae! —"interrompi-lhe"— que dotes faltam ao espirito de Adelaide? não a tem educado minha mãe!?

Franzio ligeiramente os supercilios, e disse:

— Sua educação não está completa; e demais —"continuou apresentando-me um papel dobrado, e sellado"— eis aqui um despacho, que obtive para ti, meo filho. Honroso é o emprego, que te offerecem, e eu ouzo esperar que o meo Tancredo, não só o não recusará; porque foi solicitado por seo pae, como não deixará de partir breve, obedecendo às ordens superiores que o mandam a cidade de ***.

Abri o fatal papel, li-o, e gelei de dôr.

Era para longe da minha provincia que me desterravam.

— Meo pae! —"exclamei pallido de commoção"

Recusas? —"perguntou-me desconcertando-se." Recuzas?

— Não, senhor. Mas....

— Mas.... O que?

— Meo pae; porque não desposarei Adelaide antes de partir para a terra do exilio? Oh! não, não, hei de desposal-a; e depois hirei contente.

Então elle mordeo asperamente os beiços, tornou-se rubro de colera, e com voz, que mal disfarçava a raiva de ver-se assim contrariado, disse-me:

— Tancredo, dei-te a minha palavra, Adelaide será tua esposa, é um sacrificio: impuz-te uma condição, acceitaste-a. É sacrificio por sacrificio. A condição é facil de acceitar-se, mas...

Interrompeu-se e ficou em silencio.

Velho cruel! dizia eu a mim mesmo; porque simelhante procedimento para commigo?!.

— Acabemos com isto: —"tornou-me elle enfureciido"— uma palavra somente. Acceitas, ou queres luctar commigo?

Revolveram-se-me então na mente abrasada ideias, que mal se compadeciam com os sacros deveres prescriptos a um filho pela sociedade e pela naturesa.

Comprimido o coração, sentia estalar-me de agonia; e eu olhava esse velho implacavel e frio, que embargava a minha ventura.

Baixei os olhos, meditei por largo tempo, e submeti-me a sua contade ferrea. Sahi do seu quarto prostrado de amargura, e porque a dor era funda em meo coração.


VI

A DESPEDIDA

Minha desvelada mãe aguardava-me tremulada e anciosa, e perguntou-me afflicta.

— Recusou?

— Não, senhora —"tornei-lhe amargurado."

— Louvado seja o Senhor! —"exclamou então com reconhecimento, mal comprehendendo o excesso da minha dôr, e lagrymas de satisfação lhe regaram as faces.

E Adelaide erguendo as mãos aos céos, e fitando n'elles seos grandes olhos humidos de praser, parecia concluir a oração começada por minha mãe.

— Adelaide, —"disse-lhe"— não cedas assim aos transportes de uma ventura, que ainda se involve nas sombras do porvir; porque o despertar te seria doloroso. Meo pae impoz-me dura condição, e eu submetti-me a ella. Meo Deos! que posso eu fazer? Sabeis qual seja? Oh! é um custoso e amargo sacrificio, é um anno de separação arrastado no exilio! Este anno é um seculo de desesperação.

— Meo Deos! —"exclamou minha pobre mãe com accento tão doloroso, que me estalou o coração de magua"— É mais uma prova, Senhor, que me enviaes!

— Meo filho, —"continuou"— esta separação será talvez eterna!


Muitos dias não eram passados, quando eu em pé no meio do salão de meo pae, com os braços cruzados sobre o peito, que sentia partir-se de dôr, observava em silencio a agonia intima d'essas duas mulheres, que na derradeira despedida, semelhavam dolorosas estatus de Niobe.

Adelaide, reclinava-se nos braços de minha mãe, pallida como a assucena pendurada na corrente; e essa mulher cheia de bondade e de virturde exforçava-se por consolal-a de uma dor, que só n'ella era real; mas que suppunha egual na donzella, que um dia seria minha esposa.

Com magua comparei então o semblante pallido e emmagrecido d'essa mulher de alma tão heroica e santa, com o seo retrato, pendente de uma das paredes do salão, e gelei de pasmo e de angustia. O pintor havia ahi traçado uma bellesa de desoito primaveras.

As madeixas de seos sedosos cabellos molduravam-lhe as faces brancas de neve, e as rosas eram tão debeis que tingiam-nas apenas de ligeira côr. Sua fronte altiva e nobre coroava uns olhos ternos e expressivos, e os labios acarminados, onde pairava angelico sorriso, deixava meio perceber-se dous renques de alvissima perolas.

E agora, demudada, macilenta e abattida pelos soffrimentos de tantos annos era a duvidosa sombra da formosa donzella de outros tempos.

Esta separação forçada era comtudo a maior dôr que a havia torturado; porque um funesto presentimento dizia-lhe — que seria eterna!

E essa dôr debuxava-se muda, porem viva e profunda, em seo rosto macilento e cheio de rugas.

Minha pobre mãe!....

E ao lado desse retrato estava outro — era o de meo pae. Sessenta annos de existencia não lhe haviam alterado as feições seccas e austeras, só o tempo começava a alvejar-lhe os cabellos, outr'ora negros como a noite.

Emquanto retraçava na mente agitada os desgostos de minha afflicta mãe, entrou seo esposo. Notou-lhe o abattimento, vio as lagrymas de Adelaide, e seo rosto de leve se contrahio.

Tomei-lhe a mãe e beijei-a; e elle voltando-se para a inconsolavel esposa, com severa inflexão de voz, e com aspecto cholerico, perguntou-lhe:

— Senhora! quando deixareis partir vosso filho?

Por toda a resposta, só lhe ouvi um gemido de profundo desanimo.

— Meo pae!... —"exclamei sentido."

— Oh! meo filho —"tornou-me elle com aquelle sorriso, que lhe é particular"— e necessario que nem sempre se attenda às lágrimas das mulheres; porque é o seo choro tão tocante, que apesar nosso commove-nos, e a honra, e o dever condenma, a nossa commoção, e chamam-lhe — fraqueza.

— Pois bem, meo pae, na hora em que sáhio a cumprir a vossa vontade, permitti que vos recommende zeloso o thesouro de minha futura felicidade, e a mãe desvelada, que minha alma adora

Meo pae —"continuei com voz queixosa"— adoçai o amargor do meo exilio! Bem sabeis quanto me é penosa esta separação, que só um requinte de filial condescendencia a ella me obrigou. Oh! fazei com que não saiba no lugar do desterro que minha pobre mãe verteo uma lagryma de afflicta dôr, longe do coração de seo filho, e que a desposada, que me concedestes, se conserva triste e pesarosa como ora a vedes. Oh! velai por ella, meo pae, e que ella se conserve digna da mão que lhe está destinada.

Então olhou-me, e seo olhar era sinistro: suportei-o, e sempre immovel ante elle, aguardei uma resposta.

Mordeo os labios, e com esforço disse-me:

— Descança.Avia-te, avia-te.

— Ursula!.... minha Ursula!.... —"proseguio o cavalleiro reprimindo um doloroso gemido"— beijei as faces mimosas de minha desposada, uni minha mãe contra o coração; mas não lhe disse um adeos, nem um gemido me arquejou no peito; porque ahi havia dorido soffrer.

Ella deo-me um derradeiro olhar, tão terno, tão apaixonado, tão expressivo de magua intima, e de sincero reconhecimento, que as lagrymas, que me gotejavam no coração, por fim me resaltaram nas faces, e prorompi um copioso pranto...........................................

N'esse olhar, em que lhe estava a alma, disse-me a infeliz seo derradeiro adeos.


VII

ADELAIDE

Agora —"proseguio o mancebo, apos alguns momentos de profundo silencio"— agora se não fosseis vós, minha Ursula, que de novo acabaes de prender-me à vida, que me restaria sobre a terra?!!

No exilio, encerrado entre as paredes silenciosas da minha morada, ahi eram commigo as saudades d'um estremecido amor, e as fagueiras esperanças de um porvir de affectos e ventura. Loucas esperanças eram essas! Não podia imaginar que sob as apparencias de um anjo essa perfida occultava um coração trahidor como o do assassino dos sertões

Recebia constantemente cartas de minha mãe, em que me fallava d'Adelaide, animava-me no meo desterro, e não dirigia queixas contra o seo marido.

As cartas d'este eram sempre breves e frias.

Adelaide, que com frequencia tambem escrevia-me a principo, entrou a espaçar mais a correspondencia, que era o alento da minha vida, era o que me fazia permanecer com alguma alma tam longe de entes caros.

Por ultimo cessaram!

E eu chorava no exilio dores, que ella havia esquecido — affectos, que nunca lhe tinham pulsado no coração — esperanças e saudades que eram só minhas!....

Com que lentidão espreguiçavam-se então os dias!.. Contava as horas, longas como seculos, tristes como as agonias do padecente.

Com o tempo o espirito cançado de tão apurado soffrimento reagio sobre o physico, e cahi perigosamente doente.

Prolongou-se a minha enfermidade apesar dos esforços dos medicos, e elles receiaram pela minha vida; porem o amor e a esperança salvaram-me.

Recobrei finalmente a vida, e quando achei-me com forças para emprehender viagens, pensei em rever o objecto de minha terna affeição, e não obstante não ter carta de meo pae, que me chamasse a receber a recompensa de meo sacrificio, dispuz-me para a partida.

Mas... Deos eterno! como são occultos os teus juizos! Uma ordem muito positiva do governo obrigou-me a renunciar ao meo projecto, e tive de dirigir-me à commarca de ***, onde hia incumbido de uma commissão espinhosa e honrosa.

Enfraquecido pelos soffrimentos, contrariado, quazi que desesperado, emprehendi essa viagem, que fiz com tanta rapidez, quanta me permittiram minhas forças, e alguns dias depois estava de volta. Levava no coração a imagem desse anjo idolatrado; mas uma magoa extranha annuviava-me o coração, e eu não podia comprehendel-a, e o absoluto e tétrico silencio d'esse espaço, que percorria, mais augmentava esse sentir vago de indefinivel melancholia.

E dei de redeas ao animal com loucura e sem parar, porque sentia a necessidade do movimento; mas depois a afflição sempre crescente trasia-me o abattimento, e eu deixava o cavallo andar como lhe parecia.

O coração presagiava males e não tinha energia para desvanecel-os......................................

Concluida essa penosa tarefa, ao entrar em minha casa encontrei uma carta, cuja lettra era tremula, e mal traçada, cuja data era ainda anterior à minha enfermidade. Oh! Deos meo! Gelou-se-me de dôr o sangue — essa carta era de minha mãe! Escrevera-a às portas da Eternidade, e cada uma de suas palavras era um queixume desanimado de dolorosa angustia. Não havia ahi uma palavra que accuzasse meo pae; mas comprehendi logo que elle lhe cavára a sepultura.

Adelaide! minha pobre mãe não me fallava d'ella...

E apos essa li sucessivamente uma carta de meo pae, e outras de alguns amigos — minha desditosa mãe cessára de existir!!.....

Ah! essa dor foi profunda, e tão aguda, que recahi e por muitos dias ignorei o que se passava em deredor de mim. Recuperei a saude, alentado por meo amor. Adelaide estava no coração, e agora mais do nunca seos affectos eram necessarios a minha alma.

Ergui-me pois, e de novo puz-me a caminho e quinze dias viajei, já pela ardentia do sol, já pela humidade da noite, sempre depressa, sem nunca descançar, animado pelo desejo de chegar e ver a minha Adelaide, unico ente adorado que me restava sobre a terra! No cabo de quinze dias batti, à noite, à porta da casa onde nasci e onde morrera minha infeliz mãe!

A dor, que eu sentira ao receber essas cartas fataes, crescia, e suffocava-me a proporção que me aproximava dessa casa, onde eu deixara minha desventurada mãe, pallida e desfeita, e onde hia encontrar luctuoso silencio: e o aspecto lugubre do escravo, que vigiava a entrada, augmentou mais essa dôr profunda.

Levantou-se apenas vio-me, e fallou-me com voz maguada; e depois, cruzando os braços sobre o peito, aguardou mudo por uma interrogação.

— Meo pae? —"perguntei-lhe com voz tremula e convulsa"—.

— Está fora, senhor —"tornou-me tristemente"— E Adelaide? onde está ella?

— No salão —"redarguio o negro no mesmo tom."

Entrei. Veloz como um raio atravessei corredores e salas, e n'um minuto estava no salão. Ursula, minha Ursula, eu a vi. Oh! antes não a houvera visto, antes tivera descido ao sepulchro, que lá não me seria revelada tão triste e nefanda historia!

No salão havia um turbilhão de luzes; no fundo, reclinada em primoroso sophá, estava uma mulher de extremada bellesa. Figurou-se-me um anjo. A explendente claridade, que illuminava esse salão dourado, dando-lhe de chapa sobre a fronte larga e limpida circundava-a de voluptuoso encanto.

Era Adelaide.

Adornava-a um rico vestido de seda côr de perolas, e no seio nú ondeava-lhe um precioso collar de brilhantes e perolas, e os cabellos estavam enastrados de joias de não menor valor.

Destrahida, no meio de tão opulento explendor, afagava meigamente as pennas de seo leque dourado.

Allucinado por bellesa tão radiante, corri para ella, exclamando:

— Adelaide! minha Adelaide!

E n'aquelle momento, seduzido pelos seos encantos, louco pela ventura de vel-a, esqueci a magoa, que me doia no coração, da perda de minha mãe. Estendi-lhe os braços, e as expressões morreram-me nos labios; e depois curvando-me ante ella, hia tomar-lhe as mãos, e beijal-as com effusão; mas ella então altiva e desdenhosa disse-me com friesa, que me gelou de neve.

— Tancredo, respeitai a esposa de vosso pae!

Oh! não sei como não enloqueci! Em trevas de desesperação tornou-se-me a luz dos olhos, e todo o salão parecia ondular sob meos pés. A mulher, que tinha ante meos olhos, era um phantasma terrivel, era um demonio de trahições, que na mente abrasada de desperação figurava-se-me sorrindo para mim com insultuoso escarneo. Parecia horrivel, desferindo chamas dos olhos, e que me cercava e dava estrepitosas gargalhadas. Erguia-se para mim ameaçadora, e abraçava e beijava outro ente de aspecto tambem medonhos, Ambos no meio de orgia infernal cercavam-me e não me deixavam partir.

Se durou muito este fatal pesadelo, não o posso dizer. Quando acordei debatia-me no tapete aos pés d'essa mulher orgulhosa.

Dissiparam-se-me as trevas, a luz volveo-me e com ella apagaram-se as ondas de fogo, que rodeiavam essa perfida creatura. Encarei-a de face — estava impassivel e fria como a estatua do desengano.

Levantei-me cheio de desesperação e odio.

Adelaide permanecia indifferente.

— Mulher infame! —"disse-lhe"— perjura.... onde estão os teos votos? É assim que retribuiste a estremecida paixão, que te rendi? É com um requinte de vil e vergonhosa trahição que compensaste o ardente affecto de minha alma? Comprehendeste ou sondaste já o profundo abysmo de infame execração, e de baixa degradação, em que te despenhaste?

— Silencio, senhor —"bradou-me com orgulho e desdem"— silencio — estaes na presença da mulher de vosso pae, e respeitae-a.

— Não, não me hei de callar, —"redargui furioso"— não me pode esmagar o teo desdenhoso accento. Monstro, demonio, mulher fementida, restitue-me minha pobre mãe, essa que tambem foi tua mãe, que agasalhou no seio a aspide que havia mordel-a! Oh! divida é esta que jamais poderás pagar; mas a Deos, ao inferno, a pagarás sem duvida. Foi essa a gratidão com que lhe compensaste os desvellos de que te cercou na infancia, a generosidade com que te amou?!!

Estava louco de afflição e a voz faltou-me; porque o que eu sentia era demais para as minhas forças. Torcia as mãos de desesperação; porque o acordar de minhas loucas esperanças era amargoso e doloroso.

E derepente um sorriso, que me pareceo infernal, errou-lhe nos labios — era seo esposo, que grave e silencioso atravessava o salão, e ella julgava-se isenta de minhas recriminações e sentia-se livre de desagradaveis lembranças.

Olhei, e vi-o. Vellava-lhe o rosto pallidez mortal.

E cambiamos longo, amargo, e expressivo olhar: creio que foi um seculo de torturas para meo pae; por que depois elle cravou os olhos no chão, e respirava a custo.

— Senhor! —"exclamei fora de mim"— Restitui-me duas mulheres, que vos recommendei na hora em que me desterrastes. Uma era a mãe querida que eu tanto amava; a outra era minha desposada, era a mulher, que me havieis cedido para a companheira dos meos dias. Onde estão elas?

Continuou mudo a fitar o tapete de seo vasto salão.

— Livrai-me, senhor da presença deste homem! —"exclamou Adelaide agitada e convulsa."

— Que fizestes d'ellas, senhor? Comprehendo agora, o vosso silencio assás m'o tem explicado. Sondastes o coração de uma, e sem dificuldade conhecestes que era vil e baixo, que o ouro a deslumbrava, a enlouquecia, a aviltava, e essa, que com tanta felicidade sacrificava ao luxo os affectos de seo coração, ou que com infame procedimento esquecia o amor desinteressado, e puro do homem, que sabia idolatral-a, essa, roubando-a ao meo coração, levastes aos altares, e fizestes a vossa esposa! Tivestes rasão: ella não era digna do meo amor.

Meo pae fez-se livido, e de raiva mordeo os beiços.

A outra —"prosegui"— a outra atormentastes, torturastes, conduzistes lentamente á sepultura. Seo crime? Oh! meo pae.... minha mãe era uma angelica mulher, e vós, implacavel no vosso odio, invenenastes-lhe a existencia, a roubastes ao meo coração... Oh! suas cinzas, senhor, clamam justiça contra os autores de seos ultimos pesares, contra aquelles que riram sobre suas dores.

— Fazei-o retirar, senhor —"de novo bradou a esposa, pallida e abattida."

— Tendes razão, senhora —"disse-lhe"— Sentis que vos incommodo? assim deve ser. Eu sou para vós o remorso vivo. Esperai, não será longo o tempo que gastarei aqui; porque tambem me encommoda a vossa presença; porque n'esta casa respira-se um alito pestilento; porque aqui emfim estais vós. Pouco me demorarei — só quero diser-vos:

— Mulher odiosa! eu vos amaldiçôo. Por cada um dos transportes de ternura, que outr'ora meo coração vos deo, tende um pungir agudo de profunda dôr; e dôr, que me dilacera agora a alma, seja a partilha vossa na hora derradeira. Por cada uma só das lagrimas de minha mãe choreis um pranto amargo; mas arido como um campo pedregoso, doido como a desesperação de um amor trahido. E nem uma mão, que vos enxugue o pranto, e nem uma voz meiga, que vos suavise a dor de todos os momentos. O fel de um profundo, mas irremediavel remorso, vos envenene o futuro, e desejado praser, e no meio da opulencia e do luxo, firam-vos sem treguas os insultos de impiedosa sorte. Arfe o vosso peito, e estale por magoados suspiros, e ninguem os escute; e sobre esse soffrimento terrivel cuspam os homens, e riam-se de vós.

A voz de todo se me extinguio, e eu sahi louco de desesperação e de dôr da casa de meos paes, da casa, onde tão leda se passou a minha primeira idade!

Apos um momento de silencio, o cavalleiro disse a filha de Luiza B..... eis Ursula a fiel narração da minha vida, eis os meos primeiros amores; o resto toca-vos. Fazei-me venturoso. Oh! em vossas mãos está a minha sorte.

A donzella, commovida, não pode fallar e estendeo-lhe a mão, que elle beijou com amor e reconhecimento.


VIII

LUISA B.....

O dia hia já alto quando Ursula entrou no quarto de sua mãe, e esta admirada de não vel'a logo ao amanhecer, como de costume, começava a inquietar-se, e por isso estendeo-lhe os braços com transporte de indisivel satisfação, e disse-lhe:

— Dormiste hoje muito, minha cara Ursula, e eu julguei que me tinhas esquecido.

Suposto a voz de Ursula nada tivesse de reprehensiva, todavia Ursula corou de envergonhada, e ao mesmo tempo o remorso lhe errou na alma.

— Deos meo! perdoae-me —"disse comsigo, e correo com os braços abertos para abraçar sua carinhosa mãe, que lhe sorrio.

— É verdade, minha mãe, demorei-me muito; mas haveis de desculpar-me. Achei-me encommodada durante a noite, e foi-me preciso respirar o ar fresco da manhan para restabelecer as forças.

— Ah! minha filha! —"tornou a senhora B..., querendo attrahir Ursula aos seos braços, a qual affectada pelo primeiro remorso, receiava algum tanto lançar-se nos braços maternos"— Vem abraçar-me.... que tão anciosa estava por ver-te!

Então a timida menina, vencendo a sua perturbação, lançou-se com jubilo no seio de sua mãe, e soluços mal suffocados lhe rebentaram do peito.

Luisa B... mal podia comprehendel-a, e olhava-a enternecida. Pouco e pouco convencida de que o seo penivel estado era a unica cauda de tão sentido choro, que outro motivo não podia ella descobrir, procurou serenar a estremosa filha, chamando sua attenção para outro objecto, e disse-lhe:

— Enchuga, minha Ursula, as tuas lagrimas, não vês que eu não choro? —"E procurava sorrir-se; mas era um riso amargo; porque o coração não estava isento de dores.

— Minha filha —"continuou affectando tranquillidade"— o nosso hospede intenta deixar-nos hoje: pedio que me queria ser apresentado, e eu te aguardava para fazer-lhe as honras desta pobre casa.

Ursula levou o lenço ao rosto por um movimento rapido, Luiza julgou que ella procurava d'ahi extinguir o vestigio das suas lagrimas; mas a donzella occultava o rubor subitaneo, que lhe tingia as faces, ouvindo sua mãe fallar do homem, que lhe occupava a alma, e por desfarçar a sua commoção disse destrahidamente:

— E o nosso Tulio, que tambem se vai?!..........

— É verdade! —"tornou a pobre paralytica"— e a nossa casa vai-se tornando cada vez mais isolada e triste!

Ursula deixou descahir os olhos para a terra, e reprimio magoado suspiro por amor de sua mãe.

E um profundo silencio reinou no quarto da doente; porque cada uma dessas duas mulheres se abandonava a seos pensamentos. Luisa sem duvida occupava-se só do porvir de sua filha; esta pelo contrario recordava as doces expressões do cavalleiro, seos votos de amor, e sentia pesar por vel-o partir. Comtudo Ursula tinha já uma esperança que lhe dava forças para arrostar as dores da vida: — amava, e tinha a convicção de ser amada.

E ella meditava na breve mudança da sua vida, e sentia o coração palpitar com estranho desaçocego.

Depois o silencio foi interrompido pelo annuncio da chegada do mancebo.

— Eil-o —"disse a moça a sua mãe, que se tinha immergido em triste reflexões, e não ouvira pronunciar o nome de seo hospede"— e levantou-se para hir ao seo encontro.

— Ursula, —"exclamou a inferma como quem acordava de um pesado somno"— onde vas?

A moça comprehendeo que sua mãe muito soffria e com meiguice chegou-se a ella e disse-lhe:

— É o nosso hospede, minha mãe.

— Ah! —"exclamou então a infeliz senhora, cahindo em si"— sejaes bem vindo, senhor. Esperava por vós. E o mancebo transpunha o liminar da porta.

— Perdoae a friesa desta recepção, —"continuou"— sou uma pobre paralytica; mas a honra, que me fazeis, e que aparentemente mal posso corresponder, ficará gravada profundamente em meo coração. Entrae, senhor.

E Ursula, tremula de pejo e de amor, guiava-o para o leito de sua mãe.

O mancebo resentia-se ainda dos effeitos de uma longa enfermidade; e o seo rosto conservava morbida pallidez, que n'ess'ora sobresahia-lhe, augmentando a gravidade de seo porte, em presença d'essa mulher, que semelhava o proprio soffrimento.

E elle entrou; mas ao aproximar-se do leito de Luiza B... uma commoção de pesar lhe ferio a alma. É que n'esse esqueleto vivo, que a custo meneava os braços, o mancebo não podia descobrir sem grande custo os restos de uma penosa existencia, que se finava lenta e dolorosamente.

Estremeceo de compaixão ao vel-a; porque em seo rosto estavam estampados os soffrimenntos profundos, pungentes, e inexprimiveis da sua alma. E os labios lividos e tremulos, e a fronte pallida, e descarnada, e os olhos negros, e alquebrados diziam bem quanta dôr, quanto soffrimento lhe retalhava o peito.

Luisa B... fora bella na sua mocidade, e ainda no fundo da sua infermidade podia descobrir-se leves traços de uma passada formosura.

Ursula herdara as doces feições de sua mãe. Então o mancebo contemplou-a com religioso respeito, e o que sentio em presença d'esse leito de tão apuradas dôres mal poderia dizer.

Semelhava um cadaver a quem o galvanismo imprestara movimento limitado as extremidades superiores, myrrhadas e pallidas, e brilho a uns olhos negros, mas encovados.

Venceo a sua perturbação, e chegando-se á mãe de Ursula, estendeo-lhe a mão, que ella apertou com effusão, tanto quanto lhe permittiam suas debeis forças.

Essa mão era leal e generosa, e Luisa B... sentiu-se commovida; porque era a primeira pessoa que a visitava em sua triste morada, e que em face de sua enfermidade a não desdenhava, nem sentia repugnancia da sua miseria e do seo penoso estado. E por isso disse com reconhecimento, que tocou o mancebo.

— O céo vos proteja senhor; porque sois generoso e bom. E quereis partir? —"accrescentou com benevolencia."

— Sim, senhora —"tornou-lhe o cavalleiro com voz firme; mas magoada por ahi lhe ficar parte do coração"— o dever me chama. Acho-me restabelecido, e não devo por mais tempo abusar da vossa bondade. Com desvelo e carinho, e sem que eu o merecese tendes me dado um novo existir, venho pois protestar-vos minha gratidão. Se algum dia —"continuou depois de breve pause"— as vicissitudes da sorte vos obrigarem a recorrer a alguem, esse alguem seja eu; porque, senhora, jamais me esquecerei da franquesa, e da bondade com que me acolhestes.

— Sim, senhor, —"redarguio a enferma"— creio em voz; porque sois generoso e bom: o fostes para com Tulio, sel-o-heis tambem para commigo: mas...

E olhou para sua filha, que pallida e perturbada como a flor na ardentia da sésta, descahida a face nas mãos, estava a sua cabeceira, e suspendeo-se.

Luisa B.... queria dizer: eu nada peço para mim nada mais que a sepultura; mas se sois cavalleiro, se tendes virtude na alma, protegei essa pobre orphan. Mas aquelle homem era-lhe desconhecido, e a idéa de sua proxima morte hia despertar em Ursula sentimentos dolorosos. A pobre mulher callou-se.

— Fallae, minha querida senhora —"apressou-se o mancebo em dizer, reparando n'essa penosa reticencia"— fallae, não sabeis que nutro satisfação em escutar-vos?

— Ah! senhor —"exclamou Luisa B... reprimindo amarguradas lagrimas"— sou tão desditosa, que fallando de mim, só poderia dizer-vos cousas tão tristes e fastidiosas, que vos cançarieis de as ouvir.

— Pelo contrario, —"disse o mancebo"— grande é o interesse, que me inspiraes: quaes quer que sejam as vossas desditas, e por mais longa que seja a narração d'ellas, eu as escutarei, e tomarei por ellas todo o interesse.

Sem duvida, minha pobre Ursula, tinhas razão quando, tocada pelo generoso proceder do vosso hospede, me fallavas de suas bondades, e de seos delicados pensamentos.

Então o mancebo inclinou-se para a donzella em signal de gratidão, e vio-lhe pender dos olhos uma lagrima, que do fundo do coração lhe arrancava a saudade de tão forçada separação.

Essa lagrima transportou de amor ao joven adorador da filha do deserto, e elle desejou bebel-a em um longo e ardente beijo, e seo coração jurou de novo que aquella mulher angelica seria a doce companheira da sua peregrinação na terra. E quando ella houver deixado de existir, acrescentava elle em seo sonhar delicioso, eu a seguirei na campa, e lá n'uma outra vida, onde tudo é amor, puresa, e santidade, lá, redobrando de amor e de ternura, viveremos unido para sempre.

E a senhora B... notando que seo hospede estava commovido, e attribuindo ao exordio da sua conversão, a commoção do mancebo, apressou-se em dizer-lhe:

— Perdoae-me, senhor, uma pobre mulher enregelada pela doença, e pela morte, que se lhe aproxima, deve fallar com toda a franquesa, e demais, a sensibilidade do meo coração ainda existe, e o céo permittio-me sympathisar com as acções nobres, e desinteressadas. Eu amei, senhor, o vosso procedimento.

— Obrigado! minha senhora, —"murmurou o mancebo inclinando-se.

— Continuae, eu vos escuto.

— Ha dose annos —"começou Luisa B... suspirando aquele suspiro, que vem do fundo da alma, não para commover a outrem, e captar a sua attenção, ou a sua bondade; mas aquelle suspiro, que é o momentaneo, mas triste alivo de um soffrimento apurado e baldo de toda esperança"— Ha dose annos que arrasto a custo esta penosa existencia. Deos conhece o sacrificio, que hei feito para [ilegível. 'conserval-a'? p. 84/79]. Parece-vos isto incomprehensivel? —"interrogou ella ao mancebo, que attento a escutava"— Sou mae, senhor! Vede minha pobre filha! é um anjo de doçura e de bondade, e abandonal-a, e deixal-a só sobre este mundo, que ella mal conhece, é a maior dôr de quantas dores hei provado na vida. Sim, é a maior dor —"continuou ella com amargo acento"— porque então perderá o unico apoio que ainda lhe resta! Ao menos se meo irmão podesse esquecer o seu odio, e protegel-a!......

— Vosso irmão, senhora? —"interrogou o cavalleiro, como admirado de que um irmão pudesse odiar a sua irman.

— Sim —"tornou ella"— meo irmão. Mas, senhor, elle é implacavel no odio, e nunca o esquecerá.

— Não é possivel senhora —"objectou o cavalleiro"— vosso irmão, quem quer que seja, não vos pode odiar. O vosso estado, e as desgraças que por certo tem pesado sobre vós, que elle talvez não ignore, lavarão toda a offensa, que por ventura lhe houverdes feito.

— Lavarão, dizeis vós, todas as offensas que lhe hei feito? Ah! podera assim acontecer! Mas não, eu chamei seo ódio sobre minha cabeça, eu o conhecia: seo coração só se abrio uma vez, foi para o amor fraterno. Amou-me, amou-me muito; mas quando tive a infelicidade de incorrer no seo desagrado, todo esse amor tornou-se em odio, implacavel, terrivel, e vingativo. Meo irmao jamais me poderá perdoar.

— Talvez! O tempo....................................................

Luisa B... meneou tristemente os olhos, e interrompeo o cavalleiro:

— Então, senhor, não conheceis o commendador F. de P***!....

O commendador P***?! —"exclamou o moço admirado"— é elle vosso irmão?..

— Sim, senhor —"tornou-lhe a mãe de Ursula,"— e um desvelado irmão foi elle. Conheceis-lo talvez pela sua reputação de feresa de animo; mas esse homem tao implacavel como o vedes, era um terno e carinhoso irmão. Amou-me na infancia com tanto extremo e carinho que o innobreciam aos olhos de meos paes, que o adoravam, e depois que ambos cahiram no sepulchro, elle continuou sua fraternal ternura para commigo. Mais tarde, um amor irrestivel levou-me a desposar um homem, que meo irmão no seo orgulho julgou inferior a nós pelo nascimento e pela fortuna. Chamava-se Paulo...

Ah! senhor —"continuou a infeliz mulher"— este desgraçado consorcio, que attrahio tão vivamente sobre os dous esposos a colera de um irmão offendido, fez toda a desgraça da minha vida. Paulo B... não soube comprehender a grandesa de meo amor, cumulou-me de desgostos e de afflições domesticas, desrespeitou seos deveres conjugaes, e sacrificou minha fortuna em favor de suas loucas paixões. Não tivera eu uma filha, que jamais de meos labios cahiria sobre elle uma so queixa. Mas elle me perdoará do fundo do seo sepulchro; porque sua filha mais tarde foi o objecto de toda a sua ternura, e a dor de fracamente poder rehabilitar sua casa em favor della lhe consummia, e occupava o tempo. E elle teria sido bom; sua regeneração tornar-hia-se completa, se o ferro do assassino lhe não tivesse cortado em meio a existencia!

E uma lagrima pendeo dos olhos alquebrados da desditosa viuva.

— Assassinaram vosso marido, senhora? "interrompeu-a o hospede horrorisado.

— Assassinaram-no, sim —"tornou Luisa B... com voz pausada.

— Oh! isso é horrível! E sabeis vós quem foi o seo assassino?

— Não, senhor — Ninguem, a não ser eu, sentio a morte de meo esposo. A justiça adormeceo sobre o facto, e eu, pobre mulher, chorei a orphandade de minha filha, que apenas sahia do berço, sem uma esperança, sem um arrimo, e alguns mezes depois, veio a paralysia — essa meia morte — roubar-me o movimento e tirar-me o goso ao menos de seguir os primeiros passos desta menina, que o céo me confiou.

— Oh! —"disse o cavalleiro commovido""— quantas desgraças! E não tendes suspeita alguma de quem quer que fosse esse assassino, que a justiça não procurou punir?

— Não sei —"tornou ella com desanimo"— E para que pensar temerariamente, quando já me acho tão proxima do meo fim, e tantas culpas para com aquelle que a todos nós ha de julgar? Só Deos, senhor, deve conhecer o culpado e os remorsos tel-o-hão punido.

Uma tarde, meo esposo deixou-me para hir à cidade de *** donde voltaria ao cabo de tres dias. Foi embalde que o esperei; porque a sua alma estava com Deos, e só ao amanhecer do outro dia dous homens compassivos trouxeram-me o seo cadaver! Ah! que triste recordação!

— E vosso irmão, senhora, não procurou consolar-vos?

— Meo irmão? —"tornou ella sorrindo-se dolorosamente"— Esse comprou as dividas do meo casal, e estabeleceo-se na fazenda de Sancta Cruz, outr'ora habitação de meos paes, onde eu passei os annos de minha juventude, onde nascera minha pobre Ursula.

— Oh! minha mãe —"exclamou Ursula com amargura"— pelo céo não vos afflijaes mais fallando desse homem que tanto mal vos tem feito.

— Conheceis-lo, senhora? —"perguntou-lhe o mancebo sorrindo com ternura para a animar.

— Não. Oh! que nunca o veja —"tornou-lhe a donzella refugiando-se nos braços de sua mãe.

— Tens razão, minha cara Ursula —"disse a pobre mãe procurando amparal-a"— grande mal nos tem elle feito.

— Socegai, minhas queridas senhoras —"objectou o mancebo,"— acaso ignoraes que d'hoje em diante velarei por vós? E o que mais podeis receiar delle? Tem sobejamente saciado seo terrivel rancor.

— Tendes razão, senhor —"proseguio Luisa B..."— elle habita as nossas visinhanças desde que morreo meo marido, e jamais nos tem encommodado.

— O commendador habita estes arredores? —"perguntou o cavalleiro."

— Sim, senhor — A fazenda de Sancta Cruz está a meia legua de nós.

— E eu tenho-lhe tanto horror —"disse Ursula a tremer"— que mal posso supportar a idéa de que estejamos sempre tão proximas d'elle. Parece-me que esse homem ainda me hade ser funesto. E algumas lagrimas lhe orvalharam as faces.

— Pelo céo, minha filha —"disse a mãe angustiada"— essa lagrimas me matam. Não, eu quero ver-te risonha e feliz.

— Sim, feliz! —"interrompeo o mancebo tão commovido que tocou o coração de Luisa B..."— Contai commigo, senhora, vossa filha hade ser feliz, prometto-o sob juramento.

— Vós!.... —"interrogou a pobre a mãe, sem atinar verdadeiramente com o sentido destas palavras proferidas com tanto fogo.

E o joven cavalleiro tornou-lhe:

— Sim, minha senhora, eu; porque amo-a, e como o meo amor não poderá jamais arrefecer, juro-vos em nome do céo, que nos escuta, que Ursula será a mais venturosa de todas as mulheres, se annuirdes ao meos desejos.

Luisa B... redusida a ultima miseria, e descobrindo nas maneiras de seo hospede os signaes de um nascimento destincto, assim como o explendor de uma prospera fortuna, julgou-se vivamente offendida por aquellas palavras proferidas com tanto arrebatamento, e que aos seos ouvidos pareceram insultuosa offensa; e resentida, invergonhada, e quasi que desesperada, abandonada já de forças, cahio quasi que completamente desmaiada nos braços de Ursula, que lhe bradava:

— Minha mãe... minha mãe!...

E o mancebo arrependeu-se de não se haver exprimido de outra maneira, e pediu ao céo um momento de vida para aquella infeliz mulher, cuja delicadesa, involuntariamente elle acabava de offender, para convencel-a da puresa dos seos sentimentos.

E Deos o escutou; porque aos esforços da donzella, ao acento de sua vóz meiga e doce a pobre mãe abrio os olhos, e fitando a filha com redobrado amor lhe disse:

— Oh! minha Ursula!... este homem...

— Puro é o seo amor, minha pobre mãe! —"animou-se a dizer a moça, rubra de pejo"— é o esposo que meo coração tem escolhido.

— Elle? —"perguntou-lhe angustiada a receiosa mãe conchegando-se a si"— elle? E sabes tu quem seja?

Então o joven cavalleiro erguendo-se com dignidade exclamou:

— Senhora, eu sou Tancredo de ***

— Tancredo de ***!!!... —"exclamaram ao mesmo tempo mãe e filha; e depois um profundo silencio reinou na camara.

Então uma viva pallidez tingio as faces avermelhadas da pobre Ursula, que na sua ingenuidade nunca tinha indagado do nobre cavalleiro o seo sobrenome. Sabia de seo nome, que era Tancredo, e esse lhe bastou; seo nascimento, sua posição social, não lhe lembraram ao menos. Ella amou o mancebo desconhecido, seo amor era por tanto desinteressado, mas agora que um nome illustre lhe soara aos ouvidos, agora que ella acabava de reconhecer no mancebo convalescente seo primo, de destincto nascimento, sua fronte curvou-se abatida, como a flor que, no arrebol da manhan ostentando belleza e seducção, vai rastear na terra, quebrada a haste por furacão violento.

O mancebo comprehendendo então o que se passava na alma dessa menina tão casta e tão delicada como um anjo, tomou-lhe a mão, dizendo-lhe:

— Ursula, eu sou incapaz de uma má acção. O mancebo, que juncto ao bosque solitario, depois de consultar o vosso coração, vos jurou amor e fidelidade, e que tomou a Deos por testemunha de que seria vosso esposo, está agora de novo ante vós. Sou o mesmo, Ursula. Olhai-me.

Então ella levantou os olhos, —havia nelles amor e confiança.

— Agora, senhora —"continuou o mancebo dirigindo-se a Luiza B... que apenas ouvia-lhe a vóz"— agora não me negueis o unico bem que ambiciono na vida. Senhora, eu amo a Ursula, e fora preciso não conhecel-a para sahir desta casa sem leval-a no pensamento e no coração. É Ursula, senhora, o anjo dos meos sonhos, é a esperança de minha vida. Viver sem ella d'ora em diante fora morrer mil vezes, sem nunca encontrar o descanço da sepultura. Não m'a negueis. Ursula é a esposa, que convem a minha alma, é a esposa que pede o meo coração. Sereis vós surda à minha supplica?

Entanto Luiza B... mais tranquilla por aquellas palavras que francas, e leaes lhe pareciam, cobrando ligeira esperança, sem com tudo poder vencer sua commoção, disse com vóz fraca:

— Perdoai, senhor, se não tenho bastante confiança em vós. Bem vedes a que estado me vejo redusida... e eu nunca aspirei a mão de um homem como vós para minha filha. Tancredo de *** quem vos não conhece? sois grande, sois rico, sois respeitado; e nós, senhor? nós que somos?! Ah! vós não podeis desejar para vossa esposa a minha pobre Ursula. Seo pae, senhor, era um pobre lavrador sem nome, e sem fortuna.

O mancebo sorrio-se, e redarguio-lhe:

— Então recusais-me a mão de vossa filha?

— Oh! senhor —"tornou Luiza"— minha filha é uma pobre orphan, que só tem a seo favor a innocencia, e a puresa de sua alma.

— Ursula, —"disse o mancebo, voltando-se para a donzella"— pelo amor do Céo, fazei conhecer à vossa mãe a lealdade dos meos sentimentos.

Então a desvelada mãe, procurando ler no coração do joven Tancredo, e no de sua filha, o sentimento, que os animava, e elevando a Deos seo pensamento por alguns segundos guardou silencio, que ninguem usou interromper, e depois erguendo as mãos ambas ao Céo, disse:

— Tomo-vos por testemunha, meo Deos, de que as minhas intenções são puras.

E acenando para os dous jovens, que a escutavam disse-lhes:

— Aproximae-vos.

Então Ursula ajoelhou aos pés do leito de sua mãe, e Tancredo, imitando-a, dobrou tambem os joelhos, e unidos assim, e cheios de respeito, de amor, e de veneração, aguardaram um gesto, ou uma palavra d'essa mulher, a quem o amor materno tornava n'essa hora tão radiante de celeste bellesa.

E depois de uma breve pausa ella exclamou solemnemente.

— Meos filhos, eu os abençôo em nome de Deos. Que elle escute a minha oração, e os vossos dias corram risonhos e tranquillos sobre a terra.

E depois acrescentou — Bemdito seja o Senhor! minha filha não será mais uma desditosa orphan!


IX

A PRETA SUSANA

Estavam já feitos os aprestos da viagem, e Tulio, entanto no meio da sua felicidade parecia as vezes tocado por viva melancolia, que se lhe debuxava no rosto, onde uma lagrima recente havia deixado profundo sulco. Era por sem duvida a saudade da separação, essa dôr, que afflige a todo o coração sensivel, quem assim o consumia. Hia deixar a casa de sua senhora, onde senão ledos, pelo menos não muito amargos tinha elle passado seus primeiros annos. O negro sentia saudades.

E ahi havia uma mulher escrava, e negra como elle; mas boa, e compassiva, que lhe servio de mãe em quanto lhe sorrio essa edade lisonjeira e feliz, unica na vida do homem que se grava no coração com caracteres de amor — unica, cuja recordação nos apraz, e em que [texto sumido]

Susana, chama-se ella, trajava uma saia de grosseiro tecido de algodão preto, cuja orla chegava-lhe ao meio das pernas magras, e descarnadas como todo o seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço encaruado e amarello, que mal lhe occultava as alvissimas cans.

Tulio estava ante ella com os braços cruzados sobre o peito. Em seo semblante transparecia um quê de dôr mal reprimida, que denunciava o seo profundo pesar.

A velha deixou o fuso em que fiava, ergueo-se sem olhal-o, tomou o cachimbo, encheo-o de tabaco, acendeo-o, tirou d'elle algumas baforadas de fumo, e de novo sentou-se: mas dessa vez não pegou no fuso.

Fitou então os olhos em Tulio, e disse-lhe:

— Onde vás, Tulio?

— Acompanhar o senhor Tancredo de *** — respondeo o interpelado.

— Acompanhar o senhor Tancredo! — continuou a velha com accento reprehensivo — Sabes tu o que fazes? Tulio, Tulio!....................................... Depois de pausa, ajuntou:

— Não sentes saudades desta casa, ingrato?!

— Não, mãe Susana, não me alcunheis de ingrato. Quantas saudades levo eu de vós! oh só Deos sabe quanto me pesam ellas!

— Tu!? — exclamou ella procurando lêr-lhe no fundo do coração os sentimentos, que o animavam. — Tu, não levas saudades algumas. Tulio; se as levasses, quem te obrigaria a deixar-nos?

— A gratidão —"respondeu elle com prestesa"—

— A gratidão!? E não a deves à senhora, que para ti tem sido quasi que uma mãe? não a deves à menina? e porque as deixas? é que não sentes saudades dellas.

— Oh! sinto-as, sinto-as, e muitas, mãe Susana!

— Então não procures hir com esse homem, que apenas conheces! Olha, ainda a pouco vi uma lagrima pender dos olhos d'essa boa menina, essa lagrima, creio que lhe arrancou do coração a noticia da sua partida... e tu vas-te! Quando voltarás aqui?

— A nossa separação, disse-me o senhor Tancredo, será por pouco tempo. Volto para junto de vós, mãe Susana, e a senhora não reclamará em vão os meos serviços.

— A senhora! —"replicou a velha com magoa"— essa, meo filho, jamais reclamará os teos serviços; ou eu me engano, ou tu vás dizer-lhe o ultimo adeos!

— Tulio, —"continuou"— não sabes quanto soffro quando recordo-me de que a nossa querida menina vai tão breve ficar só no mundo! Só, Tulio! Quem a acompanhará? quem poderá consolal-a! eu? Não. Pouco poderei demorar-me n'este mundo. Meo filho, acho bom que não te vás. Que adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se ahi o encontrarás melhor? Olha, chamar-te-hão, talvez, ingrato, e eu não terei uma palavra para defender-te.

— Oh! quanto a isso não, mãe Susana —"tornou Tulio"— A senhora Luiza B... foi para mim boa e carinhosa, o céo lhe pague o bem que me fez, que eu nunca me esquecerei de que poupou-me os mais acerbos desgostos da escravidão, mas quanto ao joven cavalleiro, é bem diverso o meo sentir; sim, bem diverso. Não troco captiveiro por captiveiro, oh não! troco escravidão por liberdade, por ampla liberdade! Veja, mãe Susana, se deve ter limites a minha gratidão: veja se devo, ou não, acompanhal-o, se devo, ou não provar-lhe até à morte o meo reconhecimento!...

— Tu! tu livre? ah não me illudas! —"exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meo filho, tu és já livre?...

— Illudil-a! —"respondeu elle, rindo-se de felicidade"— e para que? Mãe Susana, graças a generosa alma deste mancebo, sou hoje livre, livre como o passaro, como as aguas; livre como o ereis na vossa patria.

Estas ultimas palavras despertaram no coração da velha escrava uma recordação dolorosa; soltou um gemido magoado, curvou a fronte para a terra,e com ambas as mãos cobrio os olhos.

Tulio olhou-a com interesse; começava a comprehender-lhe os pensamentos

— Não se afflija —"disse"— Para que essas lagrimas? Ah! perdoe-me. eu despertei-lhe uma ideia bem triste!

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois exclamou:

— Sim, para que estas lagrimas?!.... Dizes bem! Ellas são inuteis, meo Deos; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! liberdade... ali! eu a gosei na minha mocidade! —"continuou Susana com amargura"— Tulio, meo filho, ninguem a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquilla no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardento do meo paiz, e louca de praser a essa hora matinal, em que tudo ahi respira amor, eu coria as descarnadas e arenosas praias, e ahi com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos labios, a paz no coração, divagavamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias d'aquellas vastas praias. Ah! meo filho! mais tarde deram-me em matrimonio a um homem, que amei como a luz dos meos olhos, e como penhor d'essa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor da minha alma: — uma filha, que era minha vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio sellar a nossa tão sancta união. E esse paiz de minhas affeições, e esse esposo querido, e essa filha tão extremamente amada, ah Tulio! tudo me obrigaram os barbaros a deixar! Oh! tudo, tudo até a propria liberdade!

Estava extenuada de afflição, a dor era-lhe viva, e assoberbava-lhe o coração.

— Ah! pelo céo! — exclamou o joven negro enternecido"— sim, pelo céo, para que essas recordações!?

— Não matam, meo filho. Se matassem, ha muito que morrera, pois vivem commigo todas as horas.

Vou contar-te o meo captiveiro.

Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o mendobim eram em abundancia nas nossas roças. Era um destes dias em que a naturesa parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bella, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que attribuir minha tristesa. Era a primeira vez que me affligia tão incomprehensivel pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ella gentilsinha, e em sua innocencia simelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vel-a..................................................................

Ainda não tinha vencido cem braças do caminho, quando um assobio, que repescutio nas mattas, me veio orientar acerca do perigo eminente, que ahi me aguardava. E logo dous homens appareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira — era uma escrava! Foi em balde que supliquei em nome de minha filha, que me restituissem a liberdade: os barbaros sorriam-se das minhas lagrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possivel.... a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram d'aquelles lugares, onde tudo me ficava — patria, esposo, mãe e filha, e liberdade! meo Deos! o que se passou no fundo da minha alma, só vós o podestes avaliar!....

Metteram-me a mim e a mais tresentos companheiros de infortunio e de captiveiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de crueis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessario à vida passamos n'essa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animaes ferozes das nossas mattas, que se levam para recreio dos potentados da Europa: Davam-nos a agua immunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de agua. É horrivel lembrar que creaturas humanas tractem a seos semelhantes assim e que não lhes doa a consciencia de leval-os à sepultura asphixiados e famintos!

Muitos não deixavam chegar esse ultimo extremo — davam-se a morte.

Nos dous ultimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deos! Da escotilha lançaram sobre nós agua e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim.

A dor da perda da patria, dos entes caros, da liberdade foram suffocadas n'essa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.

Não sei ainda como resisti — é que Deos quiz poupar-me para provar a paciencia de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam.

O commendador P... foi o senhor que me escolheo. Coração de tigre é o seo! Gelei de horror ao aspecto de meos irmãos... os tratos, porque passaram, doeram-me até o fundo do coração. O commendador P. derramava sem se horrorisar o sangue dos desgraçados negros por uma leve negligencia, por uma obrigação mais tibiamente cumprida, por falta de intelligencia! E eu soffri com resignação todos os tratos que se dava a meos irmãos, e tão rigorosos como os que elles sentiam. E eu tambem os soffri, como elles, e muitas vezes com a mais cruel injustiça.

Pouco tempo depois casou-se a senhora Luisa B...., e ainda a mesma sorte: seo marido era um homem mau, e eu suportei em silencio o peso do seu rigor.

E ella chorava, porque doia-lhe na alma a duresa de seo esposo para com os miseros escravos, mas elle via-os expirar debaixo dos açoutes os mais crueis, das torturas do anginho, do cepo e outros instrumentos de sua malvadeza, ou então nas prisões onde os sepultava vivos, onde carregados como ferros, como malevolos assassinos acabavam a existencia, amaldiçoando a escravidão; e quantas vezes aos mesmos céos!....................

O senhor Paulo B... morreo, e sua esposa, e sua filha procuraram em sua extrema bondade faser-nos esquecer nossas passadas desditas! Tulio, meo filho, eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço: mas a dor, que tenho no coração, só a morte poderá apagar! — meu marido, minha filha, minha terra...... minha liberdade.......

E depois ela calou-se, e as lagrimas, que lhe banhavam o rosto rugoso, gotejaram na terra.

Tulio ajoelhou-se respeitoso ante tão profundo sentir: tomou as mãos secas, e enrugadas da africana, e n'ellas depositou um beijo.

A velha sentio-o, e duas lagrimas de sincero enternecimento desceram-lhe pela face: ergueo então seos olhos vermelhos de pranto, e arrancou a mão com brandura e elevando-a sobre a cabeça do joven negro, disse-lhe tocada de gratidão:

— Vae, meo filho! que o Senhor guie os teos passos, e te abençôe, como eu te abençôo.


X

A MATTA

Ursula, no entanto, no meio da acerba amargura da saudade sentia um inefavel transporte de amor e era feliz — seo amor ardente e apaixonado fora comprehendido, sem que por seos actos o desse a perceber ao homem que o merecera. Ambos esses corações sentiram ao mesmo tempo desabrochar-lhes a centelha do amor, que os abrasou. A saudade pungente da donzela tinha pois um lenitivo — a esperança, esse dom do céo que nos acompanha em todas as circumstancias da vida.

Tancredo, esse homem de suas loucas affeições, e que ella tinha amado ainda desconhecido, era toda a sua vida; e por isso a saudade, a mais pungente, a primeira que lhe tocava a alma, envenenava agora essa fonte de praser innocente, esse manancial de venturas, que ahi havia feito nascer a chamma de um primeiro e ardente amor.

Nunca tinha amado — na sua solidão seo coração era tão puro como o de um anjo; foi esse o primeiro choque, que lhe abalou a alma, e a saudade devia corresponder à grandesa desse sentimento. Chorava, pois, porque hia ver partir o objecto de suas mais caras affeições; mas no momento da partida fez um supremo esforço sobre sua afflicção e estendeu a mão ao mancebo, que a beijou com enlevo, e perguntou-lhe com magoado acento, que bem revelava o pungir do seo coração:

— Tancredo, quando vos tornarei a ver?

O mancebo commovido por tanto amor, amor, que era ternamente correspondido, amor, que elle embalde tinha procurado na primeira mulher, que amou, sorrio-lhe com reconhecimento, e tornou-lhe com affecto.

— Lembrae-vos, Ursula, que vos levo no coração, que seguir-me-ha a vossa imagem, que hei de ver-vos em todos os objectos, que me circumdarem, que deixo minha alma e meo coração — todo o meo praser, minha felicidade presente, o esquecimento de um passado amargo, as esperanças de um porvir deleitoso e cobiçado: lembrae-vos d'isto, e acreditae que breve estarei comvosco. Contarei os dias da ausencia pelo pungir de minhas saudades, e por breves que elles sejam achal-os-hei por demais longos. Longiquo é ainda o caminho que tenho a percorrer, mas a lembrança de que um anjo me aguarda com amor, e que esse anjo sois vós, dar-me-ha azas, e estarei comvosco daqui a meio mez. Então —"acrescentou com um acento inexprimivel"— então serei para sempre vosso!

E Ursula sentia-se inquieta, como se um perigo eminente estivesse a ameaçal-a.

O cavalleiro emfim partio, e ella nada disse; e só um soluço doído, como o de quem geme de um pezar profundo, lhe rebentou do peito.

Tancredo transposera já grande espaço, e Ursula ainda não mudara seus olhos humedecidos de sobre elle, e o mancebo proseguia rapido, até que uma ilhota de verdura o encobrio à vista da saudosa donzella. Então deixou o lugar d'essa tocante despedida, e, como desejosa de confiar a alguem a dôr das suas saudades foi correndo à matta, onde tinha ouvido dos labios delle a confissão sincera do seo amor, e logo para ahi dirigio os passos, penetrou a matta, e lá, junto ao tronco secular, começou a derramar sentidas lagrimas. O sol, segundo sua marcha inalteravel, dardejava na terra seos ultimos e enfraquecidos raios, insinuando luminoso resplendores por entre as franças do arvoredo da matta solitaria.

E Ursula soluçava com lembrança da partida de seo joven adorador, quando ao longe julgou ver dous pontos fugitivos. Era Tancredo, era Tulio, ella os reconheceo, ou melhor, o seu coração reconheceo o primeiro; e ella louca de affecto, que lhe requeimava o peito, estendeo-lhe os braços com delirio e com voz sufocada de novo lhe enviou seos ternos protestos. Mas elle hia ja muito avançado para ouvir-lhe essa voz sahida do coração.

A donzella então sahio da matta; porque lembrou-se de sua mãe, e volveo para ella; mas no dia immediato, à mesma hora do crepusculo, voltou à matta, e imergida em sua meditação as vezes esquecia-se de si propria para só pensar no seo Tancredo. Soltando as azas à sua ardente imaginação, seguia-o na sua divagação, escutava-lhe a voz no remurejar do vento, via-o no meio da solidão, e afagava-o com seos meigos transportes n'esses lugares onde só estavam ella e Deos. E depois de longo e profundo scismar, muitas vezes punha-se a entalhar na arvore, testemunha de sua primeira ventura, o nome querido de Tancredo! tão doce aos seos ouvidos. Com tanto esmero procurou entalhal-o esse dia, que completamente absorvida n'esse empenho se esquecera do mundo inteiro. E o nome emfim estava completo, e ella poz-se a soletral-o com um enlevo proprio da sua edade, e que só as almas apaixonadas podem comprehender, quando o som desagradavel, e medonho de um tiro de arcabuz, desparado bem junto della, a veio arrancar a esse recreio do espirito e a fez estremecer convulsa e dar um grito involuntario. Espavorida, e meia morta de terror, hia ella alevantar-se, quando uma avesinha, uma infeliz perdiz, como que implorando-lhe soccorro, veio, ferida e agonisante, cahir-lhe aos pés. Movida de compaixão, desvaneceo-se-lhe por encanto o pavor, que o som do tiro lhe incutira na alma, e tomando a pobresinha em suas mãos, por excesso de bondade levou-a ao peito. Um rastro de sangue lhe nodoou os vestidos alvissimos de neve.

Nesse momento a desgraçada perdiz exalou o derradeiro suspiro: a moça deixou-a cahir das mãos, levou estas aos olhos, e exclamou:

— Jesus! Meo Deos!

É que mudo, e contemplativo, junto della estava um homem. Os olhos, tinha-nos elle fixos sobre a donzella amedrontada — dir-se-hia a estatua do pasmo, ou da admiração.

E Ursula, e esse homem por alguns momentos guardaram profundo silencio; n'ella motivavam-no a surpresa, o terror, o desgosto, que lhe causavam a physionomia desse homem de tão sinistro olhar: n'elle a deleitavel contemplação desse rosto feminil de tão pura e ideial bellesa.

E assim permaneceram, ella a recobrar coragem para escapar a esse desconhecido que a encommodava; elle a contemplar-lhe as negras tranças molemente reclinadas sobre uns hombros de margim, as mãos diaphanas e mimosas, que lhe velavam o rosto; que divisava ser bello, como o rosto angelico de um cherobim.

Por fim a moça desembaraçou de entre as mãos as faces candidas e avelludadas, e olhou em cheio com horror com desdem para o seo mudo companheiro. Assim desdenhoso esse rosto, que ainda tão vivamente se resentia das commoções por que havia passado o coração, era ainda mil vezes mais bello.

E esse olhar tão expressivo, o desconhecido sentio, que queria dizer-lhe:

— Hide-vos!

Elle embalde tentou obedecer a essa ordem muda de um ente tão divino, qual jamais havia visto; mas quem sabe se o coração lh'o permittia?

Extranho foi o que se passou então em sua alma, e elle sentio que alguma cousa lhe abalava o fundo do peito; gemeo de um primeiro affecto, e curvou-se ao impeto de uma paixão insensata.

E o instrumento mortifero estava-lhe nas mãos, e elle o não via; porque seos olhos estavam fitos sobre a encantadora donzella: mas ella o vio, estremeceo, e um novo grito lhe prorompeo dos labios.

Ursula hia fugir.

— Em nome de vossa mãe —"exclamou o caçador, tolhendo-lhe os passos"— não fujais, Ursula!

A esta expressão a filha de Luiza B.. fitou-o com curiosidade: este homem tão extranho conhecia-a sem duvida, e eela nunca o tinha visto! Chamou-a pelo seo nome, supplicou-a em nome de sua mãe!.... quem era elle pois?

Elle comprehendeo tudo, e por um instante a perturbação da sua alma transpirou-lhe no rosto alguma cousa alterado. Depois arremeçou com despreso para longe de si o arcabuz, que amedrontava a moça, e voltou para ella os olhos, como querendo dizer-lhe:

— Tranquillisae-vos!

Com effeito, esta acção de delicada civilidade um pouco a reanimou, e quasi envergonhada de ter patenteado tão feminil fraquesa de animou procurou reassumir alguma coragem, e erguendo a fronte, incarou o desconhecido com uma friesa, que o perturbou.

Elle tentou fallar; mas os olhos dessa menina lhe impuzeram respeitoso silencio.

Esse homem não estava no verdor dos annos; mas sua physionomia, supposto que severa e pouco sympatica, n'essa hora crepuscular, que dá certa sombra a toda a naturesa, não denunciava a sua edade. A pelle sem rugas, os olhos negros e scintilantes, tinham um que de bello; mas que não attrahia. Era de estatura acima da mediocre, esbelto, e bem conformado; e as feições finas davam-lhe um ar aristocratico, que, quando não attrahe, sempre agrada.

Mao grado seo Ursula começou a sentir-se opprimida pelo olhar do desconhecido, a quem o seo deixava já de dominar, e cahio de novo sobre o assento talhado no tronco. Era como se esse homem a tivesse magnetisado. A sua vista causava repugnancia, queria escapar-lhe; mas as forças abandonavam-na e seos bellos olhos côr de ebano estavam sobre elle fixos.

O terror, a desconfiança, a inquietação, pintavam-se no rosto pallido e afflicto, no olhar fixo e pasmado dessa pobre moça.

— Meo Deos! —"dizia ella comsigo"— quem será este homem, e o que quer elle de mim?

Diversos eram os pensamentos do caçador.

Uma chamma activa lhe abrasava a alma, talvez a primeira que assim o requeimava, e bem ardente devia ser ella; porque elle sentia no peito ondeiar-lhe, e ferver em caixões o violento fogo de uma cratera. Ainda assim, mal lhe trahia no rosto o que lhe hia lá na alma. Elle deo um passo para a donzella, e ella de prompto ergueo-se, tremula de angustia e de terror, e bradou com ancia:

— Oh! quem quer que sejaes, senhor, que me quereis?! Segui o vosso caminho, e deixae-me socegada e tranquilla.

— Meo Deos! senhora —"exclamou elle"— não vos comprehendo. Em que vos posso encommodar?!...

— Acabae, senhor —"continuou ella"— esta penoza entrevista. A vossa presença não só encommoda-me, como me causa susto.

— Deveras? —"interrompeo o desconhecido"— deveras! Ursula, porque vos causa susto a minha presença, que mal vos hei feito? acaso me conheceis?

— Senhor —"tornou ella com voz supplice"— não me védes a sahida desta matta, necessito voltar para junto de minha mãe.

— De vossa mãe! —"inquirio o caçador com emoção"— e não foi em nome della que acabo de supplicar-vos que não me fugisseis? Ursula, talvez me perdoasseis essa desagradevel impressão, que a primeira vista tive a infelicidade de causar-vos, se soubesseis quem sou, e o quanto hei sido amigo de vossa mãe. De vossa mãe —"repettio elle com voz um pouco alterada"— Luisa! Luisa! Quanto os annos a terão desfeito! Não sereis tambem minha amiga, quando me conhecerdes?

— Eu! —"exclamou a moça com ingenuidade"— eu, senhor! e porque? Minha infeliz mãe vergou sob a influencia de uma sorte adversa, gemeo até hoje as dores de uma penosa enfermidade, chorou com amargura uma viuvez prematura, e a orphandade de sua filha, e nunca um amigo generoso, ou uma alma sensivel, nunca, senhor, enchugou-lhe a lagrima ardente, que lhe queimava as faces.

Nunca Luiza B... teve amigos. Zombaes, ou faltaes à verdade.

— Usula, —"tornou elle"— que prevenção é essa? Ursula, vós me odiaes.

— Não, mas não vos creio. E demais, para que me demoraes? Sede breve, dizei o vosso intento, que quero partir.

E seos olhos, descahindo para o chão, encontraram a ave morta, que lhe cahira aos pés, e os seos vestidos nodoados d'aquelle sangue innocente. Estremeceo involuntariamente, e contrariada pela obstinação d'aquelle homem de tão sinistro aspecto, disse-lhe com certo tom de desespero:

— Sim, tinheis razão quando dicesteis que eu vos odiava. Sois obstinado em encommodar-me; sabei pois que me é insuportavel a vossa presença. Vedes esta avesinha? Para que a matastes? Não era ella tão innocente e bella? A dôr do seo coração ferio o meo, e o seo sangue tingio-me os vestidos. Esse acto de inutil crueldade faz-me aborrecer-vos.

— Senhora! —"retrucou elle"— Que infelicidade! incorrer no vosso desagrado! mas.....

— Mas, senhor, —"interrompeo ella impacientando-se"— que pretendeis?

— São loucas as minhas pretenções, senhora, sim, loucas; porque se me animasse a confiar-vo-las, o vosso despreso hia talvez esmagar-me. Permitti que me conserve em silencio, que nada tem elle de offensivo para vós.

— Pois bem —"disse ela"— guardae-o muito embora; mas deixe-me em nome do céo.

— Deixar-vos?!... oh! não, mil vezes não! E cedendo a um excesso de apaixonada loucura, ou de amoroso delirio, curvou-se ante Ursula, pallida de afflictiva angustia e de antipathico horror.

— Ursula! Ursula —"continuou com accento arrebatado"— oh! não me desdenheis, não me acabrunheis e desespereis com o vosso rancor. Se me amardes, no meo amor encontrareis a felicidade; porque agora sou vosso escravo. Nunca o tereis mais humilde, mais docil, acreditae-me. Nunca amei, e julguei mesmo — louco que eu era! — julguei no meo orgulho estupido que nunca amaria mulher alguma. Destruistes a minha illusão. Vi-vos, e um amor apaixonado, como um filtro venenoso, se me derramou na alma. Nunca suppliquei, e agora eis-me supplice, humilhado na vossa presença: na presença de uma menina!

Ursula, —"continuou"— oh! pelo céo, acreditae-me. Amo-vos. Apenas ha um momento que vos conheço e parece que ha um seculo que vos idolatro. É ardente e violento o affecto que nutro no peito. Menos puro fôra elle, que, immenso como acabo de confessal-o, sacial-o-hia sem dificuldade. Meos escravos não estarão longe, muitos d'elles seguiram-me à caça: chamal-os-hia, e vós serieis conduzida em seos braços, apesar dos vossos gritos, e do vosso desespero, até minha casa, onde serieis minha, sem terdes o nome de esposa.

Não é isto verdade?

Mas não. O amor que ora desenvolvestes em meo coração é tão ardente, quanto respeitoso. Nasceo agora, mas tanto já influio sobre mim, que é humilhado que vos peço que o não desdenheis.

Se podesseis sentir, comprehender somente, o que ora se passa em mim....... mais sois inflexivel! Ursula, quando voltardes aos vossos lares, quando, descançada em vosso quarto, recordardes esta scena da matta, não zombeis do homem que vos falla; por que este amor, que me escalda o coração, hade durar em quanto eu existir.

Ursula, timida e angustiada, ouvira todo este discurso sem interrompel-o; mas o coração lhe estava gelado de afflição.

— Senhor, —"disse ella com voz tremula e titubante,"— acabasteis?

— Aguardo por uma palavra vossa —"tornou o desconhecido, fitando n'ella um olhar inexprimivel.

— Uma palavra?! — Aguardais uma palavra minha? Pois bem! Abusastes por demais da minha fraqueza. Estou só, o lugar ermo, tudo vos protege, e vos anima. Se fosseis mais cavalheiro, serieis comedido em expressões, que sempre foram tidas por offensivas quando ditas por estranhos, e nunca chegarieis a uma impertinencia tam desagradavel.

E com dignidade e serenada accrescentou:

— Senhor, eu devo voltar para minha casa.

O caçador tomou-lhe das mãos, e disse-lhe:

— Ao menos dizei que não me odeaes!

— Sim, —"tornou a moça, procurando desprender-se-lhe das mãos"— sim, não vos odeio; mas deixae-me em paz.

— Em nome de vossa mãe, Ursula, imploro-vos....

— O que senhor?

— Uma só palavra, que me anime.

— Oh! não, nunca —"replicou ella com energica viveza. E depois interrogando-o com o olhar, tractou de empregar pela primeira vez a dissimulação, e ajunctou:

— Afirmastes ser amigo de minha mãe, não o acreditei; fallais-me de um amor, que a meo pezar em vós despertei, e quereis que o corresponda, tenho-me até agora negado similhante compromisso; mas tudo isso pode modificar-se, se eu puder conhecer-vos, se for permettido agora saber quem sois. O vosso nome?

— O meo nome! —"exclamou tristemente o caçador deixando cahir as mãos da moça"— Se o conhecesseis!... Não, Ursula, eu quero ser amado, ainda mesmo desconhecido.

E um assomo de dor, e uma onda de frenetica raiva, baralharam-se na alma do desconhecido, e marulhadas, e ferventes, vieram reflectir-lhe no rosto. E as feições tomaram expressão difficil de descrever: os labios agitaram-se convulsos, os olhos faiscaram fulvo brilho, que se extinguio em breve. Um doloroso abattimento, que denunciava talvez a recordação penosa e amarga de algum acontecimento anterior, lhe empallideceo o rosto. Elle suspirou, e de novo objectou:

— O meo nome, Ursula, mais tarde o sabereis!

Agora hide-vos!

Rogae ao veo, —"accrescentou"— meiga, e innocente donzella, rogae ao ceo para que vos possa esquecer; porque se o meo amor proseguir assim, extremoso, indomavel, apaixonado, haveis de ser minha; porque ninguem me desdenha impunemente. Ouvis? —"disse em tom de ameaça, e depois em meia supplica ajuntou"— Oh! por Deos, não troqueis a ventura pela dor, e quem sabe? pelo!....................................................

Esta ameaça horrivel, dicta com voz alterada, e em taes horas, irriçaram os cabellos da moça, que ficou pallida e queda de horror.

— Hide —"concluio elle.

E ella toda agitada e confusa deixou a matta, promettendo a si mesma não voltar jamais àquelle lugar.

E o caçador seguindo-a com os olhos e com o coração, quando a moça desappareceo n'uma volta do caminho, com olhos arrasados de lagrimas, disse:

— Mulher! anjo ou demonio! Tu, a filha de minha irman! Ursula, para que te vi eu? Mulher, para que te amei?!.... Muito odio tive ao homem que foi teo pai: elle cahio às minhas mãos, e o meo odio não ficou satisfeito. Odiei-lhe as cinzas; sim odiei-as até hoje; mas triumphaste do meo coração; confesso-me vencido, amo-te! Humilhei-me ante uma creança, que desdenhou-me e parece detestar-me! Has de amar-me. Humilhado pedi-te o teu affecto. Maldição! Paulo B... estás vingado!

Tua filha opprime-me com o seu indifferentismo, e esmaga-me com o seo despreso, como se me conhecera!

Mulher altiva, has de pertencer-me ou então o inferno, a desesperação, a morte serão o resultado da intensa paixão que ateaste em meo peito.


XI

O DERRADEIRO ADEOS !

Ursula ainda tão nova começou a vergar sob o pezo de tantas commoções encontradas. Pallida e abattida, similhava o lirio do valle, que a calma emmurcheceo. Era debil para tão grandes embates.

Na sua solidão o homem tinhahido pertubar-lhe a virginal puresa do coração para dar-lhe uma nova existencia — o amor; e depois ainda o homem, invejoso d'essa momentanea e fugaz felicidade, veio roubar-lhe a tranquilidade do espírito, e envenenar-lhe a suave esperança de uma vida risonha e venturosa, expremendo-lhe no coração a primeira gotta de fel do calix que ella devia libar até às fezes.

Ella, conturbada e aflicta, recolhia-se em si para meditar nas expressões ardentes e ameaçadoras do homem da matta, que a amedrontavam, e que a gelavam até o fundo da alma.

E quem será elle? Deos meo! Por que fatalidade me vio, e disse-me que me amava com amor ardente e intenso, que terá a duração da sua vida! Presagia-me o coração afflicto, que esse homem e o seu amor me hão de ser funestos!

Uma voz interna diz-me que ahi está uma grande desgraça. Oh! esse homem insanguentou os meos vestidos, que eram tão alvos! Cada nodoa desse sangue, que tanto me horrorisa, parece-me que serão outras tantas lagrimas de amargura, que tenho de verter.

Oh! meo Deos!... meo Deos, permetti, Senhor, que eu me engane, e que jamais o torne a ver.

Tancredo! livrae-me d'esta aparição ou d'este ente repulsivo e ameaçador!.............................................

Tancredo! aonde estás a esta hora? que fazes, que não me vens proteger contra a insolencia e as ameaças desse caçador desconhecido? O teo amor hade amparar-me. Oh, sim, o teo amor me dará forças para destruir suas loucas esperanças e esquecer suas terriveis ameaças.

E ella feixou os olhos, mas na mente se lhe figurava constantemente aquelle rosto severo, ardente, apaixonado, e ameaçador, aos ouvidos lhe retumbava o som da sua voz: — era como se ainda o visse, ainda o ouvisse, e ella desanimada e sem forças procurava desvanecer essa visão infernal. Depois de algum tempo de lucta interna, exclamou: Oh! que homem tão ousado, cujo olhar sinistro me amargurou a alma!

Appareceo a noite rebuçada no seo manto de escuridão, e a donzella suppoz encontrar o socego das trevas e no somno; mas tremula, e agitada no seu leito, invocava embalde o somno, que o phantasma se erguia mudo e impassivel, e a sua mente alucinada dava-lhe movimento e voz, e elle blasphemava, e ameaçava, e sorria-se com sarcasmo. Os olhos chispavam fogo, e os labios agitavam-se convulsos e os membros e o tronco pareciam cobertos de sangue.

E ella revolvia-se no leito, e o corpo tremia-lhe e o suor corria-lhe, e o peito oppresso ofegava: era um pesadelo insuportável!!!!!!!!!!!!!!

A noite hia já alta, a moça entrou no quarto de sua mãe; hia talvez revelar-lhe o que se havia passado na matta, descrever-lhe as feições do desconhecido, o accento de sua voz, para ver se descobria indicios, que a illucidassem sobre esse terrivel adorador, ou ao menos procurar conforto no coração materno, quando com redobrada amargurada esta disse-lhe:

— Animo! minha querida filha, não chores: os meos soffrimentos vão já acabar. Sinto aproximar-me da sepultura! mas Deos me hade permittir ainda ver-te feliz. Sim, feliz! porque Tancredo te hade de dar a ventura, que tanto hei pedido ao ceo para a minha Ursula.

A moça, então traspassada de dor, olhou para essa infeliz mulher a quem tão ternamente amava, estremeceo de angustia. Luisa B...., não poderia já aspirar muitos dias de vida, e essa lembrança fez-lhe esquecer sua desagravel aprehensão, e até mesmo seo amor apaixonado para entregar-se toda à dor de uma eterna separação, que ella antevia como irrevogavel.

E debruçada sobre o collo materno, a donzella derramava sentido e terno pranto que vinha lá do fundo da alma, onde havia dor, mil vezes mais cruel, que a propria morte.

Ella feixava aquelles olhos alquebrados, que mal podiam já acareciar os seos, aquelles labios semi-mortos, que fracamente exprimiam a ternura maternal, aquellas mãos hirtas, e regeladas, que só por sobrehumano esforço erguiam-se ainda para abençoal-a, e o coração partia-se-lhe de angustia.


Brilhou alfim a alvorada, que espancou essa noite tão longa, e de tantas dores. Luisa B... recobrou ficticios signaes de melhoras.

Ursula, mais reanimada, tinha seccado o seo pranto, e feliz pelas melhoras de sua mãe procurava esquecer o desconhecido da matta, cuja entrevista desejava relatar à mãe; mas aguardava para esse effeito um dia em que esta se sentisse mais forte e vigorosa.

Ursula receiava incommodal-a com os seos receios, aliás tão bem fundados. Tinha razão — Luiza B.... no afflictivo estado em que se achava, morreria instantaneamente vendo a filha querida de seo coração ameaçada por um homem, cuja feresa desenhava-se no seo aspecto.

Sim, Ursula tinha razão, Luiza não poderia resistir a esse novo embate: era demais para uma fraca moribunda.

E alguns dias tinham-se já passado depois dessa noite de penosas commoções, e Luisa B.... era ainda a mesma debil, esqualida enferma, mas terna, e desvelada mãe, e parecia mesmo na aproximação da morte redobrar de affectos e de caricias, ameigando com ternura extrema sua inconsolavel filha, toda pranto e saudades.

Um dia, pore, Luiza pareceo recobrar forças, que a muito a haviam abandonado, e a filha vio com prazer errar-lhe nos labios um sorriso animador. Acreditou que suas lagrimas tinham tido o poder de arrancar a mãe às mãos da morte, e prostrada rendeo graças ao Senhor.

Pobre Ursula!..........................................................

Era esse o dia destinado, e ha tanto esperado, para ella informar sua mãe sobre a entrevista da matta, e começava já a dispol-a para esse fim, quando batteram à porta.

Ella levantou-se precipitadamente, e foi abril-a: era um escravo, que inquerio:

— A senhora Luiza B.....?

— É minha mãe —"tornou a moça".

— Fazeis-me o favor de entregar-lhe essa carta, minha senhora.

— Sim —"tornou Ursula, e acrescentou:"— Não se poderá saber d'onde veio?

O negro, sem dar resposta, saudou-a humilde e respeitosamente, e picando o cavallo, seguio a trote largo pela immensidade do campo.

A moça voltou para junto de sua mãe, e apresentou-lhe a carta, tremula e desasocegada.

— Uma carta! —"exclamou esta."— E d'onde virá ella? Lêde-a, minha filha.

Ursula quebrou o sello da carta, e reprimindo sua inquietação, começou n'estes termos:

Luiza, minha cara irman.

— É de teo tio —"exclamou a mãe, confusa, e assustada."— Que me quererá?!

Ursula comprimio com as mãos a fronte, que subita dor accomettera. Uma vertigem lhe obscureceo a vista; mas acalmando-se-lhe o natural sobresalto, continuou a lêr:

É necessario que nos vejamos ainda uma vez na vida, e conto que annuirás a este desejo, ou antes supplica de teo irmão.

Minha irman! minha Luiza! muito me tens a perdoar; porque gravissimo é o mal que te hei feito; mas és boa, teo coração não pode alimentar odio por aquelle que foi socio dos teos jogos infantis, e que na juventude te amou com essa doçura fraternal, que só tu comprehendias; porque eram gemeas as nossas almas.

Luisa, minha doce irman, porque me tornei eu máu e odioso a meos proprios olhos depois que tomaste Paulo B... por esposo? Porque? nem o sei eu! Talvez o desejo que sempre tive de dar-te uma posição mais brilhante, como muitas vezes te fiz sentir. Malograste, no entretanto, as minhas intenções, esposando esse homem, que....

Esse foi o teo crime, crime que eu nunca te haveria perdoado, se o céo se não incumbisse desta conversão, que sem duvida te hade admirar; porque a mim mesmo me admira.

O mais dir-te-hei vocalmente; porque só deve esta preceder-me uma hora. Adeos.

Teo affectuoso

FERNANDO.

— Meo Deos! —"exclamou a viuvaa de Paulo B... apoz alguns momentos de silencio"— Que quer dizer isto? Esta conversão! oh! não o comprehendo. Ursula, minha filha, não sei porque aperta-se-me o coração à aproximação d'essa entrevista. Fernando, meo irmão! o teo odio ainda não estará vingado?!

Mas —"continuou a pobre mulher"— elle me falla de perdão: Deos! será possivel que se haja arrependido, e que o meo soffrimento lhe tocasse o coração impedernido?!

— Duvido,minha mãe —"objectou Ursula"— duvido. Para que vem elle perturbar o nosso socego?

E entrou a scismar sobre tão inexperado e estranho assumpto. Fallava em socego! como se ella o gozasse ha dias! Depois dessa desgraçada entrevista da matta, sentira um só dia o que era tranquillidade? Não, por certo. Mas, Fernando P***! que vinha elle ahi fazer? Ursula tinha horror a simelhante parente, e implorava ao céo o arredasse sempre da sua vista. Graves suspeitas pesavam sobre o commendador, e a infeliz orphan não podia lembrar-se delle sem temor.

E Luisa tinha suas razões; por isso agora mais que nunca estava afflicta, e inquieta, mas Ursula para tranquilisal-a, disse:

— Porque estaes assim a tremer, minha querida mãe? Que mal vos poderá elle fazer alem dos que já tem feito? Elle vos falla em perdões, tracta de uma conversão.....

— Operada pelo ceo, que a elle mesmo admira! —"tornou Luiza, interrompendo sua filha, que cada vez se sentia mais inqueita." Esta conversão assemelha-se a todos os actos de sua vida: esta conversão deve nos funesta!

— Pensaes isto, minha mãe? —"interrogou a pobre Ursula pallida e convulsa."

— Sim, minha filha, e quasi que t'o posso assegurar.

— Sancto Deos! —"exclamou Ursula precipitando-se para fóra do quarto de sua mãe, e cobrindo o rosto com as mãos ambas"

O caçador desconhecido acabava de entrar sem annunciar-se.

— Fernando! —"exclamou Luiza, tornando-se livida, e tiritando de frio."

— Luiza! Luiza, minha querida irman! —"bradou o commendador, correndo para ella, e unindo-a ao seo coração."

Este brado terno e commovido revocou a infeliz mulher à uma vida, que ella já julgava extincta, e esquecendo por um instante todo o amargor, que Fernando lhe derramára no coração, sorrio-se para o irmão que amára, e por momentos brilhou-lhe no rosto a alegria, e disse:

— Meo irmão!

E Fernando cedeo então ao mais bello transporte da sua alma, ao unico sentimento virtuoso, que Deos ahi lhe implantára, e que embalde tinha luctado por abafar, ou destruir.

Fernando combattia a desoito annos o poder desse amor fraterno, e seo orgulho conseguio por algum tempo, o que o coração repugnava, o que a razão, e a intelligencia condemnavam, e o que elle sentia dolorosamente; porque só n'esse affecto lhe estava a ventura de toda a sua vida.

E para vencer-se obstinadamente evitava a vista de sua irman, a que não poderia resistir, para bem saciar a sua vingança, para bem flagelar-se, flagelando-a na sua desgraça.

Fernando tinha vivido solitario, e desesperado com essa luta terrivel do coração com o orgulho: e esses desgostos intimos, que elle proprio forjava, o tinham embrutecido, e tanto lhe afeiaram a moral, que era odiado, e temido de quantos o praticavam ou conheciam de nome.

Elle tornára-se odioso e temivel aos seos escravos: nunca fôra benigno e generoso para com elles; porem o odio, e o amor, que lhe torturavam de continuo fiseram-no uma féra — um scelerato.

Nunca mais cansou de duplicar rigores às pobres creaturas, que eram seos escravos! Aprasia-lhe os soffrimentos d'estes; porque elle tambem soffria.

Eis ahi pois a alma implacavel na maldade do irmão de Luiza.

E Ursula! onde estava ella?

Pobre menina! Correo sem tino, e sem consciencia do que fazia, porque acabava de reconhecer em seo tio o caçador, cuja voz, e cujas expressões não podiam ser esquecidas. Seo aspecto, suas ameaças, seo amor violento e lebidinoso já o tornavam repellente e agora via nelle Fernando P..., o perseguidor de sua mãe e talvez o assassino de seo pae!..... O coração pulsava-lhe com vehemencia — parecia querer estalar.

Comprehendeo toda a extensão do perigo eminente, que estava sobre sua cabeça. Sua mãe pouco poderia viver, Tancredo estava ausente. O commendador hia triumphar, já não havia duvida. Oh! essa ideia era horrivel!

Ursula correo louca por algum tempo, ora invocando a morte, ora maldizendo a hora de seo nascimento, até que afinal, vencida por tão violentos embates, cahio em uma prostração morbida, d'onde a preta Susana a veio arrancar para dizer-lhe:

— Hide, hide, que minha senhora lhe quer falar. Ah! ella não pode tardar.

E abafou-lhe a voz copioso pranto.

Ursula abrio os olhos, estremecendo, e perguntou:

— Que me queres?

E reparando que a escrava chorava, tornou-lhe enternecida:

— Pois que, Susana, tu tambem choras?!

A velha africana pegou-lhe da mão, e disse:

— Acompanhae-me, vossa mãe está a morrer.

Ursula exclamou fóra de si:

— Oh! não, mentes, não pode ser! Tu te enganaste, Susana, não é verdade?

Susana tomou-a nos braços, e apontando para o leito da moribunda:

— Vede-a. Ella vos quer fallar.

Luiza B... estava só: seo irmão tinha-lhe já dicto o derradeiro adeos, ella agora necessitava fallar a sua filha — desabafar com ella e dar-lhe o ultimo osculo maternal!


XII

FOGE!

Aproxima-te, minha pobre filha, —"exclamou a infeliz mãe com voz fraca e arrastada"— ah! que desgraçada entrevista!

— Bem mo presagiara o coração!

E as lagrimas começaram a cahir-lhe a dous e dous.

— Baralham-se-me as ideias, minha Ursula, —"tornou-lhe a mãe, em cujo rosto se pintavam já os indicios da morte"—talvez não me comprehendas bem; mas escuta-me. Meo irmão veio abreviar os instantes, que ainda me restavam para te amar, e proteger-te contra os seos caprichos! Sabes, minha filha, o que quer esse homem?

E um tremor convulso agitou os membros da desditosa mãe, que ainda na sua agonia velava pela infeliz orphan.

A filha, a desvelada filha, tomou-a nos braços, unio-a ao seo coração, orvalhou-a com as suas lagrimas, e suffocadas pela dôr lhe bradou:

— Oh! minha mãe... minha querida mãe, que foi que vos fez esse homem malvado?

A pobre mulher não pôde retrocar-lhe, feixou os olhos, e parecia que de todo lhe faltava a vida:

Ursula gritou, pedio socorro, e ao seo pranto doido, só teve por echo o pranto de Susana!

Luiza tornou a si d'essa penosa e prolongada syncope, porque Deos quiz que uma vez ainda ella falasse com a sua filha, por isso ella recobrando um breve alento; mas já com os olhos amortecidos e vidrados, e com a voz pausada e abafada, que a custo se lhe deslocava dos labios, disse:

— Minha filha querida... minha Ursula, para que te dei essa vida?! Ah tu que eras o encanto dos meos dias... tu, a alma da minha existencia... Oh! meo Deos! Senhor, dae-me se quer poucos dias mais de vida para protegel-a, para amparal-a..................................

E o pranto doloroso embargou-lhe a voz.

— Oh! não choreis, minha mãe, pelo céo —"exclamou a pobre moça afflicta por tantas dores"— Oh! não choreis!

— Se soubesses minha filha... —"hia a dizer a mizera agonisante."

— Tudo sei, minha querida mãe —"interrompeo a moça, torcendo as mãos de desespero." Sei tudo, elle diz que me ama, e que o seo amor ninguem desdenha impunemente.

— Ouviste-o em quanto me atormentava pela ultima vez?

— Oh! não! —"tornou Ursula"— esse homem me horrorisou, e eu fugi d'elle.

— E entretanto sabes que elle quer desposar-te?

— Disse-m'o na matta, quando me annunciou seo amor apaixonado. Mas perdoai-me de vos não ter ainda relatado esse triste acontecimento da minha vida. Via-vos tão debil, tão desalentada... que me não atrevia a dar-vos esse golpe. Uma tarde, não ha muito, estendi o meo passeio até à matta proxima, e ahi meditando sobre as promessas de.................

Ursula enrubeceo, e a voz sumio-se-lhe dos labios.

Depois de leve pausa continuou:

— Esqueci-me das horas, o tempo foi passando, e só ao cahir da noite é que dei fé de mim e tractei de voltar. Nesse comenos ouvi o estampido de uma espingarda, e uma pobre perdiz que, ferida, veio como pedir-me socorro. Acolhia-a ao seio; mas nem bem o havia feito, que dei juncto a mim com um homem, que me fixava com olhos sinistros.

Tomou a donzella algum alento, e só depois de alguns minutos é que pôde relatar à sua moribunda mãe a sua fatal entre-vista. Terminada que foi a narração acrescentou — Por ultimo cobrei animo e quiz fugir-lhe; mas elle implorou em vosso nome, e eu ouvi-o!

Louca, louca, que eu fui, tinha diante dos olhos o commendador P***, o perseguidor de minha mãe, e...

— O assassino de teo pae, minha Ursula —"interrompeo Luiza B... com indefinivel amargura."

— Será possivel? —"exclamou a moça attonita."

— Sim —"tornou ella"— acaba de confessar-m'o n'um transporte, que diz de vivo arrependimento.

— Oh! que horror! —"disse Ursula levando as mãos ao rosto livido de pavor."

— E diz que loucamente te adora, e quer compensar-te com o seo nome, e com a sua fortuna dos males que nos ha feito!...

— Que insulto nos faz o commendador — o assassino de meo pae!!!

— Silencio, minha pobre filha! — Agora escuta-me: são estas talvez minhas derradeiras palavras, pesa-as bem. Não chores, não, minha filha, não chores, se queres ainda ouvir-me por um instante. Bem sei quanto te é penosa esta dura separação; mas tarde, ou cedo, ella devia chegar, e tu deves resignar-te, e aproveitar o tempo, que urge.

Fragil, e já sem forças, eu vi Fernando à cabeceira do meo leito como se fosse anjo do exterminio a fallar-me de cousas, que só me poderiam abreviar os instantes. Conheci que chegava o termo dos meos dias, elle tambem conheceo, e, com quanto esta ideia, apesar da duresa do seo coração, lhe fosse amarga, elle comtudo deixou-me à pressa hir à cidade de *** donde deve voltar amanhan.

Fernando voltará aqui com um sacerdote, que hade abençoar, em presença deste leito de agonia, a união forçada da filha de Paulo B..., com o seo assassino!

— Oh! não... nunca, nunca! —"bradou a donzella fóra de si

— Sim, nunca —"replicou a pobre moribunda aproveitando suas ultimas forças; mas um novo desmaio, seguido de violentas convulsões reappareceo, e seo rosto tornou-se mais esqualido, e as feições mudadas e o suor gelado da morte mostrou-se.

— Meo Deos! meo Deos! —"exclamou Ursula no auge da mais pungente afflição—": oh! vós Senhor, que sois bom, e que podeis tanto, restitui-lhe a vida ainda em troco da minha! E cahio sobre o corpo já meio gelado da infeliz mãe.

Luisa de novo abrio os olhos para dar um ultimo adeos à filha, de suas adorações, e por um exforço derradeiro, disse-lhe:

— Ursula, minha filha, teme a colera de Fernando; mas sobretudo teme e repelle seo amor desenfreado e lebidinoso.

Meo Deos! perdoae-me se pecco nisto....

Aconselho-te.... que fujas....

Foge... minha... fi...lha!.... fo...ge!....

Foram suas ultimas palavras a custo arrancadas e entre-cortadas pela morte.

Então Ursula, a pobre orphan, ajoelhou aos pés do leito, e volvendo em seos braços o corpo inanimado, com seos labios, tremulos de dor, tocou os labios frios e inertes de sua mãe, tentando, embalde, transmittir ao coraçãomaterno o halito ardente, que a animava.

Mas quando voltou à realidade, quando teve plena consciencia de que estava só, e entregue ao rigor da sua sorte, quando pôde acreditar que sua mãe já não existia, então prorompeo em lagrimas, e estorceo-se pelo chão, e agitou-se como uma possessa, porque as grandes e profundas dôres do coração só acham alivio na expansão illimitada da dôr, e na fadiga do corpo e do espirito.................................................................


Ao romper do seguinte dia via-se um cadaver quasi sem acompanhamento, que hia ser inhumado no cemiterio de Sancta Cruz.

Era o da infeliz paralytica Luiza B....


XIII

O CEMITERIO DE SANCTA CRUZ

Era uma d'essas tardes, que parecem resumir em si quanto de bello, de luxuriante, e de poetico ostenta o firmamento no equador; era uma d'essas tardes, que só Bernardin de Saint-Pierre soube pintar no delicioso Paulo e Virginia, que deleita a alma, e a transporta a essas regiões aereas, que só a imaginação comprehende, e que divinisando as nossas ideias, nos torna superiores a nós mesmos.

Era pois uma dessas tardes em que o sol no seo descambar para o accaso recebe mil e cambiantes côres, invejadas pela palheta dos Raphaeis, e que se confundem com o sorriso da triste amante, a lua, que resurge pallida na orla do horisonte. Os ultimos raios de um sol vivido misturavam-se com os raios prateados de uma lua de agosto.

E na ampla solidão dos campos, onde se espelhavam as harmoniosas despedidas do rei do dia e o frouxo brilho da deosa caçadora, mais poetica magia difundia no espirito d'aquelle que a essa hora encantadora e melancolica os atravessasse com o coração tranquillo.

Silencioso e ermo estava então o cemiterio de Sancta Cruz, e só o vento, que silvava entre o arvoredo ao longe, e que mais brando gemia tristemente n'essa cidade da morte, é que quebrava a solidão monotona e impotente d'esse lugar do esquecimento eterno!

Esquecimento! Encontral-o-hemos acaso? Essas dores, que nos retalham o coração, serão por ventura esquecidas, dormirão acaso no fundo do sepulchro? Quem sabe?! Quem nol-o poderá affirmar!? Deos. Só Deos o sabe, e os seos arcanos são incomprehensiveis. O morto dorme o somno eterno, e a sua campanha é muda, como os seos labios!

O sepulchro recebe o segredo do morto, e guarda-o, e o não revela!

E o que vive, diz:

O morto repousa sob a lousa, seo corpo reduz-se a terra, e a paz e o esquecimento das dôres humanas, que elle ha tanto anhelava, lhe offerece a morte.

Oh! passam-se os seculos, e elle não volve! É sempre mudo, e frio como a terra, que em borbotões se derramou sobre elle!..........................................................................................................................

Simples e quasi nú era esse cemiterio de Sancta Cruz — como devera ser a ultima morada do homem.

A vaidade não tinha franqueado o seu liminar; ahi não haviam mausoleos, nem floreadas campas, mas uma capellinha singela e pobre e a cruz com os seos braços destendidos, protegendo as cinzas dos que eram pó, e denunciando que na vida seguiram a sublime religião do Cordeiro Crucificado. Alem d'isso uma ou outra arvore, e hervas rasteiras cobrindo o terreno e invadindo tudo.

A estrada, que hia a Sancta Cruz, abria-se aos pés desse lugar de tão saudosas recordações.

Ursula, a essa hora do crepusculo, desatinada por tantas dôres, depois de vagar incerta no caminho, que queria seguir, tinha emfim penetrado no ambito pavoroso, que encerrava os restos de sua mãe.

De joelhos beijou a terra humida, e ainda revolta pelo alvião: e o pranto amargo, que lhe innundava as faces, e o soluçar magoado, que vinha lá dos abysmos de sua alma, eram a mais sincera expressão da sua dor — e a mais grata prece ao altissimo.

Que soledade a sua! Entregue agora a toda a força de um destino, cuja duresa começava a experimentar, no começo dos seos annos, ella não podia ter animo para encaral-o sem tremer.

Que lhe restava agora sobre a terra? um amor ardente e apaixonado, ternamente correspondido;; mas que a esta hora, ignorando toda a sua angustia, todo o perigo, que a ameaçava, estava longe de a poder salvar, e amparar contra as furias de Fernando!

Pobre e desditosa Ursula!... era essa a unica ventura que lhe restava — o único élo, que ainda a prendia à cadeia da vida!

Mas a misera transida de dôr, no excesso de sua intima e irremediavel magoa, esqueceo o seo amor, e até mesmo a odiosa imagem do commendador. A inconsolavel filha chorava a perda irreparavel e eterna de sua querida mãe!

No fundo desse sepulchro tão frio e tão silencioso lhe estava a alma!

Ella beijava o pó da supultura, e um pranto sentido cahia sobre essa terra, e filtrando-se, hia como que despertar do somno eterno aquelle coração irregolado pela morte, e que tanto amor lhe havia tributado.

E a lua melancholica e pallida, lançando uma chuva de prateados raios sobre o cume das arvores, e sobre a herva do cemiterio, e branqueando os braços negros da cruz, juncto do qual estava a sepultura de Luiza B.... e a dolorosa donzella ajoelhada, dava a esse quadro mil encantos de sublime poesia. Os olhos da donzella levantavam-se para esse sagrado estandarte da Fé; porque o coração procurava um auxilio do céo; mas logo a cabeça pendia para a terra, e os labios roçavam o pó da campa.

Depoisa dôr — mais viva, mais dolorosa, e intima conturbou-a; seos membros tiritaram, a vista obscureceo-se-lhe, e um gemido sahio do imo peito intenso e dolorido:.... era como se nelle lhe viesse a vida. Ursula cahio desmaiada.

Infeliz donzella! Porque fatalidade vio elle esse homem de vontade ferrea, que era seo tio, e que quiz ser amado?! Esse homem, que jamais havia amado em sua vida; porque a escolheo para victima de seo amor caprichoso, a ella que o aborrecia, a ella a quem elle tornára orphan, antes de poder avaliar a dor da orphandade? a ella que amava a outrem, cujo nome devia conhecer; porque mais de uma vez o vira no tronco da arvore, enlaçado com o de Ursula, a ella que toda a sua alma, toda a sua vida pertencia agora a esse joven cavalleiro?!

A pobre donzella, assim desmaiada, similhava a flor do prado, que murchou, porque o tufão da tarde a arrancou da haste: e ninguem lhe prestava o minimo soccorro, e Deos somente a via, e avaliava a grandesa das suas dores.

O sol tinha de todo desaparecido na extrema do horisonte, e a luz ainda tibia da lua derramava vaga claridade.

O silencio tornava-se mais profundo, quando um rumor longiquo começou a interrompel-o: mais tarde era como o tropear de cavallos que para ali se dirigiam.

Ursula nada ouvia, e se o tivesse ouvido, seo coração morreria de pavor. Esse tropear de cavallos em demanda do lugar em que se achava, ella julgarria ser o anuncio da má vinda de seo tio, que a vinha perseguir, augmentando por ess'arte o soffrimento da sua alma.

Mas ella, involvida n'esse torpor, que se assemelha à morte, não tinha consciencia do que lhe hia em torno, nem da propria existencia.

Pararam os animaes junto à estacada de madeira, que cercava a morada dos mortos, e dous homens penetraram o recinto silencioso.

A lua se mostrava toda e prateava-lhes as faces nobres e altivas, e essas frontes estavam innundadas de suor, e uma d'ellas era pallida, e branca; porque o coração gemia sob o peso de amargas commoções; e a outra negra como o aseviche, mas tambem abatida por profundo pesar.

Estes homens apearam-se com prestesa, ataram a uma arvore as redeias de seos ginetes, e de um salto, cada qual o mais rapido, invadiram a morada do somno eterno.

E juncto à cruz lobrigaram o vulto de uma mulher estendida por terra.

— Eil-a! —"exclamaram a um tempo ambos elles e o que era amante, o que sentia no coração referver-lhe um amor estremecido, ajoelhou ante a bella desgraçada, e tomando-a nos braços, exclamou:

— Ursula!... Ursula!....

Então essa mulher, que no excesso de sua afflição elle julgára morta, reanimando-se pouco e pouco ao contacto de seo corpo, desatou um gemido profundo e dolorido.

— Louvado seja o Senhor Deos! —"exclamou Tancredo, a quem sem duvida já o benigno leitor terá reconhecido."

— Sim —"ajunctou Tulio"— bendicto seja o Senhor, que proteje a innocencia! Ella vive, senhor, e será vossa.

— É verdade —"disse o joven Tancredo, estreitando em seos braços a mulher de suas affeições."— Oh! Tulio, quanto sou feliz... ella vive para mim! — E de novo chegou-a ao coração.

— O tempo urge, —"observou Tulio, que menos embevecido que o cavalleiro, receiava talvez algum funesto acontecimento"— é preciso, senhor, partir incontinente.

— Tens razão, Tulio; mas Ursula está tão debilitada, que receio não possa supportar as fadigas de uma viagem, que, demais, não pode ser vagarosa.

— É possívelque torne a desmaiar, ou que este desmaio, que ora está a terminar, se prolongue muito; mas senhor, os vossos cuidados revocal-a-hão à vida. Lembrae-vos do que nos disse mãe Susana.

— Sim, —"tornou Tancredo"— mas suppões, Tulio, que eu trema com a lembrança d'esse homem? Não. Eu só receio que o estado de saude desta infeliz menina peiore, ou venha a perigar por uma viagem imprudente, e que só pode revelar pouco animo da minha parte.

Depois curvou-se sobre a moça, e chamou-a. Essa voz amada lhe echoou na alma.. Ursula abrio os olhos, e reconheceo Tancredo.

— Sois vós? —"disse n'um transporte indefinivel de amor e de esperanças."— Oh! então é verdade que Deos escutou as minhas supplicas?!... Tancredo, em nome do céo salvae-me!

— E o que receiaes, prenda do meo coração? —"interrogou o mancebo, revendo-se nos olhos della."

Então Ursula levantando-se com impeto, porque tinha despertado completamente do doloroso torpor de suas faculdades, olhou em torno de si, e exclamou:

— No cemiterio!!... E seos olhos exprimiram pavoroso enleio.

— Eu no cemiterio! —"tornou após breve pausa, e um pranto sentido, mas já menos desesperado se desprendeo de seos olhos, e ella soluçou:

Minha mãe!... minha mãe! — Tancredo, ella já não existe!.................................................................

E aquelles dous corações, unidos pelo amor, oraram pelo descanço eterno de Luiza B...


XIV

O REGRESSO

Agora é preciso sabermos como Tancredo, de volta de sua viagem, pode saber onde estava Ursula, e o que lhe havia acontecido.

Dominado unicamente pela ideia de revel-a, o mancebo correo apressadamente, e quasi sem descanço, logo que terminou na comarca de *** a missão de que o haviam encarregado, e que tão penosa se lhe tornou, depois que conheceo Ursula; mas Tancredo mal podia prever quantas dores amarguravam a alma da pobre donzella.

Entretanto raiou o dia apetecido, e que devia leval-o para junto de sua joven desposada, e nesse dia o coração arfava-lhe, ora com um arrebatamento apaixonado, ora com um triste desasocego, e elle enterrava as esporas nas ilhardas do brioso animal, que o conduzia, e redobrava o ardor de sua carreira.

E na sua impaciencia a distancia parecia-lhe immensa.

— Tulio, —"exclamou Tancredo vendo que fugiam as horas"— será possivel que ainda hoje deixemos de chegar à sua casa?!

Tulio nada respondeo, e parecia não tel-o ouvido: com effeito, o negro scismava profundamente; porque a aproximação d'aquelles lugares trazia-lhe mais de uma recordação.

— Não me ouviste, meo bom amigo —"continuou Tancredo."— Tulio, quero vel-a hoje, agora mesmo se nos for possivel. Ah! não sabes como a amo... Ella é tão bella... o sorriso nos seos labios é como a gota do orvalho no calice d'uma flor.

— Tulio, apressemos os cavallos.

— Morreriam, senhor —"tornou Tulio arrancando-se aos seos pensamentos."

— Oh! —"exclamou Tancredo contrariado"— E ella me espera! Parece que lhe escuto o palpitar do coração, que vejo a ancia com que me aguarda, e ouço-lhe um som queixoso, e um suspiro lhe perpassar pelos labios, embaciando o vivo rubor, que os tinge.

E então ella chamar-me-ha ingrato, e esquecido da minha promessa. Oh meo Deos!... Tulio, tu não sabes quanto essa ideia me afflige. Demo-nos pressa; tu andas tão de vagar!... Ah! hoje mesmo Ursula deve ter a seos pés o homem, que mais sabe adoral-a sobre a terra.

Tulio tambem sentia uma vaga inquietação, e esse desasocego, que começava a tornar-se sensivelno joven apaixonado, a muito o tocava ao vivo: é que a cada um d'elles figurava-se que Ursula reclamava socorro, que algum pesar a opprimia.

Tancredo amava apaixonadamente a essa menina de olhar meigo e arrebatador; Tulio tinha-a visto no berço, e a sua affeição para com ella era profunda e desinteressada.

Entretanto tinham já percorrido longo espaço, quando duas estradas se lhes apresentaram à vista.

— Agora —"disse Tulio"— tomemos a estrada de Sancta Cruz; é a que devemos preferir. D'aqui à casa de minha senhora temos só meia légua, e a outra dar-nos-ha mais que o dobro.

— Louvado seja Deos! —"exclamou o mancebo com alegre reconhecimento."— Tomemos a estrada de Sancta Cruz. E metteram os cavallos a galope.

— É tão somente para satisfazer a vossa impaciencia —"tornou Tulio"— que propuz essa estrada com preferencia a outra; ao contrario...

— Porque? —"interrompeo o mancebo ingenuamente."

— Porque! —"repetio Tulio"— porque eu havia promettido a mim mesmo, e às cinsas de minha mãe, nunca mais trilhar esta maldicta estrada: porque sentirei pungentes e tristes recordações ao passar pela fazenda de Sancta Cruz.

— Espera, —"interrogou Tancredo"— parece-me que já ouvi fallar d'esse nome. A quem pertence essa fazenda?

— Ao commendador P.... —"respondeo Tulio gravemente."

— É verdade —"tornou o cavalleiro"— é do irmão da senhora Luiza B...

— Sim, —"proseguio o negro com voz amarga"— é d'esse homem de sangue, d'essa féra indomita. Oh! vós não conheceis o commendador, e vossa alma generosa terá de repugnar em face das barbaridades, que elle pratica cada dia. Implacavel é o seo odio, e a pobre senhora Luiza B... bem o tem experimentado. Pobre senhora! seo marido foi tambem um homem cruel; mas a colera do commendador o seguio por toda a parte, e Deos sabe... talvez elle abreviasse os dias:..............................

— Pois que?! —"interrogou Tancredo"— Julgas, Tulio, que fosse o commendador o assassino de Paulo B...?

— Não sei, senhor —"suspirou o negro."— O commendador nunca procurou justificar-se; e graves suspeitas pesam ainda hoje sobre elle.

N'esse comenos cortavam elles ao meio a situação do commendador, deixando ao nascente a casa de sua residencia, bella na apparencia, de uma construcção solida, e ellegante; porem hermeticamente feixada; e ao poente um longo cercado de pau a pique no centro do qual erguia-se uma cruz sobranceira: era o cemiterio.

Ambos levaram as mãos aos chapeos, e reverentes descobriram a cabeça.

O sol começava já a amortecer seos raios.

A essa mesma hora tambem alguem caminhava apressadamente para a casa de Luiza B..., e que como Tancredo amava cegamente ao lyrio d'aquellas solidões. Esse alguem era o commendador Fernando P.

Fernando P. vinha da cidade de ***; e suas cavalgaduras arfavam de cançasso pela rapidez da marcha. Mas à hora que Tancredo atravessava a fazenda de Sancta Cruz, a Fernando P. faltava mais de uma legua para ahi chegar.

Ambos caminhavam pois para o mesmo lugar, tinham ambos pressa, Tancredo, unicamente para ver a mulher de suas adorações, Fernando, porque nutria graves suspeitas de que outro lhe seria preferido. Elle começava a sentir no fundo da alma o desassocego mortal do ciume e da vaidade; mas conscio do terror, que infundia àquelles, que o conheciam, cobrava às vezes um pouco de calma e disia:

— Não é possivel! Embora ella o ame, não poderá resistir à minha vontade. E demais aonde está agora esse insensato? Na comarca de ***, quando voltar tudo estará feito: Ursula será já minha esposa, e elle, resignado, ou esquecido, ou mesmo desesperado; mas respeitando minha posição social, e meo nome, morrerá de inveja, embora amaldiçoando a minha felicidade. Mas, se pelo contrario!... não é possivel! Se pelo contrario, ai delle!

Tudo isto repettia o commendador a si mesmo, devorando a estrada, que trilhava, cego por uma frenetica paixão.

Entretanto o rico sitio de Sancta Cruz offerecia aos jovens viajantes o mais bello panorama, que se pode imaginar. Era sobre uma colina d'onde se gozava a poetica perspectiva do campo, que a tinham collocado; a sua formosura era portanto natural; porque os renques de coqueiros, que se alinhavam, fasendo um semi-circulo em frente da casa do commendador, e dos ranchos dos negros, a mão do tempo e o abandono do proprietario tinham redusido a um penoso estado de morbidez, que causava dó.

Ainda as casas dos escravos, que outr'ora tinham sido de um aspecto agradavel, tapadas de barro e cobertas de telha, hoje mal representavam esse singelo aceio de outras eras. Já arruinadas, desmoronavam-se aqui, e ali; porque os desgraçados escravos do commendador, espectros ambulantes, não despunham de uma só hora no dia, que pudessem dedicar em beneficio de suas moradas; à noite trabalhavam ordinariamente até o primeiro cantar do gallo. Esfaimados, semi-nús, espancados cruelmente, suspiravam pelas duas ou tres horas de somno fatigado, que lhes concedia a duresa de seo senhor.

Desgraçados! que até à hora das trevas e do repouso, à hora em que a brisa geme apaixonada, como amante, que anhela o ardente halito do seo adorador, em que a herva escuta o segredo terno da viração, em que o cantor da espessura afaga o plumigero habitante de seo ninho amoroso, um momento de socego e amor lhes é vedado!

Não ha descanso para o seo corpo, nem tranquillidade para seo espirito desvairado pelo terror de tantos e tão continuos soffrimentos!

Misero escravo!!!... Tantas dôres ha em seo coração; e nós as não comprehendemos!.......................................................................................................................

Tulio tinha recahido em suas profundas meditações, e Tancredo, que começava a sentir-se feliz com a ideia de rever o objecto de seo amor, admirava a bellesa natural dessa soberba situação, quando de repente, voltando-se para o seo companheiro, perguntou-lhe:

— Habitaste algum dia estes lugares, meo Tulio?

— Se os habitei, perguntaes?! Ah! este é o lugar de meo nascimento; mas que detesto, que eu amaldiçôo do fundo da minha alma; porque aqui minha pobre mãe, à força de tratos os mais barbaros, acabou seos miseros dias!

— Oh! —"exclamou Tancredo vivamente tocado."

— Minha mãe —"continuou o joven negro"— era a escrava predilecta de minha senhoras: essa predileção chamou sobre ella parte do odio que Fernando P. votava à sua irman.

Deveis saber que esse homem amaldiçoado comprou as numerosas dividas, que meo senhor legou à orphan, e à sua viuva, com o intuito tão somente de reduzil-a ao ultimo extremo de miseria, como a reduzio; porque seos diversos credores ter-se-hiam commovido, e talvez lhe facultassem os meios de os hir pagando sem grande detrimento de sua fortuna, aliás tão arruinada.

— Que vingança tão mesquinha!... —"interrompeo Tancredo indignado."

— Pois bem, —"proseguio Tulio, com voz lagrimosa"— minha desgraçada mãe fez parte d'aquillo que elle comprou aos credores, e talvez fosse ella mesma uma das cousas que mais o interessava. Quando ella se vio obrigada a deixar-me, recommendou-me entre soluços aos cuidados da velha Susana, aquella pobre africana, que vistes em casa de minha senhora, e que é a unica escrava que lhe resta hoje!

Minha mãe previa a sorte, que a aguardava; abraçou-me soffocada em pranto, e sahio correndo como uma louca.

Ah! quão grande era a dôr que a consummia! Porque era escrava, submetteo-se à lei, que lhe impunham, e como um cordeiro abaixou a cabeça, humilde e resignada.

Bem pequeno era eu —"continuou Tulio após uma pausa entre-cortada de soluços"—; mas chorei um pranto bem sentido, por vel-a se partir de mim, e só comecei a consolar-me, quando mãe Susana à noite balouçando-me na rede, disse-me:

Não chores mais, meo filho, basta. Tua mãe volta amanhan, e te ha de trazer muito mel, e um balaio cheio de fructas.

Enchuguei os olhos e dormi na doce esperança de revel-a; e à noite sonhei que a vira carregada de fructas, como a boa velha me havia dicto. Embalde a esperei no outro dia! porem mãe Susana, que chorava em quanto eu cuidava dos meos brinquedos, sorria-se quando me via, e procurava fazer-me esquecer minha mãe e seos affagos.

Minhas forças eram ainda debeis para comprehender toda a extensão da minha desgraça; e por isso as saudades, que me ficaram, pouco e pouco foram-se-me adormecendo no peito.

Eu estava já crescido; mas nunca mais a havia visto; era-nos prohibida qualquer entre-vista.

Um dia, disseram-me: — Tulio, tua mãe morreo!

Ah! senhor! que triste cousa é a escravidão!

Quando minuciosamente me narraram —"continuou elle com um accento de intimo soffrer"— todos os tormentos da sua vida, e os ultimos tractos, que a leveram à sepultura, sem nunca mais tornar a ver seo filho, sem dizer-lhe um ultimo adeos! gemi de odio, e confesso-vos que por longo tempo nutri o mais hediondo desejo de vingança. Oh! eu queria suffocal-o entre meos braços, queria vel-o aniquilado a meos pés, queria... Susana, essa boa mãe, arrancou-me do coração tão funesto desejo.

E o pobre Tulio desatou a chorar em desespero; porque era a recordação das desditaas de sua mãe!

Tancredo tambem tinha na alma uma chaga mal cicatrisada; e as dôres do negro encontraram echo em seo coração. Tancredo chorou tambem, e o silencio da tarde recolheu soluços que não podiam envergonhal-os.

Alguns momentos depois estavam à porta da casa, onde haviam deixado Ursula, lacrimosa; porem cheia de lisongeiras esperanças, e Luiza B... supposto que ao aproximar-se da morte, todavia feliz pela futura felicidade de sua filha. Mas essa porta estava feixada, um sinistro presentimento affectou o coração de ambos. Bateram; e ao abrir-se a porta, só Susana appareceo, que vendo-os disse:

— Podeis entrar. — E as lagrimas lhe espadanaram pelo rosto.

Tancredo e Tulio olharam-se em silencio; esse choro não o comprehendiam elles.

— Choraes? e de que, mãe Susana? —"perguntou Tulio, beijando-lhe respeitoso a mão."

— Meo filho, —"soluçou a velha"— tudo para mim acabou! E a pobre menina lá foi sosinha ao cemiterio orar sobre a sepultura de sua mãe!

— Ursula? —"perguntou Tancredo, rompendo o seo morno silencio."— Morreo a senhora Luiza B...?

— Oh! parece —"tornou Susana com amargo dissabor"— que aquelle maldicto homem jurou exterminar esta infeliz familia!

— De quem fallas, Susana? quem é esse homem? —"perguntou ancioso o cavalheiro, collegindo por estas palavras que alguma desgraça havia succedido."

— De quem fallo, senhor? Ah! é do senhor commendador P.!

— Dize-nos o que aconteceo. Mas primeiro que tudo, onde está Ursula?

— Sahio, meo senhor, haverá uma hora, e prohibio-me que a acompanhasse: disse-me que hia orar sobre a sepultura de sua mãe, como já vol-o afirmei.

— E onde é o cemiterio? —"inquerio Tancredo, tomando as redeas à seo cavallo.

— Em Sancta Cruz, senhor —"replicou a africana, curvando a cabeça para a terra.

— Partamos Tulio —"ajunctou o cavalleiro, e depois accrescentou"— não é possivelque tenha hido a Sancta Cruz; porque a teriamos encontrado sem duvida.

— Ha tantas estradas para lá, —"disse Tulio"— que é muito possivel que a não vissemos.

— E demais —"acrescentou Susana"— ella soffre tão cruelmente pela morte de sua mãe, como pela perseguição de seo tio, que....

— Perseguição de seo tio!? —"interrogou vivamente Tancredo, de novo chegando-se para a velha."— Que receia ella do commendador?

— Ah! senhor, creio que ella me disse que se não chegasseis agora, estava perdida; porque o senhor Fernando P. abreviou os dias de sua mãe, e jura que ha de ser o esposo da pobre menina.

Foi só o que no meio da sua dôr me pôde confiar. Pobre menina!

— Pois bem —"redarguio Tancredo"— tudo está remediado. E galoparam de novo em busca da donzella.


XV

O CONVENTO DE ***

Terminada a oração, Ursula, espavorida e amedrontada, disse:

— Fujamos, Tancredo! Mas, ah! o seo odio póde seguir-nos por toda a parte.

— Ursula, o meo braço é bastante forte para deffender-te; estás ao abrigo do seo furor.

— Fujamos! —"tornou a moça, desvairada"— elle não tarda a chegar.

Tancredo olhou-a assustado, e obedeceo. Ursula estava combattida por muitas dôres, e a mais leve contradicção poderia enlouquecel-a. Elle procurou acalmal-a; e durante a viagem, mais tranquilla, relatou-lhe os tristes acontecimentos, que sobrevieram na sua ausencia.

Tinham deixado a estrada real, e tomado por um atalho, que muito lhes alongava o caminho; mas que evitava o encontro do commendador.

Ursula caminhava agora desassombrada e feliz, reclinada a cabeça no hombro do mancebo, que ella amava mais que a vida.

E uma noite prateada pelos raios da lua lhes amenisava a fadiga da viagem.

E ao alvorecer do dia, depois de longa e porfiada carreira, chegaram cançados à cidade de *** em demanda do convento de Nossa Senhora da ***.

Meia légua fora da cidade erguiam-se denegridas pelo tempo as velhas paredes de antigo convento, com suas gelogias tambem esfumaçadas pelo tempo, e que escondiamm zellosas às vistas indiscretas as puras virgens dedicadas ao Senhor.

Era um edificio antigo na sua fundação, grave e melancholico no seo aspecto: era a casa do Senhor sem ostentação. As virgens, que o habitavam, longe do mundo, não conheciam deste os gozos de um momento; mas tambem em suas almas não amargava o doloroso pungir de profundos pesares. Viviam no remanso da paz; porque a solidão e o retiro davam-lhe aquella doce innocencia, que constitue a candura da alma; e essa vida de castos enlevos dedicavam-n'a ao Deos do Calvario.

E elle escutava-lhes os sagrados canticos e acolhia-os; porque vinham de innocentes e angelicas creaturas, de consciencia recta e pura, e votadas ao serviço do Senhor.

E o Senhor ama àquelles que na puresa da sua alma erguem-lhe os carmes de um hymno melodioso, e abrem-lheo coração como um sacrario sem mancha; ou, como a peccadora, mostram-se profundamente arrependidos; porque as lagrimas de um pranto sentido lavam a nodoa do peccado.

Chegaram a esse asylo da innocencia os nossos viajantes e pararam observado attentos essas paredes solitarias do luxo humano, e depois Tancredo conduzio pela mão sua joven desposada à porta do convento, que se abrio ao seo reclamo.

Ella estava radiante de bellesa, e parecia desputar primores com a estrella da manhan.

A pesada porta abrio-se, e Ursula desappareceo por ella.

— Ursula! —"exclamou Tancredo de novo cavalgando o seo ginete"— Ursula, só tu comprehendeste o meo coração... Deixa vãos receios!.... Oh! socega! Eu te protegerei contra a cega paixão desse louco.

Pretenderá em vão luctar contra a tua vontade, e nunca te poderá arrancar da alma a sublime affeição, que deste a outrem. Louco! a mulher só ama uma vez. No seo coração imprimio Deos um sentir tão puro e tão verdadeiro, que o homem não pode duvidar dos seos affectos.

E a mulher cumpre na terra sua missão de amor e de paz; e depois de a ter cumprido volta ao céo; porque ella passou no mundo à semilhança de um anjo consolador.

Esta é a mulher.

Mas aquella, cujas formas eram tão seductoras, tão bellas, aquella, cujas apparencias magicas e arrebatadoras escondiam um coração arido de affeições puras, e desinteressadas... Oh! essa não comprehendeo para que veio habitar entre os homens; porque a cobiça hedionda invenenou-lhe os nobres sentimentos do coração.

O brilho do ouro deslumbrou-a, e ella vendeo seo amor ao primeiro, que lh'o offereceo.

Maldição!... infamia sobre a mulher que não comprehendeo a sua honrosa missão, e trocou por outro os sublimes affectos da sua alma.


XVI

O COMMENDADOR FERNANDO P...

A mais de uma legua distante de Sancta Cruz deixámos Fernando P. galopando ancioso, blasphemando, e praguejando contra aquelle que por ventura o contrariasse, e acompanhámos aos jovens desposados até o convento de ***, onde deixaremos por agora Ursula meditando sobre os ultimos acontecimentos de sua vida, que mais risonha e seductora já se lhe figurava, e vamos ao encontro d'esse homem, animado por tão loucas esperanças, e tão disposto a amar, como a perseguir ao objecto da sua adoração.

O commendador, talvez mais por ostentação que por sentimentos religiosos, tinha em sua casa um capellão, que era voz publica ser-lhe muito dedicado em consequencia de altos favores feitos pelos paes de Fernando à sua familia. Fosse pelo que fosse, o capellão de Fernando P. dizia-se amigo deste, e isso causava a todos admiração; porque o commendador era um homem detestavel e rancoroso, e o sacerdote parecia ser sancto varão.

Por uma singular anomalia estes dous homens pareciam querer-se, ou supportar-se reciprocamente, e essa união dava-lhes a reputação de intimos amigos.

Fernando, homem estupido e orgulhoso, não sabendo siquer exprimir seos proprios pensamentos, e não querendo confiar a alguem, que elle julgava inferior a si pela posição, e pelo nascimento — unica taboa de salvação, a que se pegava em seo naufragar continuo de completa ignorancia — tinha hido à cidade, supposto que ralado de mortaes desconfianças, arranjar os papeis da mais absoluta necessidade, ou para fazer-se incontinente esposo de Ursula, no caso de ainda encontrar viva a mãe desta menina, ou para, constituido por esta senhora tutor de sua filha, esta não poder escapar à sua vigilancia, nem à sua paixão. Como ainda este erro seo era grosseiro!

Ursula podia deixar de acceital-o por tutor, e, ainda aceitando-o, recusar-se energicamente a ser sua esposa. O commendador estava affeito a mandar, e por isso julgava que todos eram seos subditos ou seos escravos.

Já o sol não dominava as regiões da terra, quando Fernando P. apeiou-se à porta de sua habitação para dar ligeiramente algumas ordens. Vinha esbaforido e preocupado por um presentimento, que embalde tentava destruir.

— Talvez eu venha por demais tarde! —"ao apear exclamou sem intenção de o fazer; porque era contra o seo orgulho, que não imaginava difficuldades."

Dous negros de cabeça baixa, e humilhados, que lhe vieram pegar as redeas, ouviram em silencio essa exclamação desesperada, e pela contracção dos supercilios do commendador tremeram involuntariamente.

Depois subio para a varanda, e logo uma multidão de escravos se lhe veio aproximando; mas elle erguendo a voz imperiosa perguntou: — onde está o padre F...?

— Sahio ainda ha pouco, meo senhor —"animou-se a responder o menos timido entre os que ali estavam."

— Sahio? —"interrogou Fernando, enrugando a testa"— Para onde foi?

— Ignoro-o, meo senhor. —"tornou o mesmo escravo com voz convulsa pelo medo"— e creio que o mesmo acontece aos mais parceiros. Tomou a sua mula aseitonada, e a pouco o vimos desapparecer pela estrada do cemiterio.

Os negros acabavam apenas de tirar a sella ao cavallo fatigado, quando o commendador descendo de um salto as escadas, foi-os golpeando com o chicotinho que trasia, e gritando:

— Eia, que fazem, animaes! Outro cavallo immediatamente sellado. E os meos dous pagens, que me sigam.

Os miseros escravos gemeram de odio e de dôr; mas nem a mais leve exprobração, nem um signal de justa indignação, se lhes pintou no rosto. Eram escravos, estavam sugeitos aos caprichos de seo barbaro senhor.

E a ordem era tão peremptoria, que um outro cavallo appareceo como por encanto arreado, e os dous pagens montados em suas cavalgaduras.

Fernando P. montou e impaciente cravou as esporas nos flancos do animal, e os negros o imitaram. A carreira era rapida, e nada os podia conter. Fernando pensava encontrar o padre, e não se enganou, que bem perto hia elle. Caminhava a passo lento e hia levar consolações àquella, a quem o commendador hia pedir amor.

— Meo padre —"exclamou Fernando ao avistar o homem de paz, que o precedera na viagem"— enfim vos encontro" Eia, dizei-me, o que ha de novo?

O padre fixou-o com olhar que queria dizer:

— Resignae-vos!

— Minha irman?! minha pobre irman?! —"soluçou magoado aquelle coração de ferro."

— Morreo! filho —"disse o padre commovido"— e Ursula geme acurvada pela mais pungente, e afflictiva dôr.

Então duas lagrimas rolaram dos olhos de Fernando, que se esqueceo de si, immerso n'esse sentimento, unico que esclarecia a sua vida em todos os demais pontos tão negra. Abandonou as redeas e o seo cavallo seguia os passos tardos da mula do digno sacerdote.

E esse torpor doído durou muito, e ninguém ousava quebrar o silencio que era completo.

Então a corrida de rapida tornou-se vagarosa e pesada, e a lua já passeiava bem alta nos campos do céo, quando o commendador, ajudado por seos dous pagens, apeiou-se à porta d'essa casa silenciosa, cuja fachada melancholica, demonstrava os grandes pesares de que o interior era testemunha attenta, posto que muda e impassivel.

Em quanto o padre humildemente desmontava, os dous negros battiam à porta. O arruido alfim despertou a velha africana de seos pensamentos dolorosos, e fel-a vir pressurosa ao reclamo persuadida de que eram os dous cavalleiros, e Ursula, que regressavam.

— Susana! —"bradou Fernando assim que a vio."

— O senhor commendador!... —"murmurou a negra, recuando assustada."

Fernando entrou, e dirigio-se à sala, e depois de ter-se atirado sobre uma cadeira, e investigado com um olhar melancholico aquelles lugares, que lhe recordavam a unica affeição sincera que havia tido, chamou Suzana.

Esta, afflicta e angustiada, com os braços crusados sobre o peito, e a cabeça inclinada para o chão acudio ao seo chamado.

— Aonde está Ursula? —"perguntou com voz alterada."

Susana estremeceo involuntariamente. Ursula tinha sahido à tarde e ainda ella a esperava com ancia. Achal-a-hia Tancredo? Fugiriam juntos? O que lhe teria acontecido?! Apesar de seos receios respondeo com segurança:

— Sahio à tarde, meo senhor, e disse-me que hia orar ao cemiterio.

— Ursula sahio só, e foi até Sancta Cruz sem a companhia d'alguem? —"interrogou o commendador com sinistra incredulidade."

— Só, meo senhor —"tornou a negra."

— Mentes! —"bradou com voz de trovão."

Levantou-se com impeto, e como um tigre que se arremessa à presa hia cahir sobre a infeliz Susana, quando o sacerdote, até então testemunha muda dessa scena, lhe disse:

— Prudencia, filho! Porque vos encolerisaes contra essa misera velha? Mandae primeiro que tudo à Sancta Cruz, e talvez lá seja possivel encontral-a. Sua dor era tão profunda, que minhas consolações tornaram-se inuteis. Hoje ao amanhecer pedio-me que queria ficar só por algumas horas, e voltei à Sancta Cruz, onde gastei algum tempo a esperar-vos; mas vendo que não chegaveis, e lembrando-me do penoso estado em que a tinha deixado, tomei a resolução de vir de novo traser-lhe a palavra divina, unico balsamo para as chagas do coração. Este seo desapparecimento, confrontado com a desesperação em que estava, faz-me receiar alguma desgraça.

Susanna, erguendo as mãos à altura da cabeça, bradou:

— Meo Deos! — E cahio sem accordo.

Fernando P. não lhe ouvio esta exclamação de desespero; porque já havia montado, e com seos dous pagens corria afanoso e desesperado a estrada que conduz a Sancta Cruz. Os cavallos despararam fogosos e rapidos com o aquilão, e sumiram-se com velocidade incrivel.

A noite era já adiantada, e o gallo, que cantára na fasenda de Sancta Cruz, e que elle ouvira ao longe, veio revelar-lhe que tinha soado a hora dos mysterios, a hora em que aquelle, que medita em meio dos palmares, ou sobre as ribas do mar, debaixo do nosso opulento e magnifico céo todo estrellado, enche o coração de maga poesia, e de um sentir delicioso, que vae como nuvem de incenso desfazer-se puro aos pés do throno do monarcha do universo. A hora alta e silenciosa da noite encerra mysterios tão profundos, que só os comprehende a alma, que verga ao peso de uma dõr intima e incuravel, ou o coração, que transborda de affectos, que a vida inteira não póde resfriar.

Para os demais a hora da meia noite não tem significação. O commendador Fernando não estava n'esse caso — amava; e a sua paixão era ardente e arrebatada como o seo volcanico coração. Entrou corajosamente no cemiterio, onde com terror o acompanharam seos dous pagens horripilados e tremulos.

Todavia mais de um remorse lhe devia povoar a alma de terror àvista d'esse lugar onde dormiam Paulo B..., Luiza, e tantos outros, cujos dias elle tanto amargurára, e cuja morte talvez pesasse sobre sua consciencia!

Mas Fernando P... não era homem que parecesse ter remorsos: talvez o fogo de seo amor soffocasse em sua alma todos os outros sentimentos, que por ventura ahi existissem.

Nesta occasião, a lua era perpendicular ao topo da cruz, e a noite derramava sobre ella seo choro algente e triste.

A cruz estava humida e orvalhada, e o musgo, que por ella destendia os braços, ostentava o brilhante explendor de sua verdura, e a gota crystalina, que se filtrara do céo, esmaltava-o com celeste encanto.

O silencio era tetrico e melancholico, e uma só ave nocturna o não interrompia. Parece que toda a natureza o observava estupefacta.

E Fernando P... percorreo essa morada da morte anhelante e duvidoso, e não encontrou Ursula.

— Susana! hás de pagar-me! —"bradou fóra de si"— Não zombarás de mim impunemente. Ao inferno descerás, negra maldicta, e todo o meo rigor não bastará para a tua punição. Foi debalde que tentastes illudir-me! O coração bem m'o dizia, que a não acharia aqui!...

Tancredo! infame!... Seos nomes enlaçados no tronco do jatubá, em que a vi a vez primeira, trahio-me o estado do seo coração. Ella o ama, já o sabia; mas o seo amor não poderá resistir ao meo odio. Juro, mulher, que has de ser minha esposa, ou o inferno nos receberá a ambos!

Tancredo! tu não has de rir de um rival despresado. Não.

Blasphemando horridamente tinha chegado à porta de sua casa, desatinado e furioso.

— O feitor branco —"gritou com voz medonha"— chamem-me o feitor branco.

O serão ainda não havia acabado: o debil broxulear de uma luz esmorecida no meio dessa vasta casa de trabalho indicava que ahi ainda todos velavam; porque as tarefas não estavam acabadas.

O feitor appareceo com promptidão. Era um homem de mediana estatura, tez pallida, e olhar melancholico. Ao entrar fez uma respeitosa cortesia ao commendador, que a não respondeo, e disse:

— Às vossas ordens, senhor commendador.

— Quero immediatamente dous negros, que hirão voando à casa, que foi de Paulo B... — Parou, e com as mãos pareceo afastar de diante dos olhos uma combra desagradavel; mas foi um momento, recuperou sua feroz energia, e continuou:

— Que me tragam sem detença Susana. Ouvis, senhor? Que a tragam de rastos. Que a atem à cauda de um fogoso cavallo, e que o fustigem sem piedade, e...

— Senhor commendador —"observou o homem, que recebia as ordens"— ella chegará morta.

— Morta?... Não, poupem-lhe um resto de vida, quero que fale, e demais reservo-lhe outro genero de morte.

O homem mordeo os labios de indignação e perguntou:

— Nada mais ordenaes?

— Sim, —"tornou elle"— quero que dobre hoje o serão destes marotos. Ah! esta cafila de negros, só surrados, e....

— Mas, senhor commendador —"interrompeo o feitor com acento apesar seo reprehensivo, e indignado"— é já meia noite, os desgraçados ainda trabalham por acabar o serão, como pois é possivel dobrar-se-lhe a tarefa?

— Oh! lá!... —"bradou Fernando e sorrio-se com horrivel sarcasmo"— Que tal? Quem manda nesta casa?

— Fartae-vos de atrocidades, já que sois um monstro, —"retrucou fóra de si o feitor, fixando-o com um olhar de despreso, que elle supportou"— banhae-vos no sangue dos vossos semilhantes, juntae crimes horrendos a crimes imperdoaveis; mas não conteis mais d'ora avante commigo para instrumento dessas acções, que revoltam ainda a um coração viciado, e que só no vosso pode achar morada.

Desde já contae-me despedido do vosso serviço.

— Miseravel! —"rugio Fernando suffocado pela cholera."

— Vou immediatamente avisar a velha Susana —"disse comsigo o feitor"— e ainda será tempo de fugir — Sahio correndo a pegar o seo cavallo, mas a hora que tão generosamente se dirigia à casa de Luiza B... um sacerdote montado em uma mula acompanhava a preta Susana, conduzida por dous negros, e murmurava em voz intelligivel estas palavras psalmo 138:

Para onde me irei de vosso espirito? e para onde fugirei de vossa face?

Susana não vinha atada à cauda de um cavallo, caminhava com a fronte erguida, e com a tranquillidade do que não teme; porque é justo.

— Foge Susana! — bradou-lhe da orla da estrada uma voz forte: ella pareceo nada ouvir, e o padre continuou:

Se subira ao céo, vós lá estaes; se descera aos infernos ali vos encontraria.

Então a voz tornou-se a ouvir, e um homem appareceo. Era o ex-feitor; e o padre e os negros o reconheceram.

— Foge, Susana!

— Fugir? não, meo senhor. Não sabeis que sou innocente?

— Louca! —"tornou elle"— toma o meo cavallo e foge. Que importa àquella fera a tua innocencia? Acaso não conhheces o commendador?

Susana replicou-lhe com vivo reconhecimento:

— O céo vos pague tão generoso empenho; mas os que estão innocentes não fogem.

E o sacerdote proseguia:

Se tomasse as azas da alva, e habitasse no cabo do mar, até ali vossa mão me guiaria, e vossa dextra me sustentaria.

Susana levantou os olhos para o céo, e quando os abaixou, disse:

— Hide, meo filho! o céo vos abençôe.

O ex-feitor deo então as redeas ao seo cavallo; deixou passar aquella victima resignada de tão implacavel cholera, e tocado pela sublime brandura d'aquella velha africana, lamentou profundamente a sorte mesquinha e horrivel que lhe prepara o commendador, que em sua insania parecia despenhar-se irremessivelmente nos abysmos do inferno.

Proseguiam na sua marcha.

Na casa do trabalho, muito mais frouxa lobrigava-se ainda a escassa luz de um lampião; os negros tinham recebido novas tarefas, empenhavam-se por acabal-as. Desgraçados! Não eram elles que trabalhavam por acabal-as — era o novo feitor, que com azorrague em punho ao som dos estalos os despertava. E já nem uma lagrima lhes vinha aos olhos, nem um queixume aos labios — eram mudos; estorciam-se com a dôr da [ilegível]a tada, abriam os olhos, moviam-se maquinalmente para continuar o serviço, e logo recahiam n'aquella penosa prostração, que revela a extrema fadiga de um corpo, que descahe já para o tumulo, cançado de luctar em vão contra mil privações que o desgastaram e aniquilaram.

O dia não tardava muito a despontar, quando Susana e o sacerdote descubriram, pasmados, a scenas espantosa da dupla tarefa na fasenda de Sancta Cruz.

— Deos esteja comvosco, filho, —"disse brandamente o padre ao entrar."

Fernando P... passeiava na varanda com um passo incerto e desigual.

— Mandei informar-me, meo padre, do caminho, que seguio a minha louca fugitiva, e em menos de dez minutos aguardo pela resposta. Os homens da minha guarda estão promptos, e partirão ao primeiro signal; as nossas cavalgaduras esperam-nos no pateo.

— E para que todo esse afan?! —"perguntou o sacerdote com estupefacção"

— Para que?! ainda m'o perguntaes?! Essa menina, senhor, a necessidade tornou-a minha pupila; e antes que o fosse, meo coração a havia escolhido para esposa!

— Ella?... Ursula?.... a vossa sobrinha!... a filha!...

— Basta —"bradou imperiosamente o commendador."— Susana, venha Susana.

Fernando P... pensára que o padre lhe hia lembrar o seo crime, e impoz-lhe silencio.

Ao reclamo dous negros entraram conduzindo a velha, cujos cabellos alvejavam como o cume dos Andes e cujos olhos exprimiam sublime resignação.

Ao vel-a, o commendador rugio como um tigre, os olhos injectaram-se-lhe de sangue, e as arterias entumecidas ameaçavam arrebentar: seo semblante tornou-se roxo de odio, e a physionomia era medonha, e horripilante.

— Para onde foi Ursula? —"interrogou com voz que horrorisava"— Para onde foi Ursula? falla, ou prepara-te para morrer sob o azorrague.

— Não sei, meo senhor, —"respondeo humildemente a velha"— disse-me que vinha orar ao cemiterio.

— Não sabes d'ella?! Queres arrostar commigo?.. —"e os olhos desferiram chammas de raiva, que gelavam de terror."

— Foste sua cumplice, has de pagar-m'o.

— Em nome do céo! —"exclamou a misera, atormentada por tão sinistras ameaças"— que sei eu?

— Calla-te, atrevida, ou ao menos modifica o teo crime, revelando-me o nome do homem, que m'a roubou.

— Ah! meo senhor... —"tornou a misera africana,"— ella sahio só.

— Pois bem! Confessarás à força de tormentos o que é feito della, e qual o nome do seo seductor.

Julgas que o ignoro?

Tancredo! rapido foi o teo regresso; mas has de arrepender-te, assim como tu, velha louca e maldicta!

Levem-na, —"disse accenando para os dous negros que a tinham conduzido"— levem-na, e que ella confesse o seo crime.

— Filho —"objectou o padre,"— filho, em nome do que nos ha de julgar não mandeis flagellar esta pobre velha; ella é innocente.

O commendador bramio de cholera, e lançou-se sobre a pobre escrava.

— Confessa a tua cumplicidade, diz-me para onde foi ella, ou aprompta-te para morrer.

Susana havia dicto a Tancredo que Ursula lhe fallara de um perigo eminente, se elle Tancredo retardasse mais o seo regresso, e que esse perigo creava-o o commendador; lembrava-se que o moço partira immediatamente para o lugar por ella indicado, e onde devia estar Ursula, persuadio-se mesmo algumas vezes de que a moça, para escapar às perseguições de seo tio, se houvesse submettido à proteção do mancebo, e fugido; mas tudo isso não era mais que supposição e quando mesmo ella o soubesse com certesa, estava longe de querer denuncial-a a um homem que tão funesto era para quantos o conheciam.

Pedio a Deos que lhe puzesse um sello nos labios, e o valor do martyr no coração.

— Então... —"tornou elle enfurecido"— confessas, ou não?...

— Não sei, meo senhor! —"replicou Susana."

— Não sabes quem seja o seo seductor? Não o viste sahir em sua companhia?...

— A menina sahio só, eu a quiz acompanhar; porque ella estava louca de afflicção; mas disse-me: Prohibo-te que venhas; deixa-me que vá resar sobre a sepultura de minha mãe, e....

— Levem-n'a! —"bradou o implacavel commendador."— Mais tarde confessarás tudo.

— Meo filho, —"de novo começou o padre"— o sangue do innocente condemna ao inferno aquelle, que o derrama: esta mulher não é cumplice na fuga de vossa desposada.

Um negro entrou correndo, e disse-lhe:

— Meo senhor, acabo de saber que a senhora, acompanhada de um cavalleiro branco, e de um outro negro, tomou a estrada da cidade de ***.

Então um sorriso infernal lhe arregaçou o labio superior, e seo rosto ficou hediondo.

— Levem-na! —"tornou accenando para Susana."— Miseravel! pretendeste illudir-me... saberei vingar-me. Encerrem-na em a mais humida prisão desta casa, ponha-se-lhe corrente aos pés, e a cintura, e a comida seja-lhe permittida quanto baste para que eu a encontre viva.

Susana ouvio tudo isto com a cabeça baixa; depois ergueo-a, fitou aos céos, onde a aurora começava a pintar-se, como se intentasse dar à luz seo derradeiro adeos, e de novo volvendo para o chão, exclamou:

— Paciencia!

— Não ha tempo a perder —"disse Fernando, e entrou no seo gabinete, onde deo ordens, que para logo se cumpriram. Dous homens, de horridas physionomias foram introduzidos, e o que lhes disse o commendador, só Deos e elles o poderam ouvir.

Não se passou muito tempo, que não voltassem: eram ligeiros e vinham vestidos como talvez lhes tivesse ordenado o homem, a quem serviam.

Tinham excellentes cavalgaduras. Trajavam calções de couro, e sobre suas sellas descançavam enormes capotes de pelles de onça. Da cinta pendiam-lhes enormes facas ponteagudas, e a esses horriveis instrumentos, acompanhava um par de pistolas. Aos hombros levavam um medonho bacamarte.

O padre vio todo esse apresto execrando, e aguardava ancioso pelo seo hospede.

Não esperou muito.

— Meo padre, o dever obriga-me a partir.

Roubaram-me a filha de minha irman; mancharam a honra da minha casa, assassinaram a minha ventura!...

Meo padre, —"continuou depois de alguma pausa"— essa menina era minha desposada, jurei que havia ser seo esposo; pelo céo ou pelo inferno, sel-o-hei ainda. Sim, —"proseguio espumando de ira"— hei de ser seo esposo; porque não a tornarei a ver em quanto o sangue do seo raptor não tenha lavado, extinguido o ferrete da infamia estampado em minha fronte.

— Jesus! Senhor meo Deos! —"bradou o pobre padre."— Ainda é tempo de retroceder. Pelo céo, meo filho, não mancheis vossas mãos no sangue de vosso irmão! Filho, o assassino é maldicto do Senhor; Caim o foi. Para o assassino não ha na vida socego, nem paz na morte. O sepulchro mesmo, quem sabe se lhe promette tranquillidade?

A vingança, filho, é um praser amargo, e seo fructo, é o requeimar do remorso em toda a existencia, e até ao ultimo extremo, até à sepultura!

Fernando P... escutou-o; mas em suas veias agitava-se o sangue, que lhe queimava o coração. Rangia os dentes, e os labios lividos e tremulos exprimiam a impaciencia e o furor, até que por ultimo prorompeo irado:

Mentes, padre maldicto! A vossa doutrina não a escutarei nunca. A vingança, desejo-a com ardor, afago-a. Não sabes que é a unica esperança, que me resta? Amor! ventura!... tudo, tudo cahio no abysmo... Elles o quiseram... oh! não os hei de poupar.

O inferno? Haverá peior de que o que trago no coração?! O inferno?! O inferno me restituirá Ursula pura da nodoa do amor de outrem, porque será lavado no sangue do homem por quem despresou-me.

Sabes acaso o que é ser desdenhado pela mulher, que amamos? Sabes o que é ser illudido, aviltado por aquella a quem deramos a vida, a honra, a alma se nol-a pedisse!?...

— Filho, —"arriscou ainda o velho sacerdote"— não desafieis a colera do Senhor. O sangue de vosso irmão vos queimará a alma; e o amor de que vos servirá então? Julgaes que vos poderá elle afagar quando ante vós se erguer mudo, e impassivel o espectro ensanguentado de vossa victima clamando: —És meo assassino!!!...

Então embalde supplicareis o meigo auxilio do somno, que vossos olhos pasmados e fitos no medonho phantasma não se poderão serrar.

Então elle erguerá a voz, e exclamará com horrifico accento, que vos resfriará os membros: — Maldição do Senhor sobre aquelle que assassinou o homem, que era seo irmão!

— Calla-te.... calla-te, estupido que és —"rugio o commendador"— que me importa a mim a vingança dos mortos! Tancredo, Ursula, não se hão de rir do homem a quem ludibriaram.

— Tancredo? —"objectou o padre"— que quereis dizer d'esse mancebo?

— É o seductor de Ursula.

— Elle? —"replicou o homem de paz"— é impossível!

— Elle. —"retrucou Fernando"— Amam-se, já o sabia; mas contava que o seo regresso seria alguma coisa mais demorado.

Sim, eu vi Ursula, era uma tarde, um jatubá antigo como os seculos prestava-lhe doce sombra; no tronco dessa arvore gravava ella um nome, que me occultou com o seo corpo; mais tarde, no dia immediato, todos os dias a mesma hora eu hia ao lugar indicado, ella jamais voltou a elle; mas seo nome, e o nome de Tancredo entrelaçados ahi estavam gravados para advertir-me que se amavam.

Oh! maldicta sejas tu, mulher infame, maldicto o teo seductor! De joelhos ha de pedir-me compaixão para esse que preferiste a mim; mas não has de achal-a!

— Misericordia, meo Deos! —"bradou o padre erguendo as mãos ao céo."

— Silencio! —"exclamou Fernando ardendo em ira, e aproximando-se-lhe, disse":— Sois meo prisioneiro. A justiça da terra não me estorvará a vingança porque ninguem senão vós ousará denunciar-me.

— As... sas... si... no!! —"estupefacto disse o pobre sacerdote, e ficou estacado nesse lugar sem movimento, com os cabellos irriçados, os membros hirtos, e os olhos parados, como se um raio o houvesse fulminado."


XVII

TULIO

Ursula estava assaltada de justos temores, ainda que menos penosos; porque julgava o convento asylo seguro. Com tudo ella pensava em Susana, e muitas vezes tremia com a ideia de que seo tio intentasse perseguil-a, ou vingar n'ella a sua desappariação, e resolveo-se a escrever a Tancredo, pedindo que a mandasse vir.

A Fernando, porem, tardava por demais a hora da vingança; vigiava de parte a sua presa, seguia-lhe os passos, e nutria de infernal esperança o coração avido de sangue e vingança.

Na hediondez de seo odio e de seo ciume arrancava os cabellos, dilacerava o rosto, e blasphemava contra Deos e os homens.

E essa hora tão ardentemente desejada chegou emfim, e elle afagou-a com medonho sorriso. Era um dia bello, como a suprema felicidade, esse da vingança para um coração, que só se aprasia no ódio!

Tancredo, todo entregue às doçuras de um amor, que lhe fasia esquecer as dôres com que uma outra mulher por tanto tempo lhe havia ulcerado o coração, nem uma ideia vaga lhe perpassava pela mente da surda e atroz vingança, que o commendador lhe preparava.

Julgava-o resignado, e escondido no fundo de sua fasenda, amaldiçoando-lhe a ventura, ou sonhando illusões fagueiras de que Ursula, mais tarde, medrosa de o ter desdenhado, fosse correndo implorar-lhe perdão.

N'esse presuposto estava Tancredo, que, já esquecido mesmo dos tristes precedentes da sua vida, porque acabava de ver Ursula, esse anjo de paz, que lhe sorria, chamou o seo fiel Tulio para encarregal-o de algumas ordens, que só por elle seriam bem desempenhadas. Mas Tulio não appareceo.

Era o dia destinado para celebrar-se no convento de *** a ceremonia do seo casamento; e por isso a desapparição de Tulio assaz o surprehendeo.

Entretanto a noite começava a povoar de sombras o espaço da terra.

A demora de Tulio hindo a mais, Tancredo passou da surpresa à inquietação, e uma ideia terrivel lhe atravessou a mente. Mas tractou de repellir tão funesto pensamento que lhe voltava sempre, e cada vez tomando maiores proporções de realidade.

Então procurou informações sobre o commendador, ninguem lh'as soube dar; e antes suspeitavam todos que estivesse em Sancta Cruz.

Depois de faver em vão procurar por Tulio, afflicto por um acontecimento aliás tão estranho, Tancredo, acompanhado de alguns de seos amigos, seguio para o convento de ***, onde devia receber aos pés do altar a mulher de suas adorações.

A noite hia já adiantada quando elles franquearam a porta do sanctuario. Os cirios, que illuminavam o throno do Senhor de misericordia e de bondade, os sinos, que tocavam alegremente no alto da torre, as flores, que juncavam o pavimento da egreja, não distrahiram a Tancredo de seos tristes presentimentos acerca do desapparição de Tulio, e o coração gemia de angustia. Elle então indagando a si mesmo, achava estranho o sentimento penivel, que lhe nascia na alma, porem embalde tentava recobrar a serenidade de animo. Tulio figurava-se-lhe em perigo eminente, e toda a felicidade, que o aguardava, não lhe apagava esse crescente desasocego; porque essa felicidade começava a parecer-lhe que mais tarde se tornaria amarga. Mas esse estado de angustia e pesar desappareceo com a presença de Ursula, bella e ridente, e que tam meigamente lhe sorria.

Vinha acompanhada das jovens religiosas, que já a amavam: no meio d'essas virgens consagradas ao Senhor era como uma rosa entre assucenas. Trajava simples vestido de seda preta, e mimosas perolas ornavam-lhe o collo de neve, brandamente agitado pelo voluptuoso arfar do peito. A fronte altiva, e jaspeada ingrinaldava-a uma capella de odoriferas flores de laranja, e o véo de castidade fluctuava-lhe sobre os hombros nús e bem contornados, e encubria-lhe os negros e avelludados cabellos.

Assim era ella mais formosa que nunca, e Tancredo, vendo-a tão radiante de mocidade e de amor, olvidou suas penosas inquietações para só rever-se n'ella, para render-lhe um culto de apaixonada veneração.

E ella sorrio com um sorriso, que transportou-o de felicidade, e esse sorriso feiticeiro e angelico arrancou-lhe do fundo da alma o orgulho feminil — era como a lembrança de que seo amor apagara ainda mesmo as cinzas do de Adelaide.

O cantico das virgens, tão solemne e sancto, começou, e suas notas melodiosas confundiram-se com os accentos ternos e acordes do orgão: os cirios projectavam uma luz vivida, que se derramava em ondas por todo o sanctuario, e illuminava esse quadro de felicidade.

E o cantico das virgens do Senhor, e a melodia do orgão, se lhe internavam pelo coração, e pareciam-lhe um côro de anjos nas moradas cellestiaes.

A benção do sacerdote unia-os para sempre, e o incenso ondulava em torno do altar.

Por fim cessaram a musica e os canticos, e as felicitações sinceras dos amigos acolheram Ursula e a Tancredo: — o acto religioso do casamento estava consummado. Seos corações transbordavam de praser, o universo não bastava para conter seos corações.

No meio de sua extrema ventura, veio assaltar a Tancredo a ideia da desapparição de Tulio. Não podia esquecer o seo fiel companheiro que alli não estava para tambem congratulal-o. Uma nuvem de amargura e tristesa veio por mais de uma vez perturbar-lhe o coração, e angustial-o.

Pobre Tulio! Bem se havia elle esforçado por estar juncto ao seo amigo, mas como?................................................

Pelo cahir da tarde esse fiel negro passava descuidosamente por uma esguia e tortuosa travessa, a essa hora completamente deserta, quando de repente ante si vio dous homens de physionomias sinistras, e que engatilhando as pistolas, e pondo-lh'as ao peito, disseram accenando-lhe para a porta de um casebre insignificante e velho, que lhes ficava fronteiro:

— Entra aqui: e se gritares morres.

O joven negro olhou em cheio esses dous homens, que tão bruscamente o acommettiam, e com quanto não fosse medroso, estremeceo involuntariamente.

Tulio lembrou-se do commendador, e julgou-se perdido. Imaginou n'esse momento extremo mil meios de seduzil-os, ou de fugir-lhes, tudo foi inutil; porque a esses homens tão versados no crime era impossivel enganar, ou commover: resignou-se, pois, e obedeceo.

Entrou em um corredor escuro e humido, como uma sepultura, e a porta feixou-se sobre elles.

— Que intentaes de mim? —"interrogou Tulio com voz firme."

— Mais tarde o saberás, —"respondeo-lhe um dos dous com um sorriso frio e affrontoso."

E esse mesmo homem tocou com as pontas dos dedos em uma porta lateral. Esta abrio-se como por encanto, devassando um quarto quasi tão humido e escuro como o lugar onde se achavam.

Já não havia a claridade do dia, e a luz de uma vela a não substituira ainda.

— Acompanha-nos! —"disseram ambos com voz que revelava fria crueldade."

Tulio recuou no limiar da porta, porque no meio desse quarto Fernando P... passeava.

— Entra covarde! —"tornaram ambos"— Tulio obedeceo.

O commendador cruzava o quarto com passos desordenados. Pallido como um espectro, com os cabellos irriçados, os labios convulsos e contrahidos, as commissuras dos labios espumantes, pintava-se-lhe no todo a desesperação, e o odio infame, e a vingança não satisfeita.

Era Othello no seo ciume, Satanaz expulso do céo e ferido no orgulho.

Parecia nada ter visto, nem ouvido do que se passava em torno de si, porque continuou no seo passeio insano máu grado o ranger sinistro dessa porta, que gemeo nos gonzos como o sibilar da serpente.

Cruzou o quarto ainda por muitas vezes, depois estendendo a mão para os seos dous sicarios, accenou-lhes para a porta.

Esta ordem muda foi promptamente cumprida. Os sicarios sahiram — a porta tornou-se a feixar.

— Queres tu servir-me? —"perguntou o commendador com um tom secco e breve."

Tulio conheceu que estava perdido; mas recobrando toda a sua energia, como succede sempre ao homem nos lances apertados da existencia, respondeo sem hesitar:

— Dizei, meo senhor, o que determinaes ao vosso escravo?

— Dize-me, onde está Tancredo?

Como se fôra um ferro na brasa, esse nome pareceo requeimar-lhe os labios, que tingiram-se de uma côr livida, e tremeram convulsos.

— Creio que está em sua casa —"redarguio o negro sem perturbar-se."

— Mentes! —"gritou-lhe o commendador, devorando-o com horrivel olhar"— Mentes!... Parvos! Julgam que o meo odio os não segue como as suas proprias sombras!

E tu, vil escravo! pretendes illudir-me?! Sim, demais me tarda a hora da vingança!... Ursula, encerrada no convento de *** aguarda hoje pela ceremonia, que a vae unir para sempre ao homem da sua escolha... ao homem por quem despresou meo amor, e até meo odio! Oh! juro-lhe o inferno, que o sorriso de sonhadas delicias, que sorriem sobre a minha desesperação apagará de seos labios minha justa e completa vingança. Tancredo! hoje mesmo o anjo pallido da morte te dará o beijo de idolatrada esposa; e a terra humida do sepulchro serrará sobre ti as brancas cortinas do leito nupcial.

— Introduz-me no seo quarto, Tulio, —"continuou delirante"— quero matar esse homem antes que seja o esposo de Ursula! Eu te cumularei de favores; dar-te-ei metade da minha fortuna se m'a pedires.

— Senhor! —"exclamou Tulio acceso em legitima cholera"— que acção tão vil pratiquei eu algum dia que possa merecer-vos semilhante conceito?

— Estás louco, imbecil?! Não vês que peço, quando podia mandar?

— Covarde! —"bradou Tulio, esquecendo a pessoa com quem fallava, e quanto essa palavra insultuosa o poderia perder"— matae-me muito embora, estou em vosso poder; mas não me insulteis! Não, nunca espereis que proteja o assassino, mormente contra aquelle que me arrancou da escravidão!

— Calla-te! —"interrompeo o commendador roxo de ira"— Esqueces-te acaso de quem sou? — Feixou os punhos, e dos labios gotejou-lhe sangue; rugio como uma onça, e arremessou-se sobre o negro.

Tulio, aliás, aguardava immovel esse ultimo esforço da desesperação; mas a Fernando cahiram os braços inertes, e por um segundo ficou absorto e contemplativo, como se ante si estivera um espectro: depois tocou a campainha, e esperou.

O relogio deo oito badaladas. Era noite. Os dous homens appareceram.

Entreguem-no à guarda de Antero. Sua cabeça responder-me-ha por qualquer eventualidade.


XVIII

A DEDICAÇÃO

Antero era um escravo velho, que guardava a casa, e cujo maior deffeito era a affeição que tinha a todas as bebidas alcoholisadas.

Em presença dos dous homens de má catadura e feições horrendas, elle mostrou-se rigido, e atirou com o prisioneiro para um quarto humido e nauseabundo, e mostrou interessar-se vivamente em cumprir as ordens, que recebera. Depois collocou-se à porta, qual fiel cão de fila à quem o dono deixou de guarda à sua propriedade ameaçada por ladrões.

Tulio, entretanto, debattia-se de desesperação encerrado n'esse quarto, do qual se não poderia escapar sem commetter um crime, que repugnava-lhe o coração. Impaciente, receioso pela sua sorte, e ainda mais pela de seo bemfeitor, contava os minutos, e amaldiçoava a mão, que assim o retinha.

Curvou a fronte em uma de suas mãos, e descançando o cotovello sobre a couxa, mergulhou-se em seos pesares e deixou-se levar por elles. A tristesa e o abattimento, que se debuxavam n'aquelle rosto nobre, contristaram ao seu guarda, que attento o considerava.

— Coitado! —"dizia elle lá comsigo"— sua pobre mãe acabou sob os tractos de meo senhor!... e elle, sabe Deos que sorte o aguarda! Pobre Tulio!...

E o prisioneiro, ora abattido, ora desesperado, entrou a soluçar, e à desafogar por esse modo as dores que lhe assoberbavam o peito. Depois ergueo-se e entrou a passear pela estreita prisão, ora com passos rapidos, e incertos, ora com andar frouxo, afflicto, e desalentado.

Soaram nove horas. Tulio deo um gemido de desesperação.

Antero, que tambem soffria, quiz destrahil-o de seos pensamentos dolorosos, e murmurou:

— Meo filho, não achas que a noite assim vae tão lenta e fastidiosa?

Tulio não respondeo. Pensava então que Tancredo partira já a receber sua noiva, e que apenas sahisse da cidade estaria a braços com os seos assassinos.

— Ah! —"dizia elle estorcendo as mãos"— e eu aqui guardado para o não defender!!...

O velho esteve por algum tempo recolhido em si mesmo; depois levantou-se, pegou de uma cuia e tractou de lançar-lhe dentro o que quer que era que estava em uma cabaça. Mas esta estava completamente vazia. Antero arremessou-a para longe de si com certo ár de despreso, suspirou, e depois disse:

— Maldicto vicio é este! E que não possa eu vencer semilhante desejo!

Oh! acredita-me, Tulio, estala-me a garganta de seccura. E como não ha de assim ser? Desde que aqui chegou meo senhor que não mato o bicho. Arre! e nem uma pinga de cachaça! nem ao menos uma isca de fumo siquer para o caximbo.

Então passou pela mente do misero prisioneiro um lampejo d'esperança, respirou com indisivel satisfação; mas com arte objectou, affectando reprehensivo accento:

— Que máo vicio em verdade, pae Antero... sempre a fumar, e a beber. Não vos envergonhaes de semilhante procedimento? Que conceito fará de vós o senhor commendador?!

— Que conceito? —"interrogou o velho desappontado"— que conceito! É o unico vicio que tenho; e ainda por conserval-o não prejudiquei ninguem. Que te importa que beba, —"acrescentou com voz que queria dizer: não tens coração"— por ventura pedi-te algum dinheiro para fumo ou cachaça? — e dizendo afagava a cabaça vazia com um desvelo todo paternal, como que arrependido de tel-a despresado, a ella, a sua companheira constante.

— Não —"respondeo friamente Tulio."

— Pois bem —"continou o velho"— no meo tempo bebia muitas vezes; embriagava-me, e ninguem me lançava isso em rosto; porque para sustentar meo vicio não me faltavam meios. Trabalhava, e trabalhava muito, o dinheiro era meo, não o esmolei. Entendes?

— Perfeitamente, —"retorquio Tulio, fingindo sorrir-se."

Pois ouça-me, senhor conselheiro: na minha terra ha um dia em cada semana, que se dedica à festa do fetixe, e n'esse dia, como não se trabalha, a gente diverte-se, brinca, e bebe. Oh! lá então é vinho de palmeira mil vezes melhor que cachaça, e ainda que tiquira.

— Então, pae Antero, gostaes assim tão loucamente de matar esse immortal bicho?

— Oh! se gosto! —"exclamou o velho africano lambendo os beiços só d'esperança.

— Pois bem, —"tornou o joven negro, mettendo-lhe nas mãos tanto dinheiro quanto era bastante para Antero embriagar-se dez vezes pelo menos"— tomae, e hide saciar à farta essa maldicta sede.

O velho arregalou os olhos, e o praser transbordou-lhe as feições ridentes; tomou a cabaça e sahio correndo; mas não ser ter feixado sobre si a porta da prisão.

Então Tulio olhou em de redor de si assegurar-se da situação e dos meios de fuga, e vio n'esse quarto horrivel troncos, correntes, cepos, anginhos, que se crusavam. Ahi, quantos desgraçados não tinham no meio das torturas amaldiçoado, como Job, o dia do seo nascimento?!... Quantas lagrimas não teriam regado aquelles instrumentos de supplicio?!.........................................................................

— Ah! se eu sempre tivesse destes bons prisioneiros!... —"exclamou contente, e battendo as palmas, o bom Antero, que voltava já bastante alegre, e que não satisfeito com a dose, que engulira, de novo beijava ternamente sua querida cabaça, agora cheia da bebida de sua predilecção.

— Deos lhe pague, meo filho, e te dê uma bôa sorte. — E d'ahi arremeçava-se à sua amante, e já os beijos eram tam repettidos, que pareciam um só e continuo.

Contava já o incançavel Tulio com a possibilidade de escapar-se; porque o silencio, que reinava na casa, o advertia da ausencia do commendador.

Dez horas echoaram aos seos ouvidos. Tulio estava sobre espinhos.

— Dez horas! —"murmurou"— que silencio! Parece-me, pae Antero, que o mundo inteiro dorme: pelo menos n'esta casa aposto que só nós estamos acordados.

— Advinhaste. —"resmungou o velho com a lingua tão pesada, que parecia um moribundo"— porque se não foramos nós, ella estaria completamente deserta.

— Deserta! —"perguntou Tulio, tremendo em face de uma cousa que elle adivinhara já:"— e então onde foi o commendador?

Antero bebia freneticamente, esquecendo d'est'arte o barbaro rigor de Fernando P...; e por isso já meio dormindo apenas respondeo:

— Achei a porta feixada... por fóra...

— E por onde então sahiste? —"perguntou Tulio, sacudindo-o"— Fallae.

— An! —"balbuciou a custo abrindo os olhos."

— Por onde sahiste, se achaste a porta feixada por fora?

Pae Antero fez um esforço, e resmoneou:

— Pelo quintal.

Não pôde mais fallar, e cahio em profundo somno, entre-cortado só por uma respiração forte e estrepitosa. Então Tulio arrastou-o pelas pernas, e o foi levando até um tronco, que se unia à parede, e lá depois de o ter bem seguro, tirou-lhe da algibeira a chave da prisão e sahio.

O negro previra a explosão de cholera do commendador, quando de volta de sua trahidora embuscada, e reclamando o preso, só encontrasse Antero embriagado, a prisão aberta, e a sua victima fóra doo alcance de sua ira. Naturalmente o commendador vendo Antero preso no tronco, acreditaria que se dera uma lucta entre elle e o prisioneiro, e que aquelle, velho e sem forças, fôra subjugado e preso, e que assim tolhido e sem soccorro algum, vira-lhe a fuga, sem poder siquer opor-lhe a menor resistencia.

Tulio não se enganou — o seo estratagema salvou o velho escravo.

Livre, Tulio deitou a correr em direitura da casa, tendo só na mente salvar a seo bemfeitor e amigo.

Estava esbaforido, e mal entrou, sabendo que Tancredo a muito sahira acompanhado das testemunhas, partio sem respirar pela estrada que levava ao convento.

— Meo Deos! —"dizia elle consigo"— será ainda tempo? Poupae-o, Senhor: livrae-o de seos inimigos.

E finda esta breve supplica, a esperança, que começava a abandonal-o, voltou-lhe risonha e vigorosa.

Já lhe faltava o folego, já as pernas se lhe afracavam de cançasso, e elle corria sempre veloz como o fusilar de um relampago, como o servo que o caçador persegue.

No meio da sua carreira avistou um homem montado em uma mula, que caminhava a passos lentos.

O joven negro conheceo-o e respirou.

— Louvemos ao Senhor Deos! —"disse. E accrescentou"— Senhor, vindes do convento de ***?

— Sim. Acabo de faser ahi um casamento, —"redarguio o retardatario viajante, que era um sacerdote."

— E os noivos, senhor?

— Deixei-os na egreja, filho.

Tulio deixou o padre, e de novo começou a correr, e não tardou muito em descobrir as negras paredes do templo, onde uma lua minguada projectava tibia claridade.

E Tulio avistou um coche, cujos cavallos, mordendo o freio, hiam já partir para a cidade.

Depois ouvio pronunciar-se um adeos, logo depois outro, e o coche partio a trote largo. Outro coche, porem, estava ainda postado à porta da egreja.

Faltavam-lhe já forças, estava aniquilado de cançasso, entretanto corria sempre; porque o coche que passou não era o dos noivos, e ainda talvez fosse tempo de salval-os.

Na sua carreira presentio um vago rumor à beira da estrada, e um vulto negro que se escondeo atraz de uma arvore copada. Uma tal apparição veio dar-lhe novas forças, e a suspeita fel-o activar a sua carreira.

— São elles! —"disse a si mesmo, e no ardor da sua dedicação gritou com voz que repercutio na solidão."

— Cilada, senhor... querem assassi.....

Dous tiros de pistola disparados ao mesmo tempo resoaram com pavoroso estampido, e Tulio não acabou a palavra!

A mão, que os disparou, era certeira, e elle moribundo só pode exclamar:

— Jesus! Eu mor....ro!....

Então Tancredo e sua joven esposa, que acabavam de entrar no coche, tremeram de dor e de surpresa. Reconheceram que a voz era a da de Tulio, que lhes advertia na intima desesperação da sua alma.

E Tancredo bradou desatinado:

— É elle, é o meo fiel Tulio! Monstros! porque o assassinaram?! — E deo um passo para ir soccorrel-o; mas Ursula puxou-o pelo braço, disendo-lhe:

— Não ouvistes o seo aviso? Ah! Tancredo, querem assassinar-vos! — E cobrio-o com seos niveos braços.

E um tropel como de lobos, que devorados pela fome uivam medonhamente, aproximou-se do coche; e o grito do postilhão denunciou-lhes que estavam cercados por essas féras humanas mil vezes mais temiveis que os chacaes e as hyenas.

Tancredo reconheceo o perigo eminente, que o cercava, e abrindo a portinhola fez fogo com as suas pistolas. A primeira errou a pontaria, a segunda ferio de leve a um homem vestido de lucto. N'esse homem Tancredo reconheceo o commendador.

— Ursula tinha rasão! —"disse ele comsigo"— Eu é que me perco sem a poder salvar!...

E Fernando P... furioso e com impeto subio ao coche, e appareceo às suas victimas sinistro e ameaçador, como o anjodeve-o ser no dia do supremo julgamento.

Feroz e horrido sorriso arregaçava-lhe os labios, que resfolegavam o odio e o crime. Assim deviam sorrir-se Nero, Heliogabalo e Scilla nas suas saturnaes de sangue.

— Poupae-o, senhor. Ah! pelo céo, poupae-o! —"exclamou Ursula afflicta e pallida cahindo aos pés desse homem desapiedado."

E por um esforço sublime, que só a mulher — ente feito para a dedicação e o amor — pode conceber, disse-lhe, apresentando-lhe o peito:

— Offendi-vos, senhor, vingae-vos: eis-me, não me poupeis: mas elle? oh! não o assassineis! oh! não tem culpa de que o ame mais que a vida....

E cahio prostrada aos pés de Fernando, que semilhante à hyena, que meneia a cauda, e lambe os beiços, porque a presa lhe não escapará, olhava-a sorrindo de ferocidade.

Estava agora face a face com Tancredo, que desarmado só podia esperar a morte fria, e cruel, que lhe preparava seo implacavel inimigo.

E vendo a esposa desmaiada aos pés do commendador, abaixou-se, e tomou-a em seos braços.

E essa bellesa adormecida e pallida como o lyrio do valle, parecia sorrir-lhe com celeste meiguice, e o joven esposo, transportado de amor e de afflição, imprimio nesses labios de voluptuosa perfeição um beijo ardente com que parecia hir-lhe a vida — era o seo ultimo adeos.

Ao contacto desses labios amados, ella abrio seos grandes olhos alquebrados pela dôr, e com um olhar que exprimia a mais singular e indefinivel ternura, pareceo dizer-lhe:

— Amo-te!

Depois esses dous astros de amor, que guiavam ainda no perigo, ou nas trevas da desesperação, ao infeliz mancebo, recahiram em seo languido torpor.

Esse beijo foi a expressão profunda de tão sublime amor: foi o primeiro, o casto e puro osculo de amor, que o comendador jurou ser o derradeiro.

Esse osculo pareceo-lhe insulinosa offensa: rangeo os dentes de raiva, e arremessando-se contra o seo odioso rival, arrancou-o com força do odio dos braços de sua joven esposa.

— Vingança! —"bradou"— vingança! É a hora da vingança. Julgavas que eu a tinha esquecido? Louco! Não sabes que a essa mulher, que amaste, eu dei a alma e o coração, e que jurei que ha de ser minha?

Roubaste-m'a, e inviliceste-a a meos olhos! Cuspis-te-me na face, e nodoaste-a com o teo amor impuro!... polluiste-a com o teo halito... Tancredo, esse osculo trespassou-me o coração de ciume. Só o teo sangue poderá purifical-a ante mim, que jurei esposal-a. Prepara-te para morrer!...

— Covarde!... miseravel assassino —"exclamou o mancebo atirando-se sobre o seo adversario."— Respeita ao menos a puresa de Ursula, nao calumnies a sua innocencia.

Lucta desesperada travou-se entre ambos. Os asseclas do commendador agarraram Tancredo pelas costas, e o covarde commendador embebeo-lhe no peito o punhal que trasia na mão.

— Mataste-me! —"exclamou o infeliz Tancredo"— farta-te de sangue, fera indomita e cruel! mas eu te juro à hora suprema da minha existencia que Ursula não será tua esposa.

Fernando P..., essa menina, que jaz desfallecida, ama-me muito para poder esquecer-me; e odeia-te demais para poder perdoar-te. O teo amor será a punição do teo crime.

Entretanto Fernando, victorioso e triumphante, uivava de feroz alegria, e vociferou rangendo os dentes:

— Mentes! mentes! Olha-a pela derradeira vez; não é elle formosa como um anjo? Não é assim? Achei-a tambem, amei-a, rendi-lhe um culto de louca adooração, e agora é minha. Amaste-a, Tancredo? Amou-te ella? oh! ha de amar-me tambem, quando tuas cinzas já frias no sepulchro lhe não recordarem tua passada ternura.

E o infeliz Tancredo no ultimo transe de sua intima agonia estendeo os braços e exclamou com delirio amoroso:

— Ursula! minha Ursula!

Então a donzella despertou de seo derido lethargo, abrio os olhos, e n'um excesso de amor apaixonado, e de uma dôr intima, lançou-se sobre seo desditoso esposo, e unindo-o ao coração, recebeo-lhe o derradeiro suspiro.

Um mar de sangue tingio-lhe as mãos e os puros seios! Tinha os olhos fixos e pasmados sobre o doloroso espectaculo, e entretanto parecia nada ver; estava absorta em sua dôr suprema, muda, e impassivel em presença de tão monstruosa desgraça!...

O seo soffrimento era horrivel, e profundo, e o que se passava de amargo e pungente naquella alma candida e meiga foi bastante para perturbar-lhe a rasão.


XIX

O DESPERTAR

O amor, que se nutre no coração do homem generoso, é puro e nobre, leal e sancto, profundo e immenso, e capaz de quanta virtude o mundo pode conhecer, de quanta dedicação se possa conceber. Elle o eleva acima de si proprio, e as suas acções são o perfume embriagador d'esse sentimento, que o anima: mas o amor no peito do homem feroz e concupicente é uma paixão funesta, que conduz ao crime, que lhe mata a alma e a despenha no inferno.

Tal era o amor que abrasava a alma indomita e malvada de Fernando P... O amor perdera-o. Elle já não sonhava com a vingança; mas começava a sentir alguma cousa, que lhe rasgava o coração. Seriam os espinhos do remorso?

Fernando até ali sopitára esse castigo do céo, e nunca seo somno fôra atribulado. Entretanto agora, cada sombra era um espectro pavoroso e ameaçador, que lhe erguia os braços descarnados, e acenava-lhe para as feridas gotejantes: e elle feixava os olhos e via-o ainda, e sempre, e por toda a parte.

Então corria espavorido e louvo, como se pretendesse fugira a si mesmo para escapar a tão pungente martyrio, mas embalde porque a sombra de sua victima o seguia impassivel.

Após a noite da horrivel catastrophe, tinham-se succedido já duas, e a tranquillidade não voltara ao espirito do commendador. Em todo esse tempo não podera conciliar o somno um só momento; porque o somno foge àquelle que perdeo a paz d'espirito.

E para serenar a tempestade da sua alma lembrou-se de Ursula, por quem emprehendera esses novos e horrendos crimes, e tentou vel-a. De ha muito que já se esforçava por hir ver aquelle anjo de candura e belleza, mas o animo lhe faltava com a lembrança de que ella lhe lançaria em rosto os seos crimes. Por ultimo vencendo sua pusilanimidade correo desvairado ao seo quarto.

Ursula tinha os olhos cerrados; dormia o somno agitado do febricitante. As horas, que se escoavam já tão longas, os desvelos de que a cercavam, nem a dor, que lhe despedaçava a alma, tinham-na arrancado a esse doloroso torpor.

Então Fernando P... ajoelhou ante esse anjo, olhou-a extasiado, sem atrever-se a tocal-a, ou a chamar pelo seo nome. Temeo despertal-a.

Nessa atitude passou elle muitas horas sem que Ursula voltasse a si. Um assomo de cholera concentrada ennuviou a fronte pallida desse homem feroz, e prorompeo blasphemando:

— Maldição! Mil vezes o mataria, se mil vidas o inferno lhe tivesse dado.

E Ursula continuou o seo lethargo agitado, e elle recahio na adoração intima e silenciosa em que estivera.

Mas o phantasma d'essa menina era um remorso vivo para o seo coração; seos olhos cerrados, seos labios entreabertos, sua respiração curta e anhelante, pareciam repettir-lhe:

— Assassino!

O commendador tentou espancar do espírito essa ideia, que lhe voltava incessante, e elle cahio em dolorosa prostração, que excitaria dó em quem não soubesse os seos nefandos crimes.

Ursula estremeceo no leito, torceo os braços com desesperação, lançou-os fóra da cama, e deixou-os depois cahir sobre o peito.

O commendador gemeo de dor e atreveo-se a exclamar:

— Ursula!

Sua voz era tremula, e o som fraco e doloroso.

Ao som d'essa voz, que lhe despertava tão agudas dores, a moça debatteo-se no leito, e convulsa, pallida, e angustiada, levantou-se com impetuosidade. Abrio os olhos, e dilatou-os sobre Fernando P..., sempre ajoelhado a seos pés, e soltou um grito, que o fez estremecer de angustia.

Depois levou ambas as mãos aos olhos, e um soluçar doido e magoado parecia despedaçar-lhe o afflicto peito.

Então esse homem endurecido e cruel vergou ao peso de tão enorme remorso... Fernando P... pela vez primeira comprehendeo o que era a dor no coração de outrem! Gemeo de afflictiva angustia ante o supremo soffrimento da mulher, que amava; e invocou-a com ternura.

— Ursula! Oh! quanto te hei amado! Poderas tu comprehender a extensão dos meos affectos, e eu não sentira agora invenenarem-me a alma a desesperação e o remorso.

Desdenhaste o amor do meo coração... Porque? não era elle puro como a tua alma?

Donzella! se te dignasses lançar a vista sobre o meo soffrimento, talvez te apiedasses de mim, e acreditasses na minha affeição; porque muito hei soffrido, Ursula, muito...

Desde o dia fatal em que te vi na matta, esqueci o meo orgulho, e uma ardente e inextinguivel paixão me abrasou a alma. N'esse dia, eu jurei pelo céo ou pelo inferno que serias minha esposa. Perdôa, Ursula!... n'esse dia, ainda eu era orgulhoso. Hoje peço-te supplicante: negar-me-has?

Ursula, em nome do céo, uma só palavra, ainda que essa seja para amaldiçoar-me!....

E dizendo rojava-se pelo chão, e beijava-lhe a fimbria de seo vestido.

Então ella desvendou os olhos, e poz-se a contemplal-o, muda e impassivel como se nada a inquietasse; e depois de alguns momentos levantou-se, deu alguns passos vagarosos e incertos, e voltando-se para Fernando, que a seguia com a vista e o coração, deixou escapar um sorriso descomposto, que o gelou de neve.

E Fernando P... conheceo que estava punido! Varreram-se suas afagadoras esperanças. N'esses olhos espantados e brilhantes, n'esse andar incerto, e n'esse sorriso descommunal reconhecera que estava louca!

Tão doida foi-lhe essa triste convicção, que a cabeça pendeo-lhe para a terra, e ficou prostrado como se um raio o tivesse ferido. E as esperanças tão queridas do seo coração myrraram-se, e extinguiram-se!...

Passou algum tempo nessa posição, e depois esse homem robusto, altivo, feroz e cholerico chorou como debil criança.

Mas seo desespero, seo pranto de amargura, não os comprehendia Ursula, que distrahida brincava com as flores já murchas de sua capella de noiva.

Então o commendador sahio correndo; porque a presença d'essa mulher matava-o.

Na sua desesperação ninguem o consolava; porque era máo e cruel para os que o conheciam.

Seos escravos olhavam-no pasmo, e não o reconheciam. O remorso o havia completamente desfigurado.


XX

A Louca

Brilhavam ainda no occaso os ultimos raios do sol. A parda tarde embelesava a naturesa com essas melancholicas côres, que trasem ao coração do homem a saudade e a tristesa.

Sentado em um banco do seo jardim, o commendador Fernando P... não via, nem curava de toda essa bellesa arrebatadora, que enebria os sentidos, e eleva a alma até Deos. A essa hora magica em que a flôr singela e seductora escuta enlevada o suspiroso segredo da brisa, que a festeja; em que o colibrí furtando-lhe um mimoso e feiticeiro adeja e sussura-lhe em volta; em que lá no bosque o vento suspira harmonioso, e os cantores das selvas soltam seo trinar melodioso e terno; em que o mar na praia é pacifico e manso, e perde a altivez com que bramia; em que a virgem entregue a um vago, indefinivel e magico scismar recende mais casto, mais enlevador perfume, como o aroma de uma flôr celeste; a essa hora mesma Fernando P..., aguilhoado pelos remorsos, só via horridos phantasmas, que o cercavam.

No rosto pallido e desfeito as lagrymas escavavam-lhe profundos sulcos; os olhos encovados, e vermelhos, e pisados denunciavam a insomnia febricitante. Já não era o mesmo, senão no seo amor e na sua desesperação.

A dor enrugou-lhe as faces, os remorsos alvejaram-lhe os cabellos. Tão poucos dias de afflicção transformaram-n'o em um velho fraco e abattido.

Faltava-lhe forças para ver Ursula; as noites, e os dias inteiros passava-os ahi, ora correndo louco por baixo d'essas copadas e seculares arvores; ora rojando-se por terra, arrancando os cabellos e blasphemando horrivelmente de Deos e dos homens.

Ahi, a essa hora magica do crepusculo, estava elle, como de costume, só, e todo entregue a seos pungentes soffrimentos, quando a branda, mas reprehensiva voz de um homem, o sobre-saltou.

Era o velho sacerdote.

— Vêdes? —"lhe disse apontando com o dedo na direcção do poente"— É ella, — é Susana!

O commendador levantou maquinalmente a cabeça e olhou.

Em uma rede velha levavam dous pretos um cadaver involto em grosseira e exigua mortalha; hiam-no sepultar!

Então Fernando P... estremeceo; porque aos ouvidos echoou-lhe uma voz tremenda e horrivel que o gelou de medo. Era o remorso pungente e agudo, que sem treguas nem pausa acicalava o seo coração febera por febera.

Escondeo o rosto, espavorido, e menciando a cabeça disse:

— Não! não fui eu!

— Fosteis! —"tornou-lhe o padre com o accento do que vai julgar"— A infeliz succumbio à força de horriveis tractos. Martyrisastes a pobre velha, innocente, e que não teve parte na desapparição de Ursula! Não vol-o provava seo accento de sincera ingenuidade, sua negativa franca e firme?!

Homem ! porque a encerrastes nessa escura e humida prisão, e ahi a deixastes entregue aos vermes, à fome e ao desespero?!!

Nos derradeiros instantes da sua vida, eu, o indigno ministro do Senhor, estava ao seo lado, e os seos ultimos queixumes como que ainda os escuto!

Sorria-se à borda da sepultura; porque tinha consciencia de que era innocente e bemaventurada do céo. A morte era-lhe suave; porque quebrava-lhe o martyrio e as cadeas da masmorra infecta e horrenda.

E sabeis vós o que é a vida na prisão? oh! é um tormento amargo, que mata o corpo, e embrutece o espirito! É morrer mil vezes sem encontrar nunca a paz da sepultura! É um somno doloroso e triste do qual o infeliz só vae despertar na eternidade!

E endurecestes o coração ao brado da innocencia!.. Porque era escrava subcarregaste-la de ferros; negas-tes-lhe o ar livre dos campos, e entretido com novas vinganças, nem della mais vos recordastes!

Assassino de Tancredo, de Tulio, de Paulo, e de Susana! Monstro! flagello da humanidade, ainda não saciastes a vossa vingança? Ah! humilhado e em nome de Deos, pedi-vos mercê para os infelizes; salvação para a vossa alma. Desdenhastes as minhas supplicas!

Orgulhoso e vingativo que sois! E não sentistes que Deos observa os malvados e que os pune ainda na terra.

Em vossa louca e vaidosa ideia, julgastes-vos grande, e esmagastes aos vossos semelhantes que eram fracos, e estavam inermes!

Como a fera dos bosques acommettestes a Tancredo e covardemente o assassinastes: como um verdugo cruel punistes Susana de um crime que não tinha... oh! se o arrependimento vos não apagar a nodoa do peccado, os crimes vos despenharão no inferno.

Fernando P...! Deos vela sobre as acções do homem, e o condemna pela vaidade estupida do seo orgulho. Ursula! O que é feito della?!

Tremes? Oh! eis-ahi o vosso primeiro castigo.

A infeliz enloqueceo de dôr, e a sua loucura myrrou-vos a esperança do seo amor!

Agora o amor requeima-vos o coração; mas arido é elle; porque os affectos de sua alma não serão para ti.

Fernando! chorae o pranto do arrependimento: sede charitativo e sincero que são vias para a remissão de vossos enormes peccados. Ainda é tempo. Escutae por esta bocca impura a voz do Senhor, que na sua extrema bondade talvez o perdoe.

Vivei a vida solitario, passae em ardente e fervorosa oração os dias e as noites.

Indemnisae os vossos escravos do mal, que lhes hei feito, dando-lhes a liberdade. Esse acto de abnegação e de charidade christans agradará a Deos, e então talvez na sua misericordia infinita elle abra para vós os thesouros da sua inefavel graça.

O commendador, sempre com a face inclinada para a terra, ouvia em silencio as reprehensões do digno sacerdote; mas vendo que elle terminara aconselhando-o, redarguio-lhe com desalento:

— Levae-me onde está ella... a tanto tempo que a não vejo!

O velho sacerdote sentio-se vivamente commovido ao aspecto d'esse homem cheio de crimes e de maldicções, e a quem os remorsos tinham envelhecido de repente.

Elle conheceo que o arrependimento principiava a operar-se n'aquella alma rebelde. Tomou-lhe as mãos seccas e ardentes, e o foi guiando até os aposentos da donzella. Mas Fernando P... estacou no limiar da porta, não se atrevendo a entrar.

A scena, que se apresentou a seos olhos, quebrou-lhe o coração de angustias.

Ursula sorria, afagando invisivel sombra, mas esse sorriso era debil e vaporoso — era o derradeiro esforço de uma alma, que está prestes a quebrar as prisões do corpo.

O commendador feixou os olhos, e agarrou-se à porta para não cahir.

E ella, como se a ninguem visse, murmurava em voz baixa, e depois tornava a sorrir-se.

— Vem —"disse com voz debil, mas repassada de ternura"— tanto tempo ha que te procuro embalde.

Tancredo! porque me fugias? Onde estavas?

Espera... agora me recordo. Tulio disse-me que muito longe te levava não sei que negocio urgente!... E eu sentia a dôr da separação; porque era já longa, e triste.

E depois tirando dos cabellos uma florzinha secca, ultima que lhe restava da capela, beijou-a, e sorrio-se com ternura.

Não as vês, Tancredo? são as flores do meo noivado! São tão lindas... amo-as!...

E apertou-a ao coração.

Depois soltou um profundo suspiro, e erguendo as mãos supplices para o sacerdote, em quem só então reparara, exclamou com voz que revelava a mais afflictiva angustia:

— Por compaixão! Oh! não o mateis! Que horror!... Oh! matae-me antes!... O monstro ri-se com praser... e sem piedade! Ah! maldição!... maldição sobre elle!

Seos olhos brilharam ainda uma derradeira vez com um fulgir vivido, depois cerraram-se.

Era como a luz, que no seo ultimo viver, antes d'extinguir-se para sempre, avulta e cresce por clarões vagos e interrompidos.

Após de longa pausa, sempre com os olhos feixados, continuou:

— Deos meo! Porque assassinou elle a Tancredo? Oh! era noite... Bem vi, seos olhos eram os de um tigre!

Arredae-vos! arredae-vos —"disse, pegando ao acaso a mão do sacerdote, que lhe aguardava o ultimo momento"— não vedes que ahi ha sangue?... sangue!... muito sangue!...

Muito, muito sangue derramou elle, e esse sangue cahio-me todo aqui no coração.

Sinto uma afflição, que me mata! Ai que dôr!!.. —"E com a mão sobre o coração se poz a soluçar com tanta dôr, que partiria o coração ainda o mais embrutecido."

O sacerdote accenou então para o commendador, que estava immovel e pallido: este entrou.

— Meo filho —"disse o padre"— ajoelhemo-nos.

Ambos cahiram prostrados aos pés da infeliz louca, que entregava a alma ao Creador.

O sacerdote murmurava com melancholico accento o psalmo dos defunctos; mas o commendador o não comprehendia; porque Ursula morria, e elle tinha sido a causa. A dor e o remorso tiraram-lhe os sentidos, e cahio por terra.

O padre não deo fé desse accidente e continuou a orar fervorosamente. E a oração dos seos labios subia ao céo como nuvem de incenso que por muito tempo ondula em torno do altar e sobe até Deos.

Era o perfume, que precedia à alma da donzella.

E ella, nesse transe supremo, crusou as mãos sobre o peito, apertando n'esse estreito abraço a florsinha secca de sua capella, e murmurou —"Tancredo!"—, e com os labios entre-abertos, e onde adejava um sorriso divinal, e como um anjo deo o ultimo suspiro.


EPILOGO

Dous annos eram já passados sobre os tristes acontecimentos, que narrámos, e ninguem mais na provincia se lembrava dos execrandos factos do convento de *** e da horrenda morte de Tancredo. A justiça, se a pintam vendada, completamente cega ficou, e os assassinatos do apaixonado mancebo e do seo fiel Tulio impunes.

E o sudario do esquecimento cahira sobre elles; porque a lousa do sepulchro os tinha encerrado para sempre!

E as pesquisas da justiça cançaram de mysterios e tergiversações e tambem foram abandonadas.

Só um homem conhecia assassino; mas esse homem era incapaz de uma denuncia — esse homem só curava da alma, e a sua missão era toda de paz. A Deos, pois, pertencia o castigo do culpado.

No convento dos carmelitas, havia dous annos, entrára um homem, que pedira o habito, e logo depois começáro o seo noviciado.

Esse homem era um velho, com a fronte e o rosto sulcados de rugas, a pelle macilenta, e o corpo vergado e encarquilhado como do convalescente de molestia atroz, debilitante e prolongada.

Quem era elle ninguem o sabia no convento. Chamava-se — frei Luiz de Sancta Ursula.

Affirmavam alguns leigos que esse velho era um louco; porque as vezes, rompendo fervorosa oração, possuia-se de frenesi, os olhos chamejavam-lhe, rangia os dentes, e cahia por terra em deliquio.

Trazia cilicios, jejuava rigorosamente, e as noites vellava-as inteiras.

E se lhe podessem ver o coração ahi encontrariam escripto com caracteres de fogo:

— Ursula! —

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A noite hia já alta. Era uma destas noites hynvernosas, em que o céo se tolda de nimbos espessos e negros. Nem uma estrella se pintava no céo, nem a via lactea esclarecia um ponto se quer do firmamento. Era tudo trevas. O vento zunia com estampido e a chuva cahia em torrentes com fragor immensos, como sohe acontecer nas regiões equatoriaes.

Então o sino, lugubremente tangido, annunciou aos irmãos carmelitas, que um dos seos tocava as portas da eternidade. E logo no convento agitou-se um longo e lugubre murmurio.

Era o psalmo, que recorda ao peccador que é pó. e encaminha-o no transe derradeiro.

E o cantico mysterioso e solemne echoou nas abobodas do sanctuario.

O irmão, que gemia a derradeira dor, era o noviço frei Luiz de Sancta Ursula a quem chamavam — o louco.

— Meo filho! —"murmurou-lhe um piedoso monge"— não nos faltam consolações no seio da egreja. Aquelle que confia no Senhor parte em sua sancta paz.

Depositae no meo coração o segredo de vossas culpas; a penitencia é um sacramento, que nos aplaina o caminho do céo.

— Confessar-me, irmão? e para que?

— Para que as vossas culpas vos sejam perdoadas.

— Não —"tornou o moribundo"— Sabeis vós o que vae por esta alma de torturas e odio? Sabeis? Oh! tenho o inferno no coração!

— Jesus! Meo Deos ! —"exclamou o religioso fasendo o signal da cruz sobre o moribundo"— Irmão, em nome de Deos arredae do mundo o pensamento.

O inferno no coração! Que estaes ahi a dizer?! O Senhor esclareça as trevas da vossa alma para que possa ella purificar-se. O arrependimento sincero, meo irmão, cura as mais profundas chagas do coração, e apaga os mais atrozes crimes.

Entretanto o moribundo não parecia commover-se. Então o frade sahio, e voltando appresentou-lhe um Crucifixo.

— Irmão! —"exclamou-lhe"— Eis o Filho de Deos, aquelle cujo sacrificio sublime remio o homem da cadeia da culpa. Encarae-o. É Deos, que vos vem pedir por preço do seo sangue a contricção da vossa alma. Negar-lh'a-heis?

Frei Luiz de Sancta Ursula, ou antes o commendador Fernando P..., volveo os olhos já baços pela morte, e olhando para o Crucificado, e depois para o padre, disse:

Amei-a, padre; amei-a mais que ao Filho de Deos, mais do que a salvação da alma, e por amor della despenhei-me no inferno!... —E as lagrymas começaram a cahir-lhe pelas aridas faces.

— Não, meo filho —"objectou-lhe o religioso"— Deos perdôa ao arrependido. Lembrae-vos de Magdalena.

— Arrependido! —"exclamou o moribundo"— arrependido, eu? Oh! não, meo padre. Compadeceo-se Deos do meo martyrio? Nunca. Matou-me a esperança no coração. Deixou lavrar o amor frenetico no peito, que o rasgou, que deo-lhe a coragem do crime, sem dar-lhe a saciedade da vingança. Cometti muitos crimes, e ainda até hoje não serenou-se-me o coração sedento de odio e de vingança.

Feri o homem a quem ella adorava, vi correr-lhe o sangue que derramei, vi-o expirar a meos pés, sorri-me de praser, e oh! maldição! não fiquei vingado!

— Oh! —"exclamou o monge transido de pavor"— que horror!!

— Esse homem fôra preferido, fôra o eleito do seo coração. Ella, ainda apoz a morte d'elle, dedicou-lhe o mesmo amor.

— Em nome do Senhor arrependei-vos!

— Tancredo! —"continuou com odio"— Tancredo, roubaste-m'a! Cedo tornar-nos-hemos a encontrar no outro mundo e lá ainda te pedirei contas como n'este!

— Tancredo?! —"interrompeo o frade com admiração"— Tancredo! Filho, quantos crimes pesam sobre vós! Ao pé do cadaver de Tancredo estava um outro cadaver, e ambos pareciam feridos da mesma mão. Fosteis tambem vós que o assassinastes?!

— Sim. —"disse"— Assassinou-o a minha vingança. Susana, Tulio, Tancredo e Ursula, meo padre, todos fizeram de mim um objecto de zombaria.

— E ella? —"perguntou o confessor.

— Ella?!... Ella morreo amaldiçoando-me!!... A infeliz enlouqueceo de dôr, e eu não a pude salvar!...

Meo padre —"continuou"— eu a vi no sepulchro, e não sei como não morri então!

— Não podeis por ventura supportar a vida sem ella?

— Oh! não!... não, meo padre!

— E não sabeis então que estaes separado della para sempre?

— Para sempre?! —"indagou elle com afflição vehemente, e um profundo suspiro agitou seo peito.

— Para sempre! —"tornou-lhe o monge.

— E porque? —"murmurou elle com humildade.

— Porque, meo filho, ella está no céo, e vós, homem criminoso e impenitente, vos despenhaes no inferno.

Houve então uma longa pausa. Faltavam as forças ao moribundo, cujo peito anciava como combattido por uma lucta terrivel e renhida.

Fez um ultimo esforço, porque sentia as prisões da vida despedaçarem-se, e estendendo os braços, tomou o Crucificado, levou-o aos labios, e pondo-o sobre o coração, exclamou demonstrando o mais profundo arrependimento:

— Perdoae-me, Senhor! porque na hora derradeira suffoca-me a enormidade das minhas culpas.

Lagrymas de sincera dôr verteram seos olhos, que para sempre se cerraram; e a morte imprimio-lhe no rosto a tranquilidade da contricção.

Nesse dia chorava Adelaide suas primeiras lagrymas de dôr, porque a opulencia, e o fausto não bastavam para lh'as estancar.

Seo primeiro esposo era já morto, envenenado por acerbos desgostos. Ella ludibriara o decrepito velho, que a roubára ao filho, e elle em seos momentos de crime imporente amaldiçoava a hora em que a amára.

Ella depois tambem chorou, e chorou muito; porque as dores, que o céo lhe enviou, foram bem graves. Casou segunda vez e o novo esposo, que não amava a sua deslumbrante bellesa, a arrastou de afflicção até o desespero.

E o remorso, que lhe pungia na alma, augmentava a grandesa das suas magoas, porque a imagem d'aquella mulher, que tanto a amara, e cujos dias ella torturou sem piedade até despenhal-a no sepulchro, se lhe erguia melancholica na hora do repouso, e a amaldiçoava.

E depois eram já tão amargos os seos dias, que buscou afanosa a morada do descanço e da tranquilidade.

De todas estas victimas do amor, apenas restam vestigios sobre a terra da desditosa Ursula.

No convento de ***, juncto ao altar da Senhora das Dores encontra-se uma lapide rasa e singela com estas palavras — ORAE PELA INFELIZ URSULA!

FIM